Rina Sawayama. “É estranho como continuam a não pensar em mim como britânica”

Rina Sawayama. “É estranho como continuam a não pensar em mim como britânica”


É uma das mais fascinantes artistas do mundo da música. Rina Sawayama apresentou o seu colorido e variado reportório no NOS Primavera Sound, num dos mais surpreendentes concertos da edição. O i conversou com a cantora sobre o seu processo de criação e sobre o seu novo disco, Hold This Girl.


A primeira audição de SAWAYAMA, primeiro disco da cantora nipo-britânica, Rina Sawayama, pode ser uma overdose sensorial. Com influências que vão desde o nu-metal à pop do início dos anos 2000, muitas vezes o ouvinte perde-se entre referências a Limp Bizkit com a Britney Spears.

O espetáculo ao vivo da cantora, que o i teve oportunidade de ver no festival NOS Primavera Sound, no passado dia 10 de junho, causa o mesmo efeito visual, com Rina acompanhada por duas dançarinas num violento headbang acompanhado por riffs de trash metal. Apesar de poder ser demasiada informação para digerir numa primeira audição, são todos estes elementos que tornam a cantora numa das mais interessantes artistas do momento, conseguindo dar sentido a toda esta palete sonora.

Antes do seu concerto, o i esteve à conversa com Rina Sawayama para perceber como conseguiu alcançar este excêntrico som, como foi colaborar com o Elton John e como o icónico músico a ajudou a superar a regra que não a “considerava suficientemente britânica” para receber prémios de música no Reino Unido.

 

Como é que têm sido os últimos dias em Portugal?

Cheguei uns dias antes do festival e tenho ficado numa vila remota nos arredores do Porto para gravar alguma música. Trouxe alguns amigos, que também são produtores e compositores, e temos criado algumas canções enquanto aproveitamos para relaxar.

Agora que se está a aproximar o concerto, como é que se sente pelo regresso aos festivais? Sei que este não é o seu primeiro concerto, mas como tem sido o regresso aos concertos depois das restrições da covid-19?

Tem sido uma experiência ótima porque todos partilhamos esta sensação de estarmos excitados por podermos regressar aos festivais. É também interessante porque, ao contrário dos anos anteriores, agora temos dois anos de lançamentos condensados num único festival, é bom podermos ouvir ao vivo toda a música que foi lançada nos últimos tempos num único espaço. 

Prefere dar concertos neste tipo de eventos ou em salas fechadas e em nome próprio?

Adoro dar concertos em festivais, são muito diferentes de quando fazemos concertos em nome próprio, são uma experiência muito mais espontânea. Quando subimos para cima de palco, nunca temos a certeza do que vai acontecer ou de quantas pessoas vão estar na audiência. É muito divertido e muito desafiante enquanto artista.

Um dos grandes desafios é também conquistar uma audiência quando existem tantos palcos no mesmo evento. O concerto da Rina está marcado para as 19h, qual é o plano para cativar os espetadores quando ainda é tão cedo e muitos fãs ainda estão apenas a aquecer?

Como ainda não fiz assim tantos concertos, uma das coisas que ainda estou a aprender é como lidar com esse tipo de eventos que não conseguimos controlar. O meu objetivo é cativar nem que seja o menor número possível de pessoas para que estas se aproximem o máximo possível do palco e se divirtam.

Para quem ainda não a conhece, antes de enveredar pelo mundo da música, a Rina estudava num curso chamado Política, Psicologia e Sociologia. Como é que aconteceu esta transição?

Sempre quis ser música, mas apaixonei-me por aquilo que estava a estudar na universidade. Achava que ia seguir uma carreira no mundo da política ou da psicologia, mas estava sempre a voltar à música e a envolver-me em projetos. Sinto que, na minha vida, a música sempre esteve em primeiro lugar, mas fui desviando-me deste caminho para fazer algo diferente. Fico muito feliz por ter conseguido acabar o curso e ter estado na universidade ajudou-me a aprender muitas coisas diferentes que, caso contrário, nunca teria aprendido se tivesse assinado logo um acordo com uma editora quando tinha 18 anos.

Acha que estudar esse tipo de assuntos a ajudou a melhorar enquanto compositora?

Definitivamente, permitiu-me escrever letras com um significado muito mais amplo.

Também trabalhou como modelo. Como é que o mundo da moda e da música colidem no seu trabalho?

Diria que ajudou muito mais num contexto exterior à parte da composição. Ajudou-me mais enquanto artista. Durante sessões fotográficas, a gravar videoclipes, por exemplo, uma vez que percebo muito mais sobre iluminação e o que está a acontecer no set. Ajudou-me a perceber e a adaptar melhor em relação ao aspeto técnico desta parte do meu trabalho.

Era importante para si, enquanto artista, ter esta imagem completa, que complementa a música com o vídeo e a imagem?

Definitivamente, queria criar um mundo em torno de mim que ajudasse as pessoas a compreender-me melhor. Em algumas ocasiões, a minha música pode ser um pouco selvagem e, dentro do pop, é sem dúvida pouco convencional. Para abordar estes temas acho que ajuda ter uma imagem visual que possa ajudar a perceber onde é que esta canção se encaixa. Quando estou a criar uma canção e já consigo imaginar o videoclipe na minha cabeça sei que esta está quase concluída.

Usou a palavra “selvagem” para descrever a sua música, outro adjetivo que podia ser usado é “excêntrico”, uma vez que, por exemplo, no seu disco de estreia, SAWAYAMA, a sua música consegue combinar tantos estilos e influências diferentes, como o nu-metal ou a música pop do início dos anos 2000. Quando é que se apercebeu que esta mistura pouso usual poderia funcionar e fazer boa música?

É um momento difícil de identificar. Escrevi o meu primeiro disco de forma independente, ainda não tinha assinado por nenhuma editora. Na altura, mostrei o meu disco quase terminado à minha editora atual (Dirty Hit, editora independente britânica) e eles também gostaram e perceberam o que estava a tentar fazer. Estou apenas a tentar divertir-me e sinto que iria aborrecer-me rapidamente se me tivesse colado apenas a um estilo. O meu grande desafio enquanto compositora é escrever uma música pop em cada estilo existente (risos), mas conseguir que a música continue a soar a mim e a soar bem. 

Um tema muito importante nas suas canções é a inclusão, seja da comunidade LGBT ou até de um ponto de vista racial. A sua música também é muito inclusiva, ao conseguir fundir todos estes estilos musicais de forma orgânica. É esta a melhor forma de ilustrar os temas que gosta de abordar?

Esse é um ponto de vista interessante, mas nunca tinha pensado na minha música dessa forma. Tenho uma visão daquilo que quero que a minha música seja. Pode ser pouco convencional, mas queria injetar um pouco de diversão na vida das pessoas. Sinto que sou muito séria enquanto letrista, mas em termos de produção gosto de mostrar as capacidades e os limites da pop. Este é um estilo musical que amo muito, por isso quis que o meu primeiro disco fosse uma ode à pop. Quando estamos a crescer e chegamos à adolescência, muitas pessoas dizem que a música comercial não é fixe, eu inclusive, mas arrependo-me dessa posição e, agora, quero mostrar que a pop também pode ser fixe. Quero homenagear todos os estilos que ouvia quando estava a crescer, não só a pop, também o nu-metal, o indie, e conseguir juntar estes dois mundos que parecem tão diferentes.

Como é que um estilo musical como o nu-metal, tantas vezes no passado associado à misoginia, se encaixa no mundo da Rina Sawayama? Foi uma forma de desconstruir este mito?

É interessante pensar que muitos dos produtos culturais que consumíamos quando estávamos a crescer durante o início do século não seriam aceitáveis atualmente e só em adulto é que, olhando para trás, consigo perceber que algumas dessas coisas eram erradas, também devido à mudança de discurso no mundo. Mas, tal como já disse antes, estava a tentar honrar as minhas influências e a minha infância. Por exemplo, costumava ouvir mesmo muito a música do Justin Timberlake, apesar de também ser muito fã da Britney Spears, e agora percebo a complexidade da situação deles enquanto casal. Mas essa é influência, tal como o nu-metal, que está tão enraizada em mim que não me consigo livrar dela, por isso, gosto de pensar que estou a tentar criar uma narrativa diferente para esses estilos musicais. 

Estávamos a falar sobre temas que podem ser controversos ou sensíveis para uma certa parte da população. Alguma vez sofreu uma interação mais negativa ou até violenta durante um espetáculo ao vivo?

Felizmente, não. Todas as pessoas e fãs tem sido muito queridas comigo. Algo que também pode ajudar é o facto de ter deixado de visitar tanto as redes sociais. Estou a tentar encontrar uma forma de interagir com os meus fãs fora deste tipo de plataformas, especialmente o Twitter, que acredito que pode ser muito tóxico. Sinto que se contactar com os meus fãs aqui estou a incentivá-los a perder o seu tempo num ambiente repleto de ódio e não é de todo isso que quero fazer. Neste momento, acho que prefiro muito mais estar no TikTok (risos). É muito mais engraçado e criativo. 

Por falar em receber algum ódio, achei muito interessante descobrir que o Elton John, que recebeu a sua dose de tratamentos injustos no passado, colaborou no seu disco. Como é que aconteceu esta interação?

Ele era fã do meu trabalho, o que ainda parece uma loucura de se dizer em voz alta (risos). Ligou-me, disse que adorava a minha música e começámos instantaneamente a dar-nos bem. Ele faz-me lembrar o meu grupo de amigos. É muito inteligente, divertido e generoso com o seu tempo, apesar de ser uma pessoa muito ocupada, tem sempre tempo para atender o telemóvel quando lhe ligo e oferecer-me alguns conselhos.

