7 de junho de 1938. Mas as crianças, Senhor, merecem menos do que os cães de Lisboa???

7 de junho de 1938. Mas as crianças, Senhor, merecem menos do que os cães de Lisboa???


O Jardim da Estrela fechou três dias para restauros. E  logo a discussão rebentou um pouco por toda a cidade – Lisboa não tinha jardins nem lugares públicos onde as crianças pudessem gastar a sua infinita energia infantil.


Mas as crianças, Senhor…”, lamentar-se-ia Augusto Gil, embora sem neve a bater leve, levemente, pelo contrário, Lisboa aquecida a um sol de Primavera quase Verão, os pólenes a fazerem espirrar meio mundo, amaldiçoando alergias. O Jardim da Estrela fechou durante três dias. Um transtorno.

“Os guardas, sem qualquer cerimonial solene, cerraram os pesados portões, caso raro nos anais da sua história”, diziam os jornais. Respondiam os responsáveis que era apenas um parêntesis na alegria rutilante dos pequerruchos que demandavam as sombras centenárias de tílias e olaias que caem em braços lânguidos de perfume. Ah! Que desperdício de linguagem poética para um jardim fechado às brincadeiras dos petizes!

As autoridades municipais não estavam pelos ajustes. A frustração duraria pouco. Tudo voltaria ao normal o mais rapidamente possível. Que fossem essencialmente práticos, senhores críticos, almas ofendidas! Que olhassem para os velhos bancos do recinto, nos quais casais amoráveis gostavam de escavar na madeira carcomida pelo tempo corações entrelaçados com o nome deles e delas. Então não era urgente pintá-los? Podia lá a bandalheira continuar sem reparo? E a tinta leva a secar. Ninguém queria que algum senhor, distraído nas palavras cruzadas que tinham as soluções numa página de anúncios, borrasse o fundilho das calças por não ter prestado atenção ao sinal que avisava: “Pintado de fresco!”

Gente movida pela curiosidade inesgotável e incontrolável, espreitava por entre as grades dos portões o movimento dos funcionários na sua vertigem de pinturas. Os escanos ganhavam um tom vermelho escuro e prateado fosco, o que a muitos desagradava por fazer lembrar recintos de touradas. Outros defendiam, como o escriba encantado: “O jardim fica na mesma bonito sob este final de Primavera cheio de sol, as flores frescas na sua gama de pastel, como um Monet pointilista que tivesse deixado cair nos canteiros a sua paleta admirável de nuaances”.

A discussão Com o Jardim da Estrela fechado, aproveitou-se para abrir a discussão. Ponto principal e indesmentível: Lisboa tinha poucos jardins! “A cidade nova cresce sem novos pulmões, e os velhos, cansados, asmáticos, estão sobretudo decorados com flora. Não lavremos, portanto, a culpa aos jardineiros, que os temos, artistas por instinto, muito dados a mosaicos florais e a recortes de buxo de imaginação inverosímil. Digamos antes que não temos, como em Londres ou Paris, arquitetos paisagistas que componham parques e jardins variando os seus trechos, harmonizando as suas cores, e cuidando, sobretudo, de dar às crianças espaço e divertimentos com que se entreterem”. Pois, nem mais.

Por que havia, Senhor, tanta criança a padecer dessa pobreza franciscana de ninguém organizar jardins na capital a pensar nelas? Queriam exemplos? Pois lá vinha um, mesmo a propósito: “O Hyde Park, de Londres, com as suas ‘pelouses’, onde  os loiros e róseos ‘babies’ retoiçam, brincando com animais domésticos, é o tipo ideal do chamado recreio infantil. Aqui, uma criança não pode pisar um canteiro sem que um guarda corra logo a increpá-la ou a exigir satisfações à família. Neste pormenor, são mais felizes… os cães”. Ora chiça! Não era coisa digna de uma cidade com as responsabilidades da capital de um Império.

Havia, por outro lado, quem se desse à lógica indiscutível de fazer levantamentos que explicassem, aritmeticamente, como as coisas andavam pelas ruas da amargura nos jardins de Lisboa. No Jardim da Estrela e no da Patriarcal havia dois ou três baloiços nos quais guardas poucos convictos atiravam as crianças ao ar, naquelas gargalhadas nervosas do ir e vir. Uma miséria!

Balouços velhos, ferrugentos.

Aos domingos era normal que os pitezes se enfileirassem  à espera da sua vez de ir ao ar, algo que não deveria ser admissível. Vivia-se pela Europa a II Grande Guerra mas, francamente!, racionar baloiços não lembrava nem ao careca. Ficava uma imagem de burguesia pobretanas que, sem meios para sair da cidade em passeio de automóvel ao Estoril ou a Sintra, se limitava a mostrar as botinas no antigo Passeio Público onde a Júlia, do Primo Bazílio, do divino Eça, jurava nunca por lá ter passado um pé como o dela. Pobres meninos de uma Lisboa manhosa: “A poeira removida seca-lhes os pulmões, o remexer da gente crescida assusta-os – não há nada mais para lhes ocupar as forças adolescentes e o sonho da imaginação do que um vetusto baloiço escangalhado. É o seu único dia livre, a escola ou as mães ocupadas, eliminam os outros dos pobres filhos de Lisboa”.

O Jardim da Estrela fechara, prometiam os governantes da cidade, por apenas três dias. Ora, era demais! Principalmente porque não havia outros daquela envergadura. Mesmo que os garotos tivessem de dispensar os baloiços para atirar pedaços de pão aos patos do lago ou subirem e descerem pelos ferros do coreto mudo.