Justiça, falsidade e demagogia


Continuemos assim, que vamos de vento em popa, vamos, vamos. Falta pouco para batermos de frente com a cara num muro e esfacelarmos as ventas de encontro a um oceano de eficácia, celeridade, popularidade.


No que respeita à discussão pública relativa ao alegado estado da justiça em Portugal, chegámos a um tal ponto em que é preciso dizer as coisas com uma certa crueza para tentarmos ser ouvidos. Pegando no título de uma crónica regular de um opinador inteligente (embora muito precipitado no que toca à justiça, que revela conhecer mal e apenas pela rama dos sound bytes mediáticos), o respeitinho não é bonito, ou melhor, bonito é, mas não leva a lado nenhum, pois se nos mantivermos no “salvo o devido respeito por opinião diversa” e tal não saímos daqui e continuamos mergulhados numa discussão que se baseia apenas em duas ou três ideias feitas, erradas, intoxicantes e que nos podem estar a conduzir muito rapidamente para terrenos próximos do iliberalismo.

Ora, digo eu, sem mesuras, salamaleques e genuflexões: É falso que haja excesso de garantias. É falso que a justiça em geral seja muito morosa. É falso que a morosidade de alguns processos tenha como razão principal as alegadas “artimanhas” da defesa. É falso que a justiça em geral possa ser apreciada e medida em função do que é noticiado sobre uma dúzia de processos. É falso que as notícias em geral sobre essa dúzia de processos sejam sempre rigorosas, objetivas, equilibradas e/ou abrangentes. É falso que sobre essa dúzia de processos impere sempre ou na maior parte das vezes a informação em detrimento do entretenimento. É falso que não exista manipulação da opinião pública. É falso que não haja demagogia. É falso que não haja cobardia. É falso que não haja populismo. É falso que não haja desejo de popularidade. Não é “inverdade”, não é “salvo melhor opinião”, não é a “doutrina divide-se”. É falso, com todas as letras. Falso. Ponto final, parágrafo. Se quiserem escutar, muito bem, se não quiserem, muito bem também, mas depois não se queixem.

Tem-se dito e continua a dizer-se, inclusive pela boca de altos responsáveis do setor da justiça, que a morosidade de certos processos tem como causa principal a mão das defesas, e que o legislador tem que cortar nas garantias de defesa. Ora, eu gostaria que quem assim fala ou escreve me desse exemplos. Falar é fácil, sobretudo quando se diz apenas generalidades, e daquelas que soam bem e toda a gente quer e gosta de ouvir. Ou seja, demagogia, como se explica no dicionário. E gostaria também que me explicassem um par de coisas. Por exemplo, porque é que os megaprocessos se arrastam anos e anos em inquérito e depois, chegados a instrução ou julgamento, têm que ser resolvidos com muita rapidez, sob pena de tudo o que sejam mais do que alguns meses ser levado à conta de excesso de garantias. Qual excesso? Os recursos? Quais recursos? Da decisão de pronúncia que confirma a acusação não se pode recorrer, seja sobre o que for. Não se pode. No mais, pode-se recorrer de despachos ao longo da fase de julgamento, mas, além de a esmagadora maioria dos recursos só subir no final do processo, os mesmos não têm efeito suspensivo. É o recurso de constitucionalidade? Mas digam-me os pastores do pecado do excesso de garantia quantos recursos de constitucionalidade entram no Tribunal Constitucional, e quantos duram mais do que alguns meses. Por favor, digam-me.