Acha que é importante ter um artista tão importante e com um legado tão longo como o dele a colaborar com jovens artistas, como é o seu caso ou da Dua Lipa?

Sim, é uma atitude muito saudável. Recentemente, também tive a oportunidade de falar com o Nile Rodgers (guitarrista e vocalista dos Chic) e ele explicou-me que está sempre a procurar novos artistas e está atento a novos lançamentos. Acho que é importante os artistas serem capazes de consumir arte e refletir o estado do tempo, porque, para mim, isso é o verdadeiro significado da arte, um reflexo do que está a acontecer no mundo exterior. Negar novas formas de arte é errado e ainda há muitas pessoas que não compreendem o valor de novos músicos. Isso é uma capacidade que também pretendo melhorar em mim mesma. Sinto que muitas vezes não tenho a paciência para descobrir música nova, mas quero mudar isso e ajudar novos talentos. 

Foi importante ter um ícone britânico a trabalhar no seu disco numa altura em que não foi considerada “suficientemente britânica” pelos Brit Awards e os Mercury Prize?

Contar com o seu apoio foi muito importante. Eu cresci em Londres, não me lembro de viver em mais nenhum sítio. Sempre vivi rodeada pela cultura dessa cidade, a sua diversidade, com uma grande mistura de pessoas e sons e uma enorme liberdade de expressão. É estranho que, por diversas vezes na minha vida, mesmo enquanto adulta, muitas pessoas continuem a não pensar em mim como uma britânica, por alguma razão estranha. Fico muito feliz por essa regra ter sido alterada e por agora muitos jovens músicos não precisarem de passar por esse processo e conseguirem alcançar mais sucesso nas suas carreiras por causa da visibilidade que estes prémios lhes possam trazer. 

Estava a falar há pouco sobre ajudar uma nova geração de músicos, mas com esta atitude pode já ter sido um grande apoio para muitos artistas que passaram por situações semelhantes, mesmo sem os conhecer.

Espero que sim. Foi uma situação muito stressante tentarem colocar esse tipo de barreiras no meu trabalho. Fico muito satisfeita por ter conseguido ter este tipo de conversa com estas cerimónias.

Sobe ao palco Cupra no NOS Primavera Sound onde irá apresentar algumas músicas do seu próximo disco, Hold The Girl, que vai ser lançado no dia 2 de setembro. Será que podia levantar um pouco da cortina e explicar o conceito deste novo disco?

Este novo disco foi escrito entre 2020 e 2021, totalmente em Londres, e é sobre os vários obstáculos que me restringiam enquanto adulta, mas também sobre abraçar a minha criança interior e uma análise sobre a minha infância, uma dualidade que me ajudou a chegar ao título Hold The Girl. Mas no fundo vai ter o mesmo ADN do SAWAYAMA, com um toque de experimentalismo e uma sensação de vastidão, muito sonhadora e ambiciosa, que marcaram o primeiro disco, apesar de ser mais influenciado por um conjunto diferente de estilos. 

No primeiro single do disco, This Hell, explorou o country-pop, um estilo que tem sido abraçado por muitos outros artistas da comunidade LGBT. É fã, por exemplo, do trabalho de Lil Nas X?

Eu amo o Lil Nas X. Ele quebrou tantos recordes e é tão icónico, é difícil de acreditar em tudo aquilo que ele já alcançou, mas faz sentido porque ele é um individuo extremamente talentoso e trabalhador. Acho que ele é um artista fantástico.

Em This Hell existe um efeito visual muito forte onde a Rina abre a música a falar sobre como viu um poster que diz que as pessoas LGBT vão para o inferno. O que é que inspirou este verso?

É baseado em muitas experiências dos meus amigos queer, que desenvolveram um trauma religioso. Alguns viviam em zonas conservadoras, estavam habituados a ir à igreja, mas acabaram por ser expulsos desta comunidade depois de revelarem que eram gays e, em muitos casos, diziam-lhes que eles iam parar ao inferno. Isto é algo muito comum nestas zonas dos Estados Unidos, e é algo que deixa uma cicatriz muito profunda nas pessoas, que se sentem envergonhadas e isoladas. Queria que fosse um alerta para mostrar que este é um problema real e que está a acontecer na nossa sociedade. Mas, tal como muitos traumas na nossa vida, tentei fazer uma música que fosse engraçada e divertida para ajudar a processar este trauma. Também queria que tivesse uma mensagem de empoderamento, para confortar as pessoas que ouviram que é errado serem como  são e perceberem que não estão sozinhas e que são amadas.

A Rina Sawayama vai para o inferno no final da sua vida?

(risos) Fui ao inferno, voltei e escrevi esta música.