Doutor em Filosofia, especialista na história do pensamento russo e editor da revista Philosophie Magazine, Michel Eltchaninnoff recenseou, de modo exaustivo e sistemático, recorrendo a uma extensa investigação junto do círculo próximo de Vladimir Putin, bem como escutando os melhores observadores da cena política russa, a que juntou uma minuciosa leitura dos discursos, entrevistas e intervenções públicas do presidente russo, as diferentes fontes – filosóficas, literárias, culturais – que permeiam a articulação, tanto quanto possível, de uma doutrina. Eltchaninnoff procurou, pois, meter-se, compreender, e meter-nos “Na cabeça de Putin” (Zigurate, 2022).
Existirá uma filosofia Putin (?), um conjunto coerente, sistematizado, articulado de ideias, uma visão do mundo, porventura bebida (re-apropriada) em diferentes referentes intelectuais, que orienta o agir do líder russo? A conclusão, a partir de “Na cabeça de Putin”, tenderá a poder considerar-se paradoxal: por um lado, Michel Eltchaninoff assume existir uma complexa doutrina Putin – "de carácter híbrido e mutante, essa doutrina promete-nos a todos um futuro turbulento", estribada nos seguintes eixos, ou níveis: a) uma visão conservadora (com assunção da herança soviética e assente num "falso liberalismo", isto é, em um regime que de modo algum poderia classificar-se como uma “democracia liberal); b) uma teoria da «via russa» (a ideia de uma especificidade russa que importa impor ao mundo); c) um sonho imperial inspirado em pensadores euroasiáticos (a ideia de império e a apologia da guerra serão nucleares nesta cosmovisão, sendo que no seu projecto existe a aglutinação do “mundo russo” e a liderança do movimento conservador na Europa). De outra banda, ao longo do ensaio de Eltchaninoff, em permanência se vem a perceber que quase todas as referências filosóficas, literárias, ideológicas em que Vladimir Putin se ancora são usadas taticamente, de modo instrumental, ad hoc, de modo pouco elaborado, e sempre ao sabor das necessidades políticas (do momento). Mais decisivamente ainda, Putin, afinal, como que incarna, no proscénio da história, Piotr Verkhovenski, o nihilista e revolucionário profissional, de “Os Demónios” de Dostoiévski, ele que propõe como chave do sucesso na política a noção de que “o essencial é a lenda”. Ou seja, e como o interpreta Michel Eltchaninoff, “para obter o poder e conseguir mantê-lo, é preciso substituir os matizes da realidade pela extravagância da narrativa sagrada, e depois aplicar esse mito ao que existe, à custa de violência. Mas recordemos como termina o romance: após o assassinato de um inocente, o bando de revolucionários dispersa-se com medo e vergonha. O herói do romance suicida-se. O real vinga-se”.
Foi um outro autor russo, Turgueniev, em “Pais e Filhos”, que tornou do domínio público o termo “nihilistas” (“Pais e Filhos está ligado (…) ao niilismo; é o romance que tornou de domínio público o próprio termo «niilistas», com que são designados o protagonista Bazarov e o seu amigo Arkadi.”, Claudio Magris, “Alfabetos, Quetzal, 2013, p.128). Ora, “por niilismo entende-se – em especial hoje, numa época em que ele parece marcar toda a civilização ocidental e por vezes ser o seu destino – (…) um pensamento que nega a existência de qualquer valor e do próprio princípio de valor, proclamando que a vida não se fundamenta em nada e que não faz sentido procurar-lhe o significado. O termo foi usado pela primeira vez nessa acepção em finais de Setecentos por um escritor alemão, Friedrich Jacobi, que acusava o filósofo idealista Fichte de ter retirado todo o fundamento à realidade pondo no lugar de Deus a arbitrária actividade do Eu, do sujeito” (Magris, o.c.).
Em assim sendo, um Putin com doutrina (ideias, valores, convicções) e, em simultâneo, nihilista, como o descrito por Eltchaninoff, oferece-se com(o) uma (pelo menos) aparente contradição – em especial, se não vislumbrarmos que por debaixo do manto diáfano de uma variegada gama de citações e autores inscritos em alocuções do dirigente russo, existe a nua vontade de poder (sovietismo retardado, império, guerra).
