O nariz de David


Se o problema da estátua de David era o tamanho do nariz, o problema do Orçamento de Estado, a avaliar pelas 1400 propostas de alteração, não estava apenas no nariz, mas em todo ele, da cabeça aos pés.


Nos fins do século XV as autoridades de Florença encomendaram ao escultor Duccio a estátua de David para adornar a fachada da Catedral da cidade, colocando ao seu dispor um imponente bloco de mármore de Carrara. Uns golpes menos certeiros danificaram o bloco e levaram o escultor a desistir da obra.

Dada a qualidade do mármore, a Guilda de Florença insistiu no seu aproveitamento e em 1503, depois da recusa de vários escultores, entre eles Da Vinci, a retomarem a obra, por considerarem o bloco irrecuperável, pediu a Miguel Ângelo, que trabalhava em Roma, para ver da possibilidade de prosseguir a modelação da pedra. Miguel Ângelo aceitou o desafio, moldou o mármore e esculpiu a estátua que constitui um dos símbolos imorredouros da Renascença.

Antes da sua conclusão, Piero Soderini, o Prefeito da cidade e mecenas da escultura (os Médicis ainda não se tinham tornado os soberanos de Florença) apontou a Miguel Ângelo um defeito grave, o nariz de David era demasiado grande e deformava a obra. Paciente, contra o seu hábito, Miguel Ângelo subiu aos andaimes e munido de um cinzel simulou uns golpes na pedra, fazendo cair aos pés de Soderini pequenos pedaços e pó de mármore que tinha levado escondidos na mão. Soderini considerou que a sua contribuição tornou a obra perfeita.

Lembrei-me da “história” ao ver alguns episódios do debate do Orçamento de Estado. É que se o problema da estátua de David era o tamanho do nariz, o problema do Orçamento de Estado, a avaliar pelas 1400 propostas de alteração, não estava apenas no nariz, mas em todo ele, da cabeça aos pés, em cada capítulo ou rubrica, a merecer não apenas um “face lifting”, mas um completo “restyling”, senão mesmo a sua substituição por inteiro.

Cabe dizer que alguns passos da operação do “restyling” conduziriam a uma imagem bem mais pitoresca, como o de uma semana de trabalho de 4 dias e um rendimento incondicional para todos by Livre, o da admissão de mais 100.000 trabalhadores na função pública by PCP e, naturalmente, os adicionais gastos para os albergarem, medida bem mais eficaz do que a via rápida para o emprego By Iniciativa Liberal.

Quanto ao lifting, havia retoques para todos os gostos. Se o lifting bloquista e pecepista injectava mais umas camadas de botox, travestido de impostos, para aparar os furúnculos dos lucros extraordinários no sector da energia ou dos ganhos nas criptomoedas, dando vida ao lema by Bloco de ir buscar dinheiro onde o há (e também onde não o há…), alindando a despesa, mas paralisando a economia, outros procedimentos estéticos defendiam menos impostos, mas todos mais subsídios. 

Menos impostos by PS para os jovens doutorados, os jovens indiferenciados que os paguem, mais subsídios para bolseiros e vouchers de 120 euros em despesas culturais, by PS e PSD, aperfeiçoavam a modelação. E esmorecida, pelos vistos, a verdura que varre o país que tornou a energia portuguesa a mais cara da Europa, suplemento “imprescindível e urgente” era, by Livre, uma Unidade de Missão para o Novo Pacto Verde para combate às alterações climáticas.

Miguel Ângelo pegou num bloco de pedra maltratada por um escultor azarado e fez dele uma sublime escultura que perdurará séculos como manifestação do génio humano. Já não se pediria aos nossos deputados a missão impossível de imitar Miguel Ângelo, mas pelo menos que não deixassem morrer, na avalanche da demagogia infrene de propostas ao serviço das suas clientelas partidárias, algumas medidas apresentadas de reformas estruturais ou de políticas públicas relevantes que traçassem o rumo de um orçamento ao serviço dos cidadãos.

Soderini, ao interferir na obra de Miguel Ângelo, procurou o objectivo útil de poder mostrar peito frente à ainda não entronizada família Médici. Ao fim de dois meses de debate, os nossos “soderinis” apenas viram escorrer uns pedaços de pó, mas que ainda vai fascinando os olhos de uma clientela incauta ou já convertida.

E com mau Orçamento e não melhores emendas, a cauda da Europa cada vez mais perto. E uma Democracia sem qualidade.  

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade 
pcardao@gmail.com

O nariz de David


Se o problema da estátua de David era o tamanho do nariz, o problema do Orçamento de Estado, a avaliar pelas 1400 propostas de alteração, não estava apenas no nariz, mas em todo ele, da cabeça aos pés.


Nos fins do século XV as autoridades de Florença encomendaram ao escultor Duccio a estátua de David para adornar a fachada da Catedral da cidade, colocando ao seu dispor um imponente bloco de mármore de Carrara. Uns golpes menos certeiros danificaram o bloco e levaram o escultor a desistir da obra.

Dada a qualidade do mármore, a Guilda de Florença insistiu no seu aproveitamento e em 1503, depois da recusa de vários escultores, entre eles Da Vinci, a retomarem a obra, por considerarem o bloco irrecuperável, pediu a Miguel Ângelo, que trabalhava em Roma, para ver da possibilidade de prosseguir a modelação da pedra. Miguel Ângelo aceitou o desafio, moldou o mármore e esculpiu a estátua que constitui um dos símbolos imorredouros da Renascença.

Antes da sua conclusão, Piero Soderini, o Prefeito da cidade e mecenas da escultura (os Médicis ainda não se tinham tornado os soberanos de Florença) apontou a Miguel Ângelo um defeito grave, o nariz de David era demasiado grande e deformava a obra. Paciente, contra o seu hábito, Miguel Ângelo subiu aos andaimes e munido de um cinzel simulou uns golpes na pedra, fazendo cair aos pés de Soderini pequenos pedaços e pó de mármore que tinha levado escondidos na mão. Soderini considerou que a sua contribuição tornou a obra perfeita.

Lembrei-me da “história” ao ver alguns episódios do debate do Orçamento de Estado. É que se o problema da estátua de David era o tamanho do nariz, o problema do Orçamento de Estado, a avaliar pelas 1400 propostas de alteração, não estava apenas no nariz, mas em todo ele, da cabeça aos pés, em cada capítulo ou rubrica, a merecer não apenas um “face lifting”, mas um completo “restyling”, senão mesmo a sua substituição por inteiro.

Cabe dizer que alguns passos da operação do “restyling” conduziriam a uma imagem bem mais pitoresca, como o de uma semana de trabalho de 4 dias e um rendimento incondicional para todos by Livre, o da admissão de mais 100.000 trabalhadores na função pública by PCP e, naturalmente, os adicionais gastos para os albergarem, medida bem mais eficaz do que a via rápida para o emprego By Iniciativa Liberal.

Quanto ao lifting, havia retoques para todos os gostos. Se o lifting bloquista e pecepista injectava mais umas camadas de botox, travestido de impostos, para aparar os furúnculos dos lucros extraordinários no sector da energia ou dos ganhos nas criptomoedas, dando vida ao lema by Bloco de ir buscar dinheiro onde o há (e também onde não o há…), alindando a despesa, mas paralisando a economia, outros procedimentos estéticos defendiam menos impostos, mas todos mais subsídios. 

Menos impostos by PS para os jovens doutorados, os jovens indiferenciados que os paguem, mais subsídios para bolseiros e vouchers de 120 euros em despesas culturais, by PS e PSD, aperfeiçoavam a modelação. E esmorecida, pelos vistos, a verdura que varre o país que tornou a energia portuguesa a mais cara da Europa, suplemento “imprescindível e urgente” era, by Livre, uma Unidade de Missão para o Novo Pacto Verde para combate às alterações climáticas.

Miguel Ângelo pegou num bloco de pedra maltratada por um escultor azarado e fez dele uma sublime escultura que perdurará séculos como manifestação do génio humano. Já não se pediria aos nossos deputados a missão impossível de imitar Miguel Ângelo, mas pelo menos que não deixassem morrer, na avalanche da demagogia infrene de propostas ao serviço das suas clientelas partidárias, algumas medidas apresentadas de reformas estruturais ou de políticas públicas relevantes que traçassem o rumo de um orçamento ao serviço dos cidadãos.

Soderini, ao interferir na obra de Miguel Ângelo, procurou o objectivo útil de poder mostrar peito frente à ainda não entronizada família Médici. Ao fim de dois meses de debate, os nossos “soderinis” apenas viram escorrer uns pedaços de pó, mas que ainda vai fascinando os olhos de uma clientela incauta ou já convertida.

E com mau Orçamento e não melhores emendas, a cauda da Europa cada vez mais perto. E uma Democracia sem qualidade.  

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade 
pcardao@gmail.com