E digam-me também quantos anos levam nos reguladores os grandes processos de contraordenação, e quantas vezes chegam à fase judicial já à beira da prescrição, criando no juiz uma pressão enorme para despachar para que a prescrição não lhe rebente nas mãos. São precisos seis, sete e oito anos para um processo correr na CMVM, no BdP, na ADC e noutros reguladores? E depois para os arguidos se defenderem – aliás com algumas regras processuais iníquas – quaisquer três meses chegam? E, se não chegarem, já estamos no excesso de garantias ou nas manobras da defesa. E os inquéritos criminais dos chamados megaprocessos? Dez anos está bem? Pelos vistos está, e até mais do que dez, e o processo rola e enrola nas mãos da investigação (algumas querendo passar a história de Portugal a pente fino, não vá escapar alguma coisa ou o vizinho do lado ter um processo maior ou melhor), e com episódios mediáticos recorrentes para fazer ambiente. E depois desses oito, dez ou doze anos? Instrução, mas muito rapidinho, porque a instrução não é um julgamento, e qualquer coisa que não seja corroborar a acusação em duas penadas é excesso de garantias ou manobra e manha dos poderosos e seus advogados. E no julgamento, deverá ser sempre a andar, nada de explicar, contraditar, tentar igualar armas. Dez anos, centenas de volumes e milhões de documentos e, em contraditório, espera-se que a defesa diga amém e muito obrigado?

Porque é que os processos nos grandes reguladores demoram tanto? Porque é que há megaprocessos criminais? Isso interessa a quem? À defesa e aos visados não é seguramente, e à efetiva realização da justiça e à confiança dos cidadãos na mesma também não. O tempo infindo desses processos em inquérito (os criminais) e na fase administrativa (os contraordenacionais) serve o quê e a quem, mascara o quê, permite o quê? E porque é que durante e depois se alimentam e se repetem narrativas simplistas, demagógicas e populistas sobre os poderosos, as defesas, et cetera?

O que se devia dizer é que essa duração é inadmissível. E que a generalidade dos processos não corre assim. E que há focos de morosidade na Justiça, mas não é uma situação generalizada. E que há defesas que abusam das garantias, isso há, e também é certo que os defensores deviam pensar bem antes de cada exasperação litigante (não só porque ela tem efeitos no processo, mas também os tem para este clima podre dos clamores contra o alegado excesso de garantias), mas não é um problema de excesso, é um problema de mau uso. E – também se deveria dizer – que há focos de incompetência no sistema de justiça.

E que há focos de ambição desmedida, e húbris. E, também, e não menos importante, que há a necessidade de encher infindáveis espaços noticiosos (vários de 24 horas) com casos e polémicas; encher, repetir, entreter, glosar, até ao infinito, até à exaustão, até à intoxicação. E há ressentimento, seja social, seja individual, e tudo isso se verte também nestas coisas. E há tantas outras coisas, mas nem aquelas nem estas se discutem, porque se não quer, porque dá trabalho, porque não interessa, porque não vende, porque não cativa, porque não entretém. Essa é que é essa.

É muito melhor dizer, de boca cheia mas sem saber o que se diz (ou, pior, sabendo mas fingindo que não), que o que está mal (e o que está mal é muito menos do que se pensa e diz, justiça seja feita, e sobretudo é muito melhor do que há trinta, vinte ou dez anos, embora não pareça) é culpa das garantias da defesa e do seu exercício. E o legislador, mergulhado no terror da impopularidade, vai aqui e ali cortando e cortando (como não tem parado de cortar nas últimas décadas), e quem faz as coisas bem ou tenta fazer vai desistindo, ou vive sob o terror de ver o seu nome nos jornais e telejornais ou vai-se vendo arrasado pelas ruas da amargura, quando não mesmo da crucificação. Continuemos assim, que vamos de vento em popa, vamos, vamos. Falta pouco para batermos de frente com a cara num muro e esfacelarmos as ventas de encontro a um oceano de eficácia, celeridade, popularidade e, como diria o taxista inflamado para o passageiro acabrunhado no banco de trás, para o “está-se mesmo a ver” e “tem que se acabar com esta pouca-vergonha”. Já falta pouco. O respeitinho, de facto, não é bonito. Mas a ignorância e a demagogia atrevidas, incautas ou interesseiras são ainda mais feias.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

Justiça, falsidade e demagogia


Continuemos assim, que vamos de vento em popa, vamos, vamos. Falta pouco para batermos de frente com a cara num muro e esfacelarmos as ventas de encontro a um oceano de eficácia, celeridade, popularidade.


