Onde para o Governo?


Porque se o país pode dizer ao mundo, com orgulho, que acolheu dezenas de milhar de refugiados, deve-o sobretudo às autarquias e à sociedade civil que dão o que podem e o que não podem para cumprir uma visão humanista da nossa comunidade.  


Não fossem os municípios e o combate do país à covid-19 teria sido uma tragédia de proporções muito mais carregadas.  

Não fossem os municípios, as empresas e a boa vontade dos cidadãos, e o papel de Portugal no apoio aos refugiados ucranianos seria uma insignificância que nos faria corar de vergonha perante os nossos pares europeus. 

Há uma constante nestas duas crises que marcam os nossos últimos dois anos de existência: o Governo tem acordado tarde e a más horas para os problemas. E quando finalmente desperta, o desafio é que execute bem. 

Em março de 2020 foram precisas máscaras, álcool gel e apoio social de emergência às famílias desempregas ou em layoff. A resposta foi dada pelas autarquias. Mais tarde foram precisos centros de testagem e de vacinação. A resposta foi das autarquias. 

Em março de 2022 foram precisas campanhas de ajuda humanitária, missões de resgate, centros de acolhimento e apoio social de emergência aos nossos concidadãos europeus em fuga da guerra. Adivinhe? A resposta, uma vez mais, foi e está a ser dada pelas autarquias.

Da parte do Governo e das suas estruturas centrais continua a não haver coordenação. Nem organização.

Chega a ser frustrante que nestes tempos que testam a nossa capacidade de planeamento e resiliência, as estruturas do Estado Central e do Governo não tenham retido as aprendizagens do passado. Que mesmo perante a barbárie e a tragédia humanitária não haja sentido de urgência. Que as pessoas sintam que a realidade galopa e que o país só marca passo. 

A falta de vigor executivo é preocupante e até desconcertante, ou não estivéssemos agora a iniciar uma nova legislatura com uma maioria absolutíssima do Partido Socialista no parlamento.  

A pandemia e a guerra na Europa são, em certo sentido, crises gémeas na manifestação de sintomas de uma doença prolongada de Portugal: a incapacidade de organização e coordenação do Estado.

Perante a passividade, diria mesmo inação, do poder central, Cascais e muitas outras autarquias em todo o país, um sem número de empresas e ainda mais cidadãos, uniram-se numa coligação de vontades que eu não tenho memória no nosso país. Esta coligação tem personificado o esforço de guerra de Portugal no apoio ao povo ucraniano. 

Isso é muito visível na mobilização de centenas de toneladas de ajuda humanitária que segue para os campos de refugiados e para o coração da guerra. Ou na constituição de centros alojamento de emergência, na mobilização e apoio de famílias acolhimento ou no desenvolvimento de programas sociais nas áreas da saúde, da educação, do emprego. 

Em todas estas respostas, os custos são suportados pelos municípios e pela generosidade da sociedade civil. No caso de Cascais, o processo de integração dos nossos “convidados” ucranianos passa pela alimentação, cuidados médicos em permanência, apoio psicológico, acesso a transporte rodoviário gratuito, aulas de português, educação, formação e emprego, cuidados veterinários e apoio jurídico, com o objetivo prioritário de salvaguardar que todos os direitos destes cidadãos se encontram acautelados. 

Com a exceção do SEF, que curiosamente os nossos decisores se preparam para extinguir, em nenhuma fase deste processo o governo ou as estruturas da burocracia estatal vieram oferecer ajuda ou apoio. Repito: em nenhuma fase. 

A frente humanitária foi deixada ao abandono até que as autarquias e os cidadãos pegassem nela. E se alguns erros foram cometidos, e certamente que o foram, tal deve-se menos à ação genericamente bem-intencionada dos municípios e mais à omissão das estruturas centrais e à gritante falta de coordenação política nacional. 

Há claramente pessoas e estruturas que não estão a fazer a sua parte.

Dou um exemplo cristalino. Há no Estado Central, mais precisamente na Segurança Social, um programa de apoio financeiro ao acolhimento de emergência. Este programa é um engodo – para não dizer uma farsa. 

Para além de não cobrir, nem pouco mais ou menos, o acompanhamento social das famílias refugiadas, o programa não prevê apoio básico às famílias de acolhimento e aparentemente não permite, sequer, que as Câmaras sejam elegíveis para a utilização das verbas do Estado. Não espanta, assim, que em toda a Área Metropolitana de Lisboa sejam apenas duas instituições a legitimar a existência do tal “programa”. 

As Câmaras não têm experiência em missões humanitárias. Mas perante os crimes contra a humanidade, agiram. Agiram de tal forma que Portugal é hoje olhado como um país amigo por dezenas e dezenas de cidades, por milhares e milhares de famílias em toda a Ucrânia. 

As câmaras foram parceiras do governo. 

A questão é que parcerias em que só um lado da equação tem ganhos não são parcerias nem justas, nem solidárias, nem moralmente aceitáveis. E nesta parceria entre Estados – o Central e o Local – o ónus está todo do lado do segundo.  

Para além do dever do exemplo, acreditamos que há o dever moral de reciprocidade solidária do Estado Central para com as autarquias, as empresas e os cidadãos.  

Porque se o País pode dizer ao mundo, com orgulho, que acolheu dezenas de milhar de refugiados, deve-o sobretudo às autarquias e à sociedade civil que dão o que podem e o que não podem para cumprir uma visão humanista da nossa comunidade. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira

Onde para o Governo?


Porque se o país pode dizer ao mundo, com orgulho, que acolheu dezenas de milhar de refugiados, deve-o sobretudo às autarquias e à sociedade civil que dão o que podem e o que não podem para cumprir uma visão humanista da nossa comunidade.  


Não fossem os municípios e o combate do país à covid-19 teria sido uma tragédia de proporções muito mais carregadas.  

Não fossem os municípios, as empresas e a boa vontade dos cidadãos, e o papel de Portugal no apoio aos refugiados ucranianos seria uma insignificância que nos faria corar de vergonha perante os nossos pares europeus. 

Há uma constante nestas duas crises que marcam os nossos últimos dois anos de existência: o Governo tem acordado tarde e a más horas para os problemas. E quando finalmente desperta, o desafio é que execute bem. 

Em março de 2020 foram precisas máscaras, álcool gel e apoio social de emergência às famílias desempregas ou em layoff. A resposta foi dada pelas autarquias. Mais tarde foram precisos centros de testagem e de vacinação. A resposta foi das autarquias. 

Em março de 2022 foram precisas campanhas de ajuda humanitária, missões de resgate, centros de acolhimento e apoio social de emergência aos nossos concidadãos europeus em fuga da guerra. Adivinhe? A resposta, uma vez mais, foi e está a ser dada pelas autarquias.

Da parte do Governo e das suas estruturas centrais continua a não haver coordenação. Nem organização.

Chega a ser frustrante que nestes tempos que testam a nossa capacidade de planeamento e resiliência, as estruturas do Estado Central e do Governo não tenham retido as aprendizagens do passado. Que mesmo perante a barbárie e a tragédia humanitária não haja sentido de urgência. Que as pessoas sintam que a realidade galopa e que o país só marca passo. 

A falta de vigor executivo é preocupante e até desconcertante, ou não estivéssemos agora a iniciar uma nova legislatura com uma maioria absolutíssima do Partido Socialista no parlamento.  

A pandemia e a guerra na Europa são, em certo sentido, crises gémeas na manifestação de sintomas de uma doença prolongada de Portugal: a incapacidade de organização e coordenação do Estado.

Perante a passividade, diria mesmo inação, do poder central, Cascais e muitas outras autarquias em todo o país, um sem número de empresas e ainda mais cidadãos, uniram-se numa coligação de vontades que eu não tenho memória no nosso país. Esta coligação tem personificado o esforço de guerra de Portugal no apoio ao povo ucraniano. 

Isso é muito visível na mobilização de centenas de toneladas de ajuda humanitária que segue para os campos de refugiados e para o coração da guerra. Ou na constituição de centros alojamento de emergência, na mobilização e apoio de famílias acolhimento ou no desenvolvimento de programas sociais nas áreas da saúde, da educação, do emprego. 

Em todas estas respostas, os custos são suportados pelos municípios e pela generosidade da sociedade civil. No caso de Cascais, o processo de integração dos nossos “convidados” ucranianos passa pela alimentação, cuidados médicos em permanência, apoio psicológico, acesso a transporte rodoviário gratuito, aulas de português, educação, formação e emprego, cuidados veterinários e apoio jurídico, com o objetivo prioritário de salvaguardar que todos os direitos destes cidadãos se encontram acautelados. 

Com a exceção do SEF, que curiosamente os nossos decisores se preparam para extinguir, em nenhuma fase deste processo o governo ou as estruturas da burocracia estatal vieram oferecer ajuda ou apoio. Repito: em nenhuma fase. 

A frente humanitária foi deixada ao abandono até que as autarquias e os cidadãos pegassem nela. E se alguns erros foram cometidos, e certamente que o foram, tal deve-se menos à ação genericamente bem-intencionada dos municípios e mais à omissão das estruturas centrais e à gritante falta de coordenação política nacional. 

Há claramente pessoas e estruturas que não estão a fazer a sua parte.

Dou um exemplo cristalino. Há no Estado Central, mais precisamente na Segurança Social, um programa de apoio financeiro ao acolhimento de emergência. Este programa é um engodo – para não dizer uma farsa. 

Para além de não cobrir, nem pouco mais ou menos, o acompanhamento social das famílias refugiadas, o programa não prevê apoio básico às famílias de acolhimento e aparentemente não permite, sequer, que as Câmaras sejam elegíveis para a utilização das verbas do Estado. Não espanta, assim, que em toda a Área Metropolitana de Lisboa sejam apenas duas instituições a legitimar a existência do tal “programa”. 

As Câmaras não têm experiência em missões humanitárias. Mas perante os crimes contra a humanidade, agiram. Agiram de tal forma que Portugal é hoje olhado como um país amigo por dezenas e dezenas de cidades, por milhares e milhares de famílias em toda a Ucrânia. 

As câmaras foram parceiras do governo. 

A questão é que parcerias em que só um lado da equação tem ganhos não são parcerias nem justas, nem solidárias, nem moralmente aceitáveis. E nesta parceria entre Estados – o Central e o Local – o ónus está todo do lado do segundo.  

Para além do dever do exemplo, acreditamos que há o dever moral de reciprocidade solidária do Estado Central para com as autarquias, as empresas e os cidadãos.  

Porque se o País pode dizer ao mundo, com orgulho, que acolheu dezenas de milhar de refugiados, deve-o sobretudo às autarquias e à sociedade civil que dão o que podem e o que não podem para cumprir uma visão humanista da nossa comunidade. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira