Com vários feriados e fins de semana prolongados a pedir livros e descanso para muitos portugueses, esta é um texto com uma sugestão para os próximos dias, ainda marcados pela sexta vaga pandémica. Muito a propósito, e quando já todos julgávamos que a Covid-19 era passado, o tecnófilo, filantropo e autor Bill Gates acaba de publicar um plano sobre “Como Prevenir a Próxima Pandemia”.
Gates, que depois de ter deixado a Microsoft desenvolveu um interesse cartesiano sobre coronavírus, epidemias silenciosas e mortalidade materna, anda há pelo menos sete anos a alertar para a falta de uma abordagem sistemática a nível global na eventualidade de uma ocorrência pandémica. O facto de ela não ter acontecido nos últimos 100 anos, da Gripe Espanhola até dezembro de 2019, tinha sido uma mera questão de “sorte”. Afinal de contas, o mundo está muito mais globalizado. Somos mais no planeta e estamos muito mais interligados. Só os turistas, anota Gates, representam 1.4 mil milhões de desembarques internacionais todos os anos.
O que espanta o autor é a incapacidade de os governos a nível mundial terem desenvolvido um plano de prevenção de pandemias. Porque se “os surtos são inevitáveis”, como diz o epidemiologista Larry Brilliant, “as pandemias são opcionais”. Isto quer dizer que quando lidamos com vírus, há uma componente natural inescapável – tal como quando certo território é abalado por um sismo ou por uma erupção vulcânica -, mas a forma como um surto se transforma em epidemia e depois em pandemia é “opcional” no sentido em que depende do planeamento/comportamento dos seres humanos, tal como as consequências de um tufão ou de um sismo são mais ou menos dramáticas consoante o grau de prontidão das forças de proteção civil.
“Os exércitos envolvem-se em exercícios militares e garantem a sua prontidão em caso de guerra. Os aeroportos realizam simulacros de todo o tipo em caso de emergência. Cidades, estados e o governo federal reveem com frequência a sua capacidade de resposta a desastres naturais (…). Quando o assunto é uma pandemia, nada disto é feito”, critica Gates. E este é o estado de coisas que importa mudar.
Mas antes é importante reter as lições aprendidas. A consolidação da aprendizagem através do erro é decisiva para que a nossa resposta futura não padeça dos mesmos vícios do passado. E Gates, logo a abrir, elenca erros crassos no combate à Sars-Cov-2 cometidos por vários governos em todo o mundo, incluindo o nosso, situação que em tempo certo eu e muitos autarcas fomos denunciando – não numa lógica de crítica fácil, mas antes pelo contrário num espírito de reforço das nossas capacidades contra um inimigo comum e cobarde.
Como evitar um novo falhanço mundial na forma como encaramos a prevenção das pandemias? É esta pergunta que consome Gates e o leva a avançar com um caderno de encargos ambicioso. A detenção precoce, desenvolvimento de vacinas, descoberta de novos tratamentos e o aperfeiçoamento dos mecanismos de autoproteção são tudo temas importantes no plano de Gates. Mas a ideia mais ambiciosa e disruptiva passa por um conceito com mais de dois mil anos nas nossas sociedades: “Uma pandemia é como um incêndio que começa num edifício e semanas depois arde em todos os países do mundo. Por isso, para prevenir uma pandemia precisamos do equivalente a um corpo de bombeiros mundial.”
A metáfora é inspiradora, até porque em muitos concelhos portugueses, e desde logo em Cascais, foram as forças municipais de Proteção Civil, das quais os corpos de Bombeiros são peças centrais, a assumir a linha da frente no combate à pandemia.
Aquilo que está na cabeça de Gates é uma estrutura altamente especializada com mais de três mil funcionários em todo o mundo. Cobrindo áreas da epidemiologia à genética, do desenvolvimento de vacinas e medicamentos à diplomacia, comunicações, logística, programação, o GERM – Global Epidemic Response and Mobilization Team, contaria com um orçamento anual de 1 bilião de dólares. Os especialistas do GERM, como Gates o batizou de forma sugestiva, devem acordar e adormecer todos os dias com uma única preocupação em mente: estamos preparados para a próxima pandemia?
As principais responsabilidades da equipa passam pela deteção de potenciais surtos, por acionar alarmes quando estes são identificados, pela ajuda na contenção, pela criação de sistemas de dados comum, pela normalização de recomendações, pela formação, pela monitorização da capacidade de massificar a produção de ferramentas de diagnóstico (como os testes), pela identificação de falhas no sistema, entre outras.
A amplitude de funções e competências diz muito sobre aquilo que foram as falhas e aprendizagens durante o combate à pandemia na generalidade dos países.
Quanto ao modelo de governo, a GERM estaria na dependência da Organização Mundial de Saúde e o seu exército de especialistas baseados nos institutos de saúde pública nos países de origem.
“Como Prevenir a Próxima Pandemia” é um livro que deve ser lido por decisores políticos e por cidadãos em todo o mundo, sobretudo num tempo em que a atenção mediática e o sentido de urgência largam a covid-19 para se colar a outros desafios igualmente trágicos.
“Com a exceção da varíola – a única doença humanada algumas vez erradicada -, as antigas doenças infeciosas continuam presentes e até a própria peste, uma doença que a maioria de nós associa aos tempos medievais, continua connosco”, é o grito de alerta de Gates em forma de lembrete.
Costumo dizer que o combate aos fogos florestais do verão começa quase sempre nas primeiras chuvas de inverno. Para além de ir recrutar a imagem dos corpos de bombeiros globais, Gates sugere exatamente o mesmo: apesar do alarme pandémico só ter soado uma vez nos últimos cem anos, a forma como vamos lidar com a próxima pandemia – as vidas que podem ser salvas, a catástrofe económica que pode ser evitada ou até os avanços científicos que possam ser registados – dependem daquilo que formos capazes de fazer agora para reformar o sistema global de saúde pública.