Os primeiros meses do novo Governo do primeiro-ministro António Costa estão a dar razão ao velho provérbio político do secretário-geral do Partido Socialista, António Costa: “Os portugueses guardam más memórias das maiorias absolutas”.
Das socialistas, acrescento eu.
Até aqui, o Executivo não acertou uma.
Os aeroportos estão um caos.
As urgências fecham portas.
A descentralização é uma confusão e ninguém se entende.
Os aumentos estratosféricos dos combustíveis, e a insuficiência da resposta política, comem todos os dias a carteira aos portugueses.
E, no meio disto tudo, o primeiro-ministro pede candidamente às empresas que subam os salários 20% ao longo dos próximos quatro anos e que as semanas sejam reduzidas a quatro dias de trabalho. Mantendo tudo o resto constante – por exemplo a produtividade, o peso dos impostos ou a estrutura económica do país –, o nosso primeiro-ministro tem uma fórmula infalível para ultrapassar as agruras do tempo presente: os portugueses a trabalhar menos, os salários a subir, as empresas a pagar e a produtividade logo se vê.
A situação que vivemos na Europa e em Portugal não é compatível nem com estas histórias da carochinha nem com o empurrar dos problemas com a barriga.
Ainda a guerra não estava nos planos e já os portugueses intuíam que o futuro pós-pandemia traria dias de dificuldade. Quando foram chamados às urnas, em janeiro, os eleitores disseram que queriam estabilidade e um governo sem amarras à extrema-esquerda radical. O objetivo era cumprir um programa que elevasse o país ao patamar das nações desenvolvidas e prósperas na Europa. E assim premiaram o PS com uma maioria absoluta esmagadora que teve como dano colateral uma das principais características deste estilo de governação: o infinito dom de mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma.
As coisas não podem ficar na mesma. Portugal está em declínio acelerado e o PS não pode limitar-se a ser o mais meigo gestor da nossa decadência coletiva.
Ano após ano após ano, continua tudo por fazer no nosso país.
O novo aeroporto de Lisboa é discutido há mais de 50 anos.
O TGV é notícia desde os anos noventa mas ainda não fizemos um km de linha.
A regionalização anda para trás e para a frente, para cima e para baixo, e não sai da cepa torta e ainda bem digo eu, pese embora a nova narrativa seja misturar alhos com bugalhos, ou seja, baralhar regionalização com descentralização.
Temos estudos e livros-brancos e powerpoints para tudo. Mas é tudo por gozo intelectual porque fazer, tirar do papel, não é coisa que nos assista.
E agora, à frente dos nossos olhos, percebemos que o nosso Estado Social se está a desfazer.
Assistimos com espanto e horror ao fecho das urgências de várias especialidades e aos dramas pessoais que esses buracos no sistema criam.
Mas há quantos anos falamos da insustentabilidade do SNS? E das listas de espera? Ou dos 1.3 milhões de portugueses sem médico de família – muitos mais do que em 2015, “o ano em que virámos” a página da austeridade?
Indignamo-nos com a situação da saúde, e com toda a razão. Estamos cientes, porém, de que a Escola Pública é um desastre à espera de acontecer? Como reportou recentemente a revista Visão, em dez anos Portugal perdeu 19% do total do corpo docente e até ao fim de 2030 vão reformar-se mais de metade dos professores nos quadros. Houve crianças e jovens em Portugal que chegaram ao terceiro período este ano sem professores atribuídos a determinadas disciplinas. Já no próximo ano estaremos a falar de 100 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. É esta a Escola Pública de que queremos deixar aos nossos filhos e netos? Este é o resultado de uma educação pública refém da ideologia. Os fanáticos continuarão a ter razões para festejar. As famílias, dificilmente encontrarão alguma.
Infelizmente, a situação não se circunscreve à Saúde e à Educação. A idade média dos funcionários do estado é, pela primeira vez, superior a 50 anos, mesmo com o número de funcionários públicos a aumentar como não se via faz tempo. O que significa que todo o Estado está a colapsar em câmara lenta.
Que isto aconteça depois de sete anos de governo de frente de esquerda, de sete anos de políticas dos paladinos do Estado Social, não deixa de ser revelador da sua condição paradoxal.
Como é que se resolvem estes problemas graves?
Podemos fingir que está tudo bem e que os problemas desaparecem com palavras mágicas – e continuaremos a ver urgências a fechar e a educação a definhar.
Ou então podemos falar verdade aos portugueses e fazer as perguntas difíceis para que a sociedade encontre um novo consenso.
Que tipo de Estado queremos? A prestar que funções e a consumir que recursos disponíveis? E o Estado deve apostar em que áreas estratégicas de desenvolvimento?
As respostas vão certamente obrigar a trade-offs difíceis. Mas se não fizemos as perguntas certas vamos continuar a gerir a nossa decadência coletiva.
Para começar, eu diria que há três coisas que podemos fazer.
Primeiro, prestigiar os servidores públicos. Precisamos de uma função pública qualificada, flexível e bem remunerada. Como país, temos de exigir que a Administração fixe os seus melhores talentos. Os problemas com os médicos e com os professores são sintomas de uma doença profunda no aparelho de Estado que tem origem nos baixos salários, no sacrifício do mérito e do talento individual no altar de programas de progressão de carreira de inspiração soviética ou na ausência de liberdade de uma vida refém das colocações de um Estado centralizador. Precisamos dos melhores a servir os portugueses e o governo tem de repensar urgentemente as políticas de remuneração, progressão e recrutamento na função pública.
Segundo, precisamos de repensar a arquitetura institucional da burocracia – ou das estruturas intermédias. A inovação e a disrupção emergem da partilha de conhecimento e da mistura de perspetivas. Ter o Estado trinchado em pequenas parcelas, onde cada um é senhor da sua quinta, não ajuda a prestar um melhor serviço ao cliente – o cidadão – nem cumpre a função prospetiva do Estado: antecipar problemas e colocar em prática polícias que os mitiguem ou anulem. Questões como as alterações climáticas, o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ou a competição pela diferenciação exigem mais e não menos cooperação entre estruturas.
Terceiro, cumprir a reforma da descentralização. Tudo se tem exigido às autarquias do ponto de vista das políticas do Estado Social sem que, do ponto de vista da reorganização do Estado, se reconheça a centralidade da unidade política mais próxima do cidadão. As autarquias podem fazer mais e melhor do que o Estado Central, e fazê-lo com menos. Não há, por isso, argumento racional para que a descentralização não seja a “pedra angular da reforma do Estado”, como sinalizou o Primeiro-ministro em 2017.
Estes são três pequenos passos para começarmos a alterar este estado de coisas.
Há uma espécie de regra de ouro na vida pública para quem quer atingir objetivos. Uma espécie de pirâmide de atuação: no topo dessa pirâmide temos a estratégia (a visão), depois temos as políticas (que consolidam a visão), na camada inferior temos as táticas (os melhores caminhos para efetivar as políticas) e por fim temos os truques (isto é, o último recurso quando não temos estrutura nenhuma).
Em Portugal, a vida pública tem disto tudo. Mas pela ordem inversa. Temos muito truque e nenhuma estratégia.
Durante quanto tempo mais podemos dar-nos a este luxo sem que ele acabe em tragédia?