O homenzinho estava completamente assarapantado e não havia quem não lhe desse razão para isso. Rodearam-no de simpatias, mas o problema é que parecia não falar língua nenhuma, aqui e ali umas expressões em árabe e pouco mais. Respirava ofegante, tremia como varas verdes e não conseguia explicar de forma coerente a trabusana em que estivera metido. A bordo do navio norueguês H. Westfal Larsen tornara-se o centro das atenções. Havia, de vez em quando, uma voz autoritária sobre o vespeiro dos murmúrios. “Caraças! Deixem respirar o homem!” Na última vez que estive na Noruega, caraças dizia-se faen, calculo de 1950 para cá a expressão não tenha sido especialmente alterada, mas enfim, vai aí como uma espécie de bengala para ajudar a recrear os acontecimentos desse dia 21 de junho, o Verão a começar, se é que me entendem. Um tragédia no Mar Vermelho, poderia ter escrito Agatha Christie. O Larsen tinha sido a primeira embarcação a chegar ao lugar onde antes estivera o Indian Enterprise, um navio britânico que fazia a rota da Índia e ia a caminho de Calcutá carregado de explosivos. Carregar seja o que for de explosivos é o primeiro passo para qualquer coisa explodir e foi isso mesmo que aconteceu ao Indian Enterprise. BUM! Uma nuvem negra tapou o céu do Mar Vermelho e em poucos minutos a nave era arrastada para o fundo do mar levando consigo todos os seus tripulantes menos um: o atarantado homenzinho que não dizia lé com cré.
As notícias começaram a chegar via rádio. A Marinha Britânica reconhecia o trajeto do Enterprise e informava que levava não apenas um forte carregamento de material especialmente suscetível de ir pelos ares de um segundo para o outro como também 74 tripulantes, dos quais oito eram oficiais. Mas, os tripulantes… nem vê-los, oficiais ou subalternos. O mar trata todos por igual e não escolhe patentes. E, já agora, a morte também não.
O comandante do H. Westfal Larsen resolveu pôr um pouco de ordem naquela tranquibérnia. Recolheu o atoleimado sobrevivente ao seu camarote particular, fez os contactos que os acontecimentos exigiam, e mandou o piloto embicar em direção à cidade de Suez, no_Egipto.
Livre daquela sarabanda de gente que atabafava o infeliz (bom, infeliz é capaz de ser um bocado exagerado se tivermos em conta o que aconteceu aos seus 73 companheiros), lá conseguiu entabular um diálogo ou algo que se parecesse com isso. O sobrevivente não tinha documentos. Desfazia-se em obrigados constantes e afirmava com toda a seriedade que os noruegueses lhe tinham salvo a vida e acrescentava que não vira mais nenhum outro tripulante debater-se à tona de água em redor dos poucos destroços do navio que haviam sobrado à superfície. Em seguida calou-se. Entrou num estado catatónico, ou coisa que o valha, e deixou de ter utilidade. Dele não se sacava nem mais uma palavra.
Teorias da conspiração
Os ingleses não são muito dados a desperdícios. A perda do Indian Enterprise e da sua carga de explosivos (e já agora dos marinheiros que nele navegavam) deixou-os de sobremaneira irritados. O comandante do navio que explodira em pleno Mar Vermelho, a caminho de Calcutá, era um tal de T.R. Campbell, um tipo considerado sensato e experiente e incapaz de qualquer tipo de manobra ou exercício disparatado que pudesse pôr em risco carga e tripulantes. O Almirantado começou a fazer perguntas, muitas perguntas, e sobretudo a querer respostas e depressa que já se fazia tarde, sobretudo para uma gente que faz da pontualidade uma idiossincrasia.
O Daily Graphic, um dos primeiros jornais ilustrados publicados no_reino_Unidos, e que seria mais tarde comprado e engolido pelo Daily Sketch, trouxe a notícia em primeira mão: os serviços secretos britânicos do Médio Oriente tinham-se posto em campo. Ou melhor, tinham-se deitado à água. Estavam encarregues de fazer um levantamento exaustivo sobre tudo o que poderia ter sucedido a bordo do Enterprise. Um grupo de funcionários tinha sido composto e partira de imediato para o local do naufrágio tentando obter pistas para resolver o mistério. A imprensa exaltou-se com esta medida. Vivíamos nos primórdios da Guerra Fria, mas ela estava aí e era indisfarçável. Pelo que as teorias conspirativas começaram a ser alimentadas com a sem-vergonhice com que os boatos se espalham, fazendo mais danos do que uma mancha de óleo em toalha de linho branco.
“Os funcionários dos serviços secretos da nação vão fazer um relatório minucioso sobre os acontecimentos para ficarmos a saber, com toda a certeza possível, se houve um acto de sabotagem a bordo do Indian Enterprise”, deixou sair a público, em comunicado, o M16 ((Military Intelligence, Section 6), a agência britânica que lida com situações decorridas no estrangeiro. Nos meses anteriores, outros acidentes do género, haviam sucedido um pouco por todo o mundo, embora sem a gravidade deste, e a desconfiança era grande, segundo o Graphic, “em relação a fanáticos comunistas que têm uma habilidade especial para estes métodos de actuação”. Retido no Suez, o sobrevivente catatónico, desapareceu de circulação. Talvez alguém tenha ficado com a sensação de que possuía um inconfundível olhar de culpado.