No que respeita à discussão pública relativa ao alegado estado da justiça em Portugal, chegámos a um tal ponto em que é preciso dizer as coisas com uma certa crueza para tentarmos ser ouvidos. Pegando no título de uma crónica regular de um opinador inteligente (embora muito precipitado no que toca à justiça, que revela conhecer mal e apenas pela rama dos sound bytes mediáticos), o respeitinho não é bonito, ou melhor, bonito é, mas não leva a lado nenhum, pois se nos mantivermos no “salvo o devido respeito por opinião diversa” e tal não saímos daqui e continuamos mergulhados numa discussão que se baseia apenas em duas ou três ideias feitas, erradas, intoxicantes e que nos podem estar a conduzir muito rapidamente para terrenos próximos do iliberalismo.

Ora, digo eu, sem mesuras, salamaleques e genuflexões: É falso que haja excesso de garantias. É falso que a justiça em geral seja muito morosa. É falso que a morosidade de alguns processos tenha como razão principal as alegadas “artimanhas” da defesa. É falso que a justiça em geral possa ser apreciada e medida em função do que é noticiado sobre uma dúzia de processos. É falso que as notícias em geral sobre essa dúzia de processos sejam sempre rigorosas, objetivas, equilibradas e/ou abrangentes. É falso que sobre essa dúzia de processos impere sempre ou na maior parte das vezes a informação em detrimento do entretenimento. É falso que não exista manipulação da opinião pública. É falso que não haja demagogia. É falso que não haja cobardia. É falso que não haja populismo. É falso que não haja desejo de popularidade. Não é “inverdade”, não é “salvo melhor opinião”, não é a “doutrina divide-se”. É falso, com todas as letras. Falso. Ponto final, parágrafo. Se quiserem escutar, muito bem, se não quiserem, muito bem também, mas depois não se queixem.

Tem-se dito e continua a dizer-se, inclusive pela boca de altos responsáveis do setor da justiça, que a morosidade de certos processos tem como causa principal a mão das defesas, e que o legislador tem que cortar nas garantias de defesa. Ora, eu gostaria que quem assim fala ou escreve me desse exemplos. Falar é fácil, sobretudo quando se diz apenas generalidades, e daquelas que soam bem e toda a gente quer e gosta de ouvir. Ou seja, demagogia, como se explica no dicionário. E gostaria também que me explicassem um par de coisas. Por exemplo, porque é que os megaprocessos se arrastam anos e anos em inquérito e depois, chegados a instrução ou julgamento, têm que ser resolvidos com muita rapidez, sob pena de tudo o que sejam mais do que alguns meses ser levado à conta de excesso de garantias. Qual excesso? Os recursos? Quais recursos? Da decisão de pronúncia que confirma a acusação não se pode recorrer, seja sobre o que for. Não se pode. No mais, pode-se recorrer de despachos ao longo da fase de julgamento, mas, além de a esmagadora maioria dos recursos só subir no final do processo, os mesmos não têm efeito suspensivo. É o recurso de constitucionalidade? Mas digam-me os pastores do pecado do excesso de garantia quantos recursos de constitucionalidade entram no Tribunal Constitucional, e quantos duram mais do que alguns meses. Por favor, digam-me.