Putin está muito longe de ser um filósofo, alguém que aqueles que com ele lida(ra)m (de perto) algum dia descreveriam como um intelectual. Entre os mais próximos, gosta, sobretudo, de falar sobre o contorno das regras na faculdade (de Direito, que frequentou em Petesburgo) ou no (seu) mundo da espionagem, bem como das façanhas no desporto – o judo é a verdadeira filosofia. E, todavia, nado e criado numa Rússia e União Soviética em que a filosofia e cultura (russas) eram alvo de verdadeira reverência – e, nomeadamente, ao nível académico, em todos os cursos, e nunca negligenciadas ou desprezadas -, sendo natural de São Petersburgo, ela mesma uma verdadeira "capital intelectual", Putin foi exposto a um amplo conjunto de autores, suas teorias e mundividências. Mais, em regressando à Rússia da (ex) RDA, onde estivera durante anos como espião, em um período no qual a filosofia estava de moda (no seu país), e, já na Presidência da Federação Russa, em se encontrando rodeado de inúmeros speechwriters e membros do seu inner circle para os quais as leituras são uma necessidade e um entusiasmo (guia absoluto para a acção), Vladimir, que não lê jornais nem confia na internet, viu-se, pois, face a um mar de referências ensaísticas e literárias (podendo o dirigente russo, como já vimos, ser também comparado a personagens de relevo da literatura mundial, no que o filósofo, autor da monografia que aqui se recenseia, hesita momentaneamente – porventura, porque entrar exatamente na cabeça de Putin não seja o exercício mais fácil: "é talvez, como Dmitri Karamazov, o herói de Dostoiévski, de uma «natureza larga», simultaneamente cínico e idealista, de um modo sincero em ambos os casos"). E, aliás, percebeu que mobilizar uma inteira nação, com as características daquela que lidera implicava arraigar o seu discurso, que se impunha inspirador, no interior da história das ideias, das crenças que perpassavam aquele povo.
Dos discursos e entrevistas de Putin, Marx está ausente – e se, a título excepcional, naquelas surge, é apenas para merecer uma crítica. Putin disse sempre não acreditar na ideologia comunista. Tendo integrado os serviços de inteligência soviéticos, observou por dentro a falência económica da URSS. De aí, e por oposição a um modelo de planeamento centralizado, tender a uma inclinação liberal no domínio económico (todavia, e diferentemente, a sua família assentara arrais no comunismo: o pai de Putin é membro do Partido Comunista, trabalhador qualificado em fábrica de vagões ferroviários que combateu na Segunda Guerra Mundial. O avô do Presidente russo, igualmente comunista, foi cozinheiro de Lenine e Estaline).
Vladimir, de qualquer modo, cresce (imerso) na cultura militarista própria da URSS, forma de vida que permeava todos os aspectos da existência individual e colectiva do "homo sovieticus" (exaltação de heróis, praxes viris, confusão e não separação entre um estado de paz e um de guerra, eficácia militarista nas relações interpessoais). Sendo certo que nunca esteve em combate, já comandante-em-chefe Putin revelaria, dir-se-ia, uma postura ainda mais marcial do que se tivesse combatido. Se Ieltsin recusara um "Julgamento de Nuremberga" para os líderes soviéticos (juízo que lhe havia sido expressamente proposto por um dos seus), Putin, quando subiu ao poder, não só ratificou aquela posição (do seu predecessor), como recusou qualquer exercício de memória e de trabalho sobre o passado do/pelo povo russo. Tal viria a permitir que nunca o opróbrio, nem um verdadeiro pensamento crítico emergisse sobre o período da URSS e as principais ideias/convicções/crenças/comportamentos/modos de vida que o sustentavam. Logo, e ainda, tal omissão deu azo a que tais ideais pudessem (re) florescer. A complacência com o sovietismo – a queda da URSS passa, o que é muito significativo, nos discursos e entrevistas do atual Presidente russo, de uma tragédia humanitária a uma tragédia política, aliás, a maior do século passado, ou seja, registe-se devidamente, mais do que a II Guerra Mundial, o nazismo, ou a revolução bolchevique – surge, pois, como uma das marcas do trajecto de Putin.
Este homem nascido em 1952, em Leninegrado, filho de mãe crente – que, do ponto de vista profissional, foi fazendo biscates ao longo de toda a vida – e de um pai ateu, evidenciou, como político, uma grande capacidade/habilidade de dar confiança a um seu interlocutor e de, em permanência e sem hesitações, se lhe adaptar. Os serviços secretos, entendeu, ainda, agora, desmoronada a URSS, já sem uma ideologia e um partido único a quem servir, eram a entidade mais idónea para tomarem as rédeas do país, com o intuito de servirem apenas o Estado. Na Presidência, e na recuperação do passado russo, a ideia de uma superioridade moral daquela pátria – e o amor à pátria teria sido o principal a reter dos tempos soviéticos, afirma, entretanto, selecionando e apagando daquelas eras o que lhe era conveniente no presente – escorada na vitória sobre os nazis na Segunda Guerra Mundial. Na ambiguidade no que concerne à sua postura perante URSS e na ideia de Império, registe-se o seu modo de aproximação aos grandes símbolos nacionais: "a bandeira russa não será nem a bandeira imperial, nem a bandeira soviética, mas a bandeira branca, azul e vermelha da Rússia libertada do czarismo e da revolução de Fevereiro de 1917. As palavras do hino nacional serão reescritas, mas por aquele que compôs o hino soviético: Sergei Mikhalkov, o célebre escritor da era comunista, pai do cineasta. A melodia continuará a ser a do hino soviético. O brasão de armas, com a sua águia de duas cabeças, prestará o tributo devido à Rússia imperial. Mas a bandeira do exército continuará a ser a do Exército Vermelho" (p.20).
O ataque da NATO, sem mandato da ONU e por motivos morais, à Sérvia e Kosovo, aliados históricos da Rússia enfureceu a população deste país e seus mais altos dignitários. Nas palavras de Michel Eltchaninoff, "[estou convencido de que] a carreira política de Putin ficou marcada por um plano de vingança relativo a este episódio" (p.22). Nas invasões da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, a "retórica humanista" foi usada, por Putin, de forma quase paródica (e o mesmo se diria, não fosse ainda mais trágica, da invasão da Ucrânia em 2022 e da alegação de libertação do povo ucraniano das garras de nazis, ainda que este livro de Eltchaninnoff nos evidencie uma continuidade e acentuação de pronunciamentos do Presidente russo, e seus sequazes, nomeadamente os media estatais (p.121), com tal conteúdo, ao longo da última década – e não exclusivamente no lançamento da guerra de invasão à Ucrânia, ainda que aí de modo mais acentuado e brutal). Ao longo dos anos, Putin reabilitou figuras sinistras do tempo soviético e manteve uma imagem soviética do poder na Rússia. Nas palavras do político e jornalista Aleksandr Morozov, Putin "está convencido de que existem centros mundiais – as potências nucleares – e de que as organizações internacionais têm uma importância muito secundária na relação com essas potências (…) Não esconde um certo desprezo pelos pequenos povos, em particular por aqueles que são vizinhos da Rússia".
Putin cita, em diversos discursos, nomeadamente nos primeiros anos no poder, Kant. Não cita Platão, Rousseau ou Leibniz. Chega a propor-se enumerar as condições que o filósofo de Konigsberg aduzia rumo a uma paz perpétua. Depressa se percebe, contudo, que, apesar de se sopesar São Petesburgo como capital europeia e de uma racionalidade política frente a uma Moscovo mais patriarcal e religiosa, Vladimir seria muito mais filho da dimensão imperial e hierárquica, também manifestadas naquela urbe mandada construir por Pedro I do que outra coisa. Kant é, assim, uma senha, a enésima manifestação de dissimulação, para uma aproximação aos ocidentais, a quem se promete uma Rússia europeia, sem uma "via específica", um nome instrumental que faz parte da tática/manha – tomada da filosofia do judo, que Putin vê e consubstancia como consistindo em um modo de reverência face aos mestres, aos anciãos, forma de moderação, de não uso desmedido da força, de espera para ver o que outro vai fazer – de aproximação difusa ao Ocidente, concretizemos a metáfora política – e espera paciente para desferir o golpe no momento tido como aquele em que do outro lado menos se espera. Do ponto de vista económico, tal como no político, Putin, nos primeiros anos de liderança política da Rússia, apresenta-se como um liberal. O seu principal conselheiro económico de então, hoje um libertário liderando um think tank em Washington, não o vê como campeão da desregulação, antes mais em uma via intermédia entre o liberalismo hard e o socialismo, ainda que o entenda com mais inclinação liberal do que o mainstream europeu da época. Quanto a Putin ser um democrata liberal, uma rápida revisão pelas suas primeiras atitudes – desencadear de uma guerra e o ataque a dois oligarcas que possuíam media importantes no país, de imediato nas mãos de Putin -, permite um esclarecimento bastante de como tal nunca passou de uma ficção. De resto, uma das primeiras medidas que impôs na sua governação foi a de restaurar o hino soviético. As figuras históricas que sempre citou como favoritas foram Stolípine, Primeiro-Ministro com mão de ferro de Nicolau II, Pedro, O Grande e Catarina II.
