Aos dias de hoje só vão chegando fragmentos da memória épica que em tempos foi a própria relação a partir da qual se construía o relato mítico das nossas verdadeiras experiências. O mito foi sempre uma forma de conter numa fórmula memorável um certo fragor da imaginação, esse que começou por ser elaborado através dos efeitos que temos ao nosso dispor na distância mais curta entre um oráculo e os seus ouvintes. Era uma forma de traduzir a experiência dentro dos parâmetros de uma outra vida, de uma função exemplar, ou seja, heroica. Tom Cruise cresceu numa casa onde, nos Natais, ele e as três irmãs mais velhas, trocavam presentes que eles mesmos faziam com as próprias mãos, e havia nesse gesto uma dedicação e um afeto extremos, pois dependia de cada um deles garantir que tornavam aquela data memorável e não mais um momento dolorosamente expressivo das dificuldades por que passavam. O pai havia desertado, e a mãe, que tinha a missão de os sustentar e transmitir-lhes os seus valores, sempre incutiu neles um espírito de aventura como compensação por não haver muito dinheiro, nem grandes luxos.
Nas primeiras entrevistas que deu, e numa altura em que o seu estatuto enquanto galã se ia consolidando, Cruise atribuía o seu à-vontade com o sexo oposto por ter crescido numa casa cheia de miúdas mais velhas, acompanhando os dramas com rapazes, as desatenções e as canalhices, compreendendo o outro lado. E recordou inclusivamente como as amigas das irmãs se serviram dele para aprender a dar beijos de língua, numa altura em que não teria mais de uns 12 anos. Além dessa linha direta para muito daquilo que se passa nos bastidores afetivos, uma vez que a família se viu obrigada a mudar-se várias vezes, no esforço que fazia a mãe para melhorar a situação em que viviam, Cruise usava o desporto para se integrar em cada nova escola. Apesar da baixa estatura, revelou sempre um empenho extraordinário, e conseguia destacar-se. O outro aspeto decisivo na sua adolescência foi o cinema.
Começou muito cedo a propor-se a todo o tipo de tarefas ou biscates para conseguir pagar o bilhete. Até hoje é um dos seus temas preferidos nas entrevistas, e se se mostra bastante tenso sempre que é questionado sobre a sua vida pessoal, quando lhe perguntam pelo papel que o cinema teve na sua educação, parece sempre entrar em êxtase. Em grande medida, foi na sala de cinema que lhe foi dada a oportunidade de expandir a sua perceção e imaginar-se a ocupar um lugar central, ser o protagonista de uma vida aventurosa. O cinema tinha o poder de levar qualquer miúdo na América a supor que era possível compor um destino a partir de circunstâncias bastante caóticas ou precárias. A história daquele miúdo confunde-se com a de tantos outros que buscaram encorajamento no apelo evocativo e no hipnótico feitiço de uma arte que atingia, então, a sua maturidade artística, num momento em que a técnica não se impunha sobre a imaginação. Só, então, George Lucas e Steven Spielberg começavam a acreditar nos seus próprios sonhos e na noção de que o cinema lhes daria a capacidade de os partilhar com qualquer outro miúdo desses que, a partir do seu quarto, conspiram para erguer fantasias capazes de seduzir o imaginário coletivo e redefinir o horizonte cultural de toda uma época. Cruise estava na fila da frente, doido por embarcar. Sem nunca se dar a hipótese de duvidar de si, o miúdo que sofria de dislexia, e que, por isso, sempre teve as maiores dificuldades em impressionar os professores, depois de uma lesão no joelho quando fazia parte da equipa de luta-livre do liceu, percebeu que o desporto não o levaria a dar outro passo num futuro académico, e, sem um plano B, juntou o dinheiro que conseguiu e foi para Hollywood. Não precisou de muito para conseguir os primeiros papéis, e isto porque desde a primeira hora, em cada audição, em todos os contactos que manteve, Cruise era aquele tipo com uma determinação quase maníaca em atingir a perfeição, superar qualquer fasquia e deixar claro que podiam contar com ele para ir ao limite.
Para se ter uma ideia da sua dedicação, há 36 anos, logo a seguir a ter filmado com Tony Scott o filme que o projetaria para a elite de Hollywood, Top Gun, nesse mesmo ano, 1986, filmou com Martin Scorcese A Cor do Dinheiro, em que contracenava com Paul Newman. Cruise começou a preparação para o filme meses antes, e aplicou-se de tal modo no bilhar que, quando terminou as filmagens, o treinador que tinha sido contratado para lhe dar lições, acreditava que Cruise podia, se quisesse, ter seguido uma carreira paralela no circuito profissional daquele desporto. E se no ecrã ele era o jovem arrogante que fazia Fast Eddie Felson, o personagem de Newman, sentir-se velho, e incapaz de voltar a dominar o jogo, tornaram-se muito próximos, e, dispensando o paternalismo, Newman levou Cruise para as pistas de corrida, tendo este demonstrado uma capacidade impressionante, chegando inclusivamente a competir. Assim, ao entrar na década que viria a dominar em absoluto, Cruise protagonizou Dias de Tempestade, também dirigido por Tony Scott, e que foi a primeira vez em que o ator quis realizar algumas das proezas confiadas aos duplos e teve várias discussões com os executivos do estúdio que não queriam correr o risco de ver a estrela do filme magoar-se atrasando a produção e suportando custos desnecessários. Já dois anos antes, em Cocktail, Cruise também aperfeiçoou todo aquele repertório que o vemos realizar por trás do bar, de tal modo que mesmo os profissionais se mostraram impressionados com o seu talento. Mais de duas décadas depois da última interpretação que lhe valeu uma nomeação aos Óscares, em Magnólia, de Paul Thomas Anderson, muitos dos críticos que, por estes dias, e em face do ressurgimento que Cruise está a ter, tendo conseguido a melhor estreia de sempre na sua carreira com Top Gun: Maverick, com 124 milhões de dólares no fim de semana de estreia, entendem que ele se mantém empenhado em realizar a maior parte das acrobacias que vemos no ecrã, sendo muitas delas arriscadas mesmo para os profissionais, num esforço para se mostrar relevante numa altura em que se tornou mais fácil e mais barato pagar a uma equipa de efeitos especiais para tratar do assunto.
A prova dos nove parece ser este filme, em que muito do que Cruise exigiu de si mesmo e dos restantes atores parece ter menos a ver com representação do que com capacidades atléticas e a coragem de testar os seus limites. Mas, na verdade, o que com mais este feito Cruise está a conseguir demonstrar é que ele sabe melhor do que ninguém o verdadeiro motivo que leva as pessoas a encherem as salas de cinema. A dois meses de completar 60 anos, ele consegue uma vez mais impor-se como a maior estrela do cinema em todo o mundo porque continua empenhado em transformar a elevar a fasquia em termos das capacidades do cinema para nos raptar às nossas circunstâncias, para afinar e exaltar de tal modo os sentidos da audiência que esta volta uma vez mais a sentir que experimentou algo de absolutamente inovador. Os críticos reagiram com as entranhas e foram levados a uma espécie de furor perante a experiência deste filme, incapazes de trivializar o impacto visceral das cenas em que vemos Cruise e os outros atores a serem filmados em verdadeiras manobras acrobáticas a bordo de verdadeiros caças F-18.
Se Cruise fez questão que todos soubessem que tinha pago do seu bolso e que tinha concebido ele mesmo o programa de treinamento de três meses ao qual foram submetidos os atores, isso não é uma mera manobra publicitária para atrair o público às salas de cinema. Todo o filme funciona como uma engenhosa parábola do momento de crise que a indústria do cinema está atravessar, não apenas devido ao efeito da pandemia, que ajudou a reforçar a posição dos canais de streaming, e a manter as pessoas coladas ao sofá, mas esta é a tarefa para a qual Cruise sente ter-se preparado ao longo de toda a sua vida, a de herói que pretende salvar a forma de arte que apareceu em seu socorro quando ele era apenas um miúdo com dificuldade em sobressair e até a sobreviver a ser esmagado por uma existência banal e destituída de propósito. Mais de quatro décadas depois de o primeiro filme de super-heróis, o Super-Homem (1978), ter feito muito para nos levar a acreditar que um homem podia realmente voar, hoje o que os filmes que a ele se sucederam vieram fazer foi retirar todo o efeito de magia e encanto a essa possibilidade, tornando-a banal e até aborrecida. A realidade importa; se perdemos esse vínculo com a verosimilhança, a fantasia torna-se simplesmente mais uma fórmula burocrática, ainda que opere no plano do imaginário. É isto o que Tom Cruise nos tenta dizer com este filme, e é surpreendente o facto de, por uma vez, aquele que se tornou uma das celebridades que mais convida à troça e que se remeteu quase exclusivamente a aparições públicas em eventos de promoção planeados ao detalhe, venha agora a tornar-se a última esperança de uma indústria que está desesperadamente a tentar trazer de volta os adultos para as salas de cinema. Assim, apesar de ter ficado atrás dos resultados de Spider-Man: No Way Home, que lidera tendo gerado 260 milhões de dólares no fim de semana de estreia, seguido de Doctor Strange in the Multiverse of Madness, que vendeu 187 milhões em bilhetes e de Batman, com 134 milhões, com esta sequela que, em muitos aspetos, é também um remake do primeiro Top Gun, este filme é o apelo mais firme dirigido a pessoas que terão necessariamente mais de 40 anos, isto para terem a memória de ter visto o anterior nas salas de cinema. A missão desta vez é, portanto, muito clara, cabe-lhe provar que o cinema continua a ser a melhor forma de revigorar um sentimento de pertença a uma determinada época e a um conjunto de valores, e que isso depende do nosso anseio comum de aceder a experiências verdadeiras, de ir mais longe na exploração da realidade, de partilhar certos elementos das grandes narrativas, ter algo que nos faça identificar com o herói, com o seu sentido de propósito, com a forma como, através dele, e muitas vezes contra o desfecho esperado, o destino parece manifestar-se.