E digam-me também quantos anos levam nos reguladores os grandes processos de contraordenação, e quantas vezes chegam à fase judicial já à beira da prescrição, criando no juiz uma pressão enorme para despachar para que a prescrição não lhe rebente nas mãos. São precisos seis, sete e oito anos para um processo correr na CMVM, no BdP, na ADC e noutros reguladores? E depois para os arguidos se defenderem – aliás com algumas regras processuais iníquas – quaisquer três meses chegam? E, se não chegarem, já estamos no excesso de garantias ou nas manobras da defesa. E os inquéritos criminais dos chamados megaprocessos? Dez anos está bem? Pelos vistos está, e até mais do que dez, e o processo rola e enrola nas mãos da investigação (algumas querendo passar a história de Portugal a pente fino, não vá escapar alguma coisa ou o vizinho do lado ter um processo maior ou melhor), e com episódios mediáticos recorrentes para fazer ambiente. E depois desses oito, dez ou doze anos? Instrução, mas muito rapidinho, porque a instrução não é um julgamento, e qualquer coisa que não seja corroborar a acusação em duas penadas é excesso de garantias ou manobra e manha dos poderosos e seus advogados. E no julgamento, deverá ser sempre a andar, nada de explicar, contraditar, tentar igualar armas. Dez anos, centenas de volumes e milhões de documentos e, em contraditório, espera-se que a defesa diga amém e muito obrigado?

Porque é que os processos nos grandes reguladores demoram tanto? Porque é que há megaprocessos criminais? Isso interessa a quem? À defesa e aos visados não é seguramente, e à efetiva realização da justiça e à confiança dos cidadãos na mesma também não. O tempo infindo desses processos em inquérito (os criminais) e na fase administrativa (os contraordenacionais) serve o quê e a quem, mascara o quê, permite o quê? E porque é que durante e depois se alimentam e se repetem narrativas simplistas, demagógicas e populistas sobre os poderosos, as defesas, et cetera?

O que se devia dizer é que essa duração é inadmissível. E que a generalidade dos processos não corre assim. E que há focos de morosidade na Justiça, mas não é uma situação generalizada. E que há defesas que abusam das garantias, isso há, e também é certo que os defensores deviam pensar bem antes de cada exasperação litigante (não só porque ela tem efeitos no processo, mas também os tem para este clima podre dos clamores contra o alegado excesso de garantias), mas não é um problema de excesso, é um problema de mau uso. E – também se deveria dizer – que há focos de incompetência no sistema de justiça.

E que há focos de ambição desmedida, e húbris. E, também, e não menos importante, que há a necessidade de encher infindáveis espaços noticiosos (vários de 24 horas) com casos e polémicas; encher, repetir, entreter, glosar, até ao infinito, até à exaustão, até à intoxicação. E há ressentimento, seja social, seja individual, e tudo isso se verte também nestas coisas. E há tantas outras coisas, mas nem aquelas nem estas se discutem, porque se não quer, porque dá trabalho, porque não interessa, porque não vende, porque não cativa, porque não entretém. Essa é que é essa.

É muito melhor dizer, de boca cheia mas sem saber o que se diz (ou, pior, sabendo mas fingindo que não), que o que está mal (e o que está mal é muito menos do que se pensa e diz, justiça seja feita, e sobretudo é muito melhor do que há trinta, vinte ou dez anos, embora não pareça) é culpa das garantias da defesa e do seu exercício. E o legislador, mergulhado no terror da impopularidade, vai aqui e ali cortando e cortando (como não tem parado de cortar nas últimas décadas), e quem faz as coisas bem ou tenta fazer vai desistindo, ou vive sob o terror de ver o seu nome nos jornais e telejornais ou vai-se vendo arrasado pelas ruas da amargura, quando não mesmo da crucificação. Continuemos assim, que vamos de vento em popa, vamos, vamos. Falta pouco para batermos de frente com a cara num muro e esfacelarmos as ventas de encontro a um oceano de eficácia, celeridade, popularidade e, como diria o taxista inflamado para o passageiro acabrunhado no banco de trás, para o “está-se mesmo a ver” e “tem que se acabar com esta pouca-vergonha”. Já falta pouco. O respeitinho, de facto, não é bonito. Mas a ignorância e a demagogia atrevidas, incautas ou interesseiras são ainda mais feias.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira