Morreu uma das figuras centrais do jornalismo em Itália, um dos grandes fautores deste engenho de riscar com o dedo umas frases a simular um reflexo do nosso rosto comum no espelho sempre baço dos dias que passam. Eugenio Scalfari é tido como um «revolucionário do jornalismo», alguém que se implicou de forma direta e com um empenho absoluto no esforço de captar a realidade e permitir que esse conhecimento impulsionasse um esforço de mudança social. Fundador do diário La Repubblica, em 1976, Scalfari morreu na quinta-feira, aos 98 anos, tendo trabalhado até ao fim, assinando todos os domingos os seus longos editoriais naquele título. E sinal do reconhecimento pela sua trajetória, não isenta de boas doses de polémica, é descrito pelo jornal concorrente, o Corriere della Sera, como «o inventor de um novo modo, mais direto e sedutor de narrar a política e a economia, sem medo de tomar partido quando achava oportuno». O diário acrescenta que ele não hesitava perante títulos como «Capital corrupta, nação infecta».
«Não há jornalismo sem moral. Todo o jornalista é um moralista. É absolutamente inevitável», afirmava Marguerita Duras, assim descrevendo-se também a si mesma, sempre que assinava textos nessa condição. Mas fixava ainda algumas noções imprescindíveis para se ler e entender o alcance e os limites desta relação à queima-roupa com os acontecimentos que marcam o presente, tanto aqueles que surgem empolados e, logo depois se revelam estéreis, como os outros, que não podem ser apreciados em toda a sua extensão. Afinal, se o jornalista é alguém que observa o mundo e o seu funcionamento e «que diariamente o vigia de muito perto, que dá a ver e a rever o mundo, o acontecimento», por outro lado «não consegue fazer esse trabalho sem julgar o que vê». Daí que, no entender de Duras, a informação objetiva é um logro total, uma impostura. «Escrever para um jornal significa escrever de imediato. Sem esperar. Dái o facto de a escrita ter de ressentir-se desta impaciência, desta obrigação de andarmos depressa e de sermos um pouco descuidados», acrescenta a escritora francesa, adiantando, contudo que «esta ideia de negligência na escrita não me desagrada».
Ezio Mauro, que viria a suceder a Scalfari na direção do La Repubblica, além de o homenagear ao descrevê-lo como um «revolucionário do jornalismo», traçou esse programa que nunca disfarçou o seu ímpeto moralizador e que levaria a que o jornal, que queria atrair a elite bem como as classes populares, não tenha demorado a atingir uma grande difusão, com 800 mil exemplares vendidos a cada dia, tornando-se o segundo diário mais influente do país: «O resultado é uma conceção de jornal que vai muito além da fotografia do dia para assinalar a reconstrução do mundo, a invenção do contexto, a inteligência dos acontecimentos, a compreensão dos fenómenos. Ou seja, a criação de uma verdadeira e própria máquina de consciência: capaz de ajudar o leitor a ser cidadão consciente, porque informado.»
Nascido a 6 de abril de 1924, na cidade de Civitavecchia, a cerca de 80 km de Roma, de pais calabreses, Scalfari vinha de uma família de direita, e num livro de memórias, L’uomo que non credeva en Dio, admitia que na adolescência fora um entusiasta ativista de Mussolini, e que ainda votou na monarquia no referendo de 1946, isto antes de se tornar numa das mais lúcidas e apaixonadas testemunhas da história republicana, como assinalou o presidente de Itália, Sergio Mattarella. A sua carreira jornalística iniciou-se no Il Mondo, jornal da elite liberal italiana, mas foi no L’Europeo que começou a assumir destaque, sendo considerado fundador do jornalismo económico transalpino. Em 1955, foi um dos fundadores e, depois diretor, de L’Espresso, uma revista que se tornou conhecida em todo o mundo pelas reportagens de investigação que publicava.
Scalfari ainda se aventurou no mundo da política, tendo aderido ao Partido Radical em 1955, e sendo depois eleito deputado do Partido Socialista em 1968, mas, como vincou o primeiro-ministro italiano Mario Draghi (horas antes de aresentar a sua demissão), será lembrado como «um protagonista absoluto na história do jornalismo na Itália do Pós-Guerra». Nas duas décadas em que esteve à frente do La Repubblica, pautou-se por uma virulenta oposição a Silvio Berlusconi, mas para lá da sua marcada atitude moral, como ressalva Draghi, «os seus editoriais constituíam uma leitura essencial para todos aqueles que queriam entender a política e a economia». Depois de abandonar a direção do jornal, aos 73 anos, passou a dedicar-se à escrita, continuando a colaborar com o editorial de domingo e fazendo longas entrevistas, destacando-se as que fez ao Papa Francisco, de quem se tornou amigo. Tendo publicado cercade 30 livros, um deles reúne precisamente uma série de conversas filosóficas com o papa, que, através de um comunicado, manifestou pesar pela morte do amigo e disse guardar com carinho a memória dos encontros «e das conversas densas sobre as últimas questões do homem».