Desde a perestroika que a Rússia pré-revolucionária (pré-1917) faz as delícias da elite. Pensadores, artistas, intelectuais exilados (à época) são, agora, recuperados, como tendo mantido a pureza da alma russa. Um destes homens, Ivan Ilyin, filósofo, especialista em Hegel, opositor feroz da Revolução de 1917, passará a ser o mais citado dos filósofos por Putin. No entender de Ilyn, há tribos – flamengos, catalães, bascos, etc. – que não podem subsistir por si e necessitam de uma potência a seu lado. Também as nações mais recentes e vizinhas, constituem parte da grande potência, sem as quais aquela ficaria desmembrada. E o Ocidente iria cavalgar sobre aquelas por não aceitar a singularidade russa, ainda que com a 'desculpa' de o fazer em nome da(s) liberdade(s). Este tipo de elocubrações parecem guiar o presidente russo – mesmo que, e ao mesmo tempo, e passe por cima dos iniciais encómios de Ilyin a propósito de certos aspectos que apreciara no surgimento do nacional-socialismo, com o qual se incompatibilizará, na medida em que se recusa a convencer os emigrados russos intelectuais a militarem na causa de apoio aquele movimento, sendo expulso da Alemanha e exilado na Suíça, tendo mais tarde criticado fortemente o nacional socialismo, desde logo por anti-religioso e anti-cristão. Diversamente, anotava Ilyin, Franco e Salazar haviam criado regimes que (os próprios) não consideram fascismos e incluem demandas que o filósofo entendia que um regime político devia prosseguir, evitando situar-se entre os totalitarismos e os fascismos, mas também não aderindo a democracias liberais (a que Ilyin também chamava "democracias formais").
O ataque de um conjunto de rebeldes chechenos a uma escola em Beslan, a 1 de Setembro de 2004, que redundou na morte de centenas de pessoas, entre as quais mais de 80 crianças, terá resultado em uma "viragem conservadora" no pensamento de Vladimir Putin. A partir de então, a necessidade de aliança com a Igreja Ortodoxa russa tornou-se-lhe um imperativo (óbvio). Nomeadamente, para educar/moralizar a sociedade. Nos seus discursos, podia ler-se que "os valores morais, sem os quais não podem viver nem a humanidade nem o homem concreto, só podem ser religiosos". Neste contexto, a defesa do patriotismo será combinada, no seu pensamento, com a necessidade do recurso à tradição e, nesta, muito claramente, aos valores cristãos – de que se pretenderá porta estandarte (a Forbes, em 2013, considera Putin o homem mais influente do mundo) – e às organizações militares. A defesa da família tradicional (nas alocuções de Putin, com o deslizar para a homofobia), mas ainda a crítica ao "cada um por si", ao egoísmo e à intolerância – que aponta como graves pecados a Ocidente – integrarão a sua interpretação da realidade, na qual está presente, igualmente, a denúncia da perda da centralidade do livro e da diminuição da cultura geral em favor de um mundo centrado no digital e da internet, da qual desconfia ("No mundo contemporâneo, as crianças não aprendem apenas na escola. O clima moral e ético da sociedade como um todo depende em grande parte do que elas vêem, ouvem e lêem"). Putin não tem, nem usa, email.
Em um país de desigualdades económico-sociais gritantes, em que se assiste a uma fuga massiva de cérebros e em que o retorno a casa dos milhões de russos na diáspora se afiguraria urgente, Putin lançou programas para promover o russo em vários países. Outro vector do «mundo russo» é a religião ortodoxa em que aquele assenta – ainda que Putin procure não produzir um discurso que exclua cidadãos que se vinculam a outras religiões, dado que milhões de russos, por exemplo, são muçulmanos. O Presidente russo conquista muitos políticos europeus que se convertem à sedução do rublo e integram várias estatais russas (“laços cada vez mais estreitos com os movimentos populista e de extrema-direita [mas também diversos políticos sociais-democratas de diversos países europeus que vão trabalhar para empresas russas, sob controlo do Kremlin], em particular com a Frente Nacional, em França. O presidente russo conta com a ascensão e com uma vitória de Marine Le Pen. Esta, por sua vez, tem uma grande admiração pelo presidente russo (…) Na Europa, a audiência de Putin está em crescendo”).
A vitória de um candidato democrata pró-americano, em finais de 2003, na Geórgia, bem como a vitória do candidato pró-Ocidental, em 2004, na Ucrânia, fazem com que Putin se veja perante um conjunto de forças hostis à sua volta, algo que atribui às manobras da CIA. Entretanto, a questão demográfica torna-se uma obsessão (sua); não apenas um problema social, mas moral: o declínio, neste âmbito, na Rússia reforça os apelos de Putin à família tradicional e acende a sirene do incómodo que sente face às grandes cifras ao nível de abortos realizados naquele país. Conservador, sim, anui: confia e preserva os valores tradicionais, mas sempre com o intuito de melhorar a presente condição (russa). Em 2013, Putin repudia, publicamente, a ideologia soviética, o conservadorismo da Rússia pré-1917 e o ultraliberalismo ocidental (Hollande fará aprovar a lei que possibilita casamento entre pessoas do mesmo sexo; em 2013, no Reino Unido e País de Gales é aprovada uma lei no mesmo sentido).
Autores como Nikolai Daniliévski e Constantin Pobedonotsev estão entre os pensadores conservadores em que Putin pode ancorar, mas quem ele mais cita agora é Constatin Leontiev – um homem para o qual o cristianismo de Dostoiévski será demasiado «adocicado», humanitário, preferindo as formas severas e hierárquicas da Igreja bizantina (nota: a dado momento, para Putin, Dostoiévski é também figura trazida, em permanência, à colação, mesmo que truncado, pouco aprofundado ou descontextualizado). Leontiev previu uma Europa federal, capaz de engolir a Rússia e a sua especificidade. Criticou a Europa Ocidental por não reconhecer já um princípio superior e andar perdida e sem sentido, não produzindo, neste tempo, santos nem génios. Foi considerado um precursor de Oswald Spengler. Ernest Junger ou Carl Schmitt serão outros pensadores, não russos, mas conservadores, nos quais podemos detetar influências em Putin. Contudo, e em síntese, a viragem conservadora de Putin não beneficiou, ao contrário do que sucedeu nos EUA, de uma reflexão filosófica profunda, antes resultando de um aproveitamento ad hoc, de determinados autores com os quais nunca se entrou – nem pretendeu entrar – em diálogo denso, para fins políticos de prazo imediato.
Desde o século XIX, duas grandes correntes de pensamento atravessam a Rússia: de um lado, os ocidentalistas, que entendem que o destino russo é ser parte integrante da Europa, devendo, em consequência, abandonar as pretensões imperiais ou a limitação das liberdades, tal como a defesa do nacionalismo e da identidade ortodoxa (Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen ou Vissarion Belinski são cultores desta corrente); do outro, os eslavófilos, pretendem promover um génio nacional baseado numa visão religiosa do mundo, nas virtudes do povo russo ou nas particularidades da sua organização. Embora diversos observadores propendessem a considerar a hipótese eslavófila como a perspectiva em que Putin se integraria, porém, os seus iniciais proponentes, como Alexis Khomiakov ou Ivan Kireievski rejeitariam existir naquela corrente de pensamento original uma via específica política, muito menos de cariz imperial: “a visão eslavófila é romântica (…) [e] contém um elemento universalista”. No dizer de Berdiaev, “Khomiakov via a missão do povo russo, não na vida política, mas na vida suprema do espírito”. A sociedade era “a união orgânica de um amor livre”. A ideia de império seria profundamente ocidental e, aliás, romana. Quando muito, Putin ancorar-se-á em um eslavófilo de segunda geração, Nikolai Daniliévski (“é hoje o principal inspirador da política de Putin, porque mostrou que o Ocidente não é universal”, p.66). Este pensador propôs a união de todos os eslavos sob a liderança russa. Na sua perspectiva, nunca a Rússia poderá fazer parte da Europa. Tal, deve-se ao facto de a Rússia ser grande demais e poderosa em demasia para ser, apenas, uma grande potência europeia. A Europa, quando não explora a Rússia, rejeita-a, sustenta. Assim, “a inimizade entre a Rússia e a Europa é estrutural”. Para Daniliévski, a peculiaridade do povo russo é a sua osmose com o líder, criando um “entusiasmo disciplinado”. Os russos são o povo eleito por Deus, povo que em si encarna a religiosidade – humildade, respeito, repugnância pela violência. Para realizar a sua finalidade, a Rússia deve libertar-se do Ocidente e, para o fazer, deve combatê-lo. O livro “A Rússia e a Europa”, deste pensador, tornou-se a Bíblia das actuais elites russas. Será Daniliévski e Dumilev a justificar, ainda, a ideia de superioridade não apenas social e moral, mas também genética do povo russo sobre os outros povos (a noção de uma força cósmica, de uma energia interior, de coloração biologicista, exaltada como decisiva por Dumilev). Tal não se reconduzirá exatamente ao nacional-socialismo "porque não estamos diante de uma ideologia de destruição do outro" (p.80). Embora a prática russa na Ucrânia, nestes idos de 2022, pareça intentar uma interpretação dessa índole. Ao contrário do que se pensa, Aleksandr Dugin não é guru de Putin, embora as ideias euroasiáticas possam desempenhar um papel nas concepções do líder russo – e a doutrina euroasiática, que tem em Piotr Savitski um dos seus representantes, refuta a separação entre a Europa e a Ásia e postula um «terceiro continente», um mundo geográfico à parte, a Eurásia. Os euroasiáticos criticam o eurocentrismo, mas reveem a história russa também, de modo a acomodar os povos não russos da região (e, por exemplo, o islão não é, para esta corrente, um inimigo).
Um outro autor que foi acarinhado pelo poder político russo foi Alexandr Soljenítsin. O autor de “O arquipélago do Gulag” regressou à Rússia, do exílio na Suíça, em 1994. O escritor é partidário de um poder forte e de uma via específica para a Rússia. Não quer para o seu país uma democracia à maneira ocidental. Preocupa-se com o «cerco» da NATO à Rússia. Embora Soljenítsin se queixe de que Putin não seguiu os seus conselhos (nomeadamente, sobre democracia local e ecologia), aquele irá erigir o escritor numa figura grada do regime.
A 18 de Março de 2014, Putin profere “o discurso mais importante da sua vida”. Aí, anuncia uma efectiva mudança do curso da história: como medida de retaliação pela revolução democrática ucraniana – a que os russos chamam “golpe da junta fascista de Kyiv”) – a Rússia é o país que, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, anexa uma região de um Estado europeu. A humilhação do fim do império começava a ser reparada, sem se olhar meios ou custos, ou a qualquer respeito pelo próximo (ucraniano).
A guerra de agressão à Ucrânia imposta desde 24 de Fevereiro de 2022 como que já estava inscrita desde há muito nos planos de um homem que a 21 de fevereiro convoca o seu Conselho de Segurança, transmitindo tal reunião pela televisão estatal e, num gesto que não foi de encenação (“longe de ser uma encenação, estamos a testemunhar, ao vivo, a reunião do círculo mais íntimo do poder por iniciativa exclusiva de Putin”, p.127), exibe um poder pessoal implacável e cruel, desfazendo, para todo o país e o mundo observarem, alguns dos mais próximos – que tremem, balbuciam, gesticulam, lançam interjeições embaraçadas, gaguejam, respondem finalmente como autómatos (Eltchaninoff descreve, com requinte cinematográfico, toda a cena de terror psicológico engendrada pela hybris putinista): “esta sequência shakesperiana mostra que Vladimir Putin exerce agora o poder de forma solitária e cruel sobre o seu círculo mais próximo” (p.128). Putin parece, então, querer assumir as vestes não apenas de um chefe de estado, mas de um rei-filósofo da missão civilizacional russa. O Presidente russo não raciocina em termos de utilidade (“se é que alguma vez o fez”), pretende que a sua guerra seja global e caiu num mundo paralelo.