Em 2017, António Costa chamou-lhe a “pedra angular da reforma do Estado”. Antes disso, já em 2015, outro governo de outra cor política tinha dado passos para que se iniciasse o urgente e necessário processo de descentralização para as autarquias.
Chegamos a 2022, o debate continua e a reforma tarda em avançar.
Lamento dizer, mas o país não está a levar a discussão a sério.
As Câmaras, pelo menos boa parte delas, estão obcecadas com o envelope financeiro, perdendo de vista que se a questão se resumir apenas ao dinheiro, a descentralização como processo e como filosofia está morta à nascença.
As burocracias intermédias fazem o que sempre fizeram quando se afiguram mudanças: bloqueiam todos os processos de decisão possíveis.
E o Governo, agora livre do espartilho comunista e bloquista, apesar de mostrar boas intenções é incapaz de as acompanhar por boas ações.
Tudo visto e ponderado, a descentralização para as autarquias tem sido, até ao momento, pouco mais que sofrível.
O que é paradoxal, uma vez que temos um quadro de raro consenso nacional sobre o assunto: o Presidente da República é favorável, o Primeiro-Ministro é favorável (sei-o por experiência própria, uma vez que no final da primeira década do século XXI negociei com o à época presidente da Câmara de Lisboa a bem-sucedida reforma administrativa da capital), os autarcas são favoráveis e até o Ministro das Finanças é a favor da descentralização.
Então o que é que está a emperrar o avanço da reforma?
Para além das naturais resistências à mudança, que em Portugal são uma instituição com direitos adquiridos, há alguma falta de vigor do governo e também uma incompreensão clara, entre os autarcas, sobre as potencialidades da descentralização.
Façamos algumas perguntas importantes para centrar o debate. (1) Que problemas queremos resolver com a descentralização de competências? A resposta é simples: queremos colocar o Estado a prestar serviços aos cidadãos a tempo e horas, de forma justa e equitativa, e sobretudo com previsibilidade, com menos custos e mais eficiência. (2) Que funções queremos que o estado, central ou local, assegure? As respostas óbvias são Educação, Saúde, Cultura e Património. Por exemplo em Cascais, município onde iniciamos os processos de descentralização de competências em 2015, a Câmara já se substituiu ao Estado Central no melhoramento de todos os centros de saúde num investimento de 4.8 milhões de euros, avançou para a construção e ampliação de três centros num valor estimado de 15,2 milhões de euros, para um total de 20 milhões de euros. Para além da reforma infraestrutural, ainda assumimos a liderança dos cuidados de saúde de nova geração – com o programa de teleconsultas universais e gratuitas, com a cabine saúde e outros programas – e desenvolvemos o projeto Bata Branca, em parceria com a ARS-LVT e a Santa Casa da Misericórdia, o que permite hoje a todos os cidadãos de Cascais ter cobertura de médico de família ou equivalente. Também na Educação renovamos todo o parque escolar e estamos a construir novas escolas de raiz, em investimentos de dezenas de milhões de euros. Contratamos mais de 300 auxiliares de educação – nunca mais houve greves por falta de pessoal! –, recrutámos psicólogos e pagamos muito mais por aluno, por refeição, para que cada criança na Escola Pública em Cascais tenha uma alimentação decente. No domínio do Património, insistimos em negociações que levaram décadas mas que nos permitiram, hoje, ter o Forte de Santo António da Barra protegido da pilhagem e da degradação, aberto ao público e devolvido à população.
Logo, (3) as autarquias precisam de mais dinheiro para fazer aquilo que antes era feito pelo Estado? Não. E esse é o ponto central: se acusamos o Estado Central de fazer má gestão de recursos, não podemos pedir competências e responsabilidades tomando como contrapartida financeira os gastos atuais. Uma das vantagens da descentralização é a otimização de recursos. As Câmaras podem e sabem fazer mais, melhor e com menos custos para os cidadãos. Aliás, têm-no provado gerando anualmente superavits enquanto a Administração Pública gera défices crónicos.
O que deve estar no centro da luta das autarquias é uma descentralização integral de competências e responsabilidades, que não faça dos municípios tarefeiros do Estado Central na gestão mais básica da coisa pública. Dou mais um exemplo: o que deve mobilizar as autarquias é reivindicar a tutela sobre os professores ou o pessoal de saúde, não só para cada autarquia poder escolher os melhores professores, como também para poder dar-lhes a melhor qualidade de vida profissional e pessoal. Um professor da Beira Baixa, não tem hoje condições objetivas para dar aulas em Lisboa, Oeiras ou Cascais, porque incorre num aumento exponencial dos encargos com sua habitação. Ora, soluções de habitação para os profissionais do Estado – pessoal de saúde, pessoal docente e outros – pode ser um aliciante de carreira que permite a mobilidade dos professores, o seu desenvolvimento e melhor educação que, lá está, só as autarquias podem proporcionar. Mesmo contra as corporações que se acham donas do país e de classes profissionais, este é o caminho sério e justo a fazer.
Dizer tudo isto, porém, não isenta o Estado Central de cumprir a Lei das Finanças Locais, nunca cumprida desde que foi criada,, e não o absolve de transferir para as autarquias o valor justo dos serviços prestados. Portugal é um dos países europeus que menos verbas do OE transfere para as autarquias. Dito de outro modo: é dos mais centralizadores. Não por acaso, dos mais pobres.
(4) Última questão: que visão de país é que serve a descentralização? A minha opinião é que a descentralização cumpre o propósito de um país policêntrico. Isto é, um Portugal que já não se organiza em 18 distritos e 308 municípios. Esse é o mapa de Portugal dos séculos passados.
Portugal no século XXI precisa de mapas que organizem o território em torno de grandes clusters regionais especializados, com massa critica, identidade e escala. Que reflitam as dinâmicas demográficas, económicas e sociais do país, com necessário equilíbrio entre elas.
Cumpra-se a descentralização, para que Portugal seja verdadeiramente próspero e crie oportunidades para todos os portugueses, em todo o território.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira