O cair das máscaras do cinismo e da hipocrisia


Muito falamos de liberdade, democracia e justiça, mas basta olhar para meia dúzia de factos recentes para verificarmos que estamos longe de patamares aceitáveis.


1. O caso dos russos que em Setúbal (e eventualmente noutros municípios) estavam incumbidos de rececionar ucranianos, aproveitando para sacar informação útil a Moscovo, é apenas um dos muitos episódios surrealistas em que Portugal é pródigo. Os desenvolvimentos à volta da questão ucraniana fazem cair sucessivas máscaras de cinismo e hipocrisia. Já nem se estranha que, ainda por cima, a organização interrogadora tenha sido financiada com 90 mil euros pela câmara comunista. É a promiscuidade que nuns casos é política e noutros económica. Denunciado o escândalo, há agora uma catadupa de inquéritos, como é costume nesta terra. Vão da Inspeção de Finanças ao SEF, passando pela proteção de dados. Só não se foi ainda ao ponto essencial: fazer um inquérito através das entidades de segurança interna que dependem do primeiro-ministro, porque é manifesto que é com esse tipo de coisas com que estamos a lidar. E, por isso mesmo, se tal se confirmar, a câmara de Setúbal e os seus responsáveis terão de prestar contas, enquanto responsáveis políticos. Mesmo no pior tempo do salazarismo teria sido impossível, sob o pretexto da facilidade de comunicação, verem-se cidadãos alemães a interrogar refugiados judeus sobre as condições e circunstâncias em que ficaram para trás os seus familiares. Não era, entretanto, preciso o atentado à liberdade de Setúbal para verificar que o acolhimento dos refugiados não está a correr tão bem como se pinta. Só foram passadas 1400 autorizações de trabalho, quando o número de recém-exilados andará pelos 23 mil. Claro que muitos deles não vieram para trabalhar ou não têm condições para tal. São acolhidos temporariamente em casas de compatriotas ou portugueses solidários. Voltando ainda ao caso concreto espoletado em Setúbal, tem de se aceitar como normal que russos e ucranianos façam espionagem em Portugal. É próprio das relações internacionais e ainda mais em tempo de guerra. O mesmo se passa com americanos, franceses, ingleses, chineses e outros que por cá andam. O que não é normal é Portugal não se precaver, através das suas múltiplas entidades políticas (Governo, Parlamento, autarquias, institutos e comissões), civis, policiais (como o SEF que ora é extinto ora se mantém), militares, serviços de informação e segurança interna e externa. Se calhar é por serem tantos que não se entendem nem comunicam entre eles.

2. No solo da Ucrânia a guerra prossegue com violência e deve estar para durar. Nesta fase, nenhuma das partes quer verdadeiramente negociar porque acredita que pode ganhar alguma vantagem nos próximos tempos. A digressão de Guterres não trouxe qualquer alteração substancial. Mesmo assim, terá contribuído para permitir o início da retirada de civis de Mariupol, o alvo mais devastado pelos russos. É possível que Guterres tenha aberto campo para outros pequenos passos. A deslocação valeu a pena, apesar da provocação russa de bombardear uma zona civil de Kiev a pouca distância do sítio onde estava o secretário-geral da ONU. Poucas vezes ficou tão exposta a crueldade fria de Putin e do seu sistema de poder individual. É duvidoso que alguma vez uma única pessoa tenha tido tanto poder de destruição ao seu alcance. Até na China há forças capazes de destituir os líderes. Xi Jinping tem poderes excecionais e únicos, mas incomparavelmente menores que os de Putin. 

3. A nossa assistência social não é digna de um país da União Europeia, apesar da propaganda em contrário. Soube-se há dias que só 181 dos 8122 cuidadores oficiais (são muitos mais) beneficiaram do descanso anual a que têm direito por via da Rede de Cuidados Continuados. E porquê? Porque é difícil inscrever-se, porque há poucos lugares, mas sobretudo porque é caro para os recursos da generalidade dos cuidadores. Para variar, este apoio foi anunciado com uma campanha que envolveu discursos, propaganda e notícias. Esta justa causa foi apoiada pelas principais figuras do país, mas a aplicação está claramente aquém das expectativas criadas. Vai-se a ver e temos esta triste realidade. No plano legislativo somos como a Dinamarca. No terreno somos mais a Albânia.

4. O que funciona mesmo a sério entre nós são as finanças, os radares, os entraves burocráticos e, aproveitando-se da desorganização, certas obediências totalitárias que lutam sistematicamente contra causas justas e humanitárias, utilizando-se da democracia que desprezam e odeiam, sempre sob a capa do pacifismo. Lá para setembro estarão todos juntos a gritar pela paz numa festa nos arredores de Lisboa. Serão uma multidão de militantes e funcionários a que se juntarão ingénuos e os chamados idiotas úteis, que ajudarão a levar avante a missão de liquidar o modo de vida ocidental que os alimenta e os trata como se fossem democratas.

5. Quem também se proclama um farol da liberdade é o nosso Bloco de Esquerda. Está na vanguarda de todas as causas democráticas, desde que não perturbem a capelinha deles. No fim de semana passado, realizou-se a convenção nacional do agrupamento. Se fosse um partido ocidentalizado, certamente que alguém lá estaria a pedir uma renovação democrática, na sequência da copiosa derrota eleitoral do BE. Mas nada disso aconteceu. Usou-se a cartilha do PCP. A renovação não veio à colação. A malta dirigente garantiu a permanência nos lugares ao sol que a política lhe traz. Assim sendo, a grande Catarina saiu incólume e anunciou que o partido vai para a rua, mas ela nem pensar…A luta será agora dirigida contra a catástrofe climática, a guerra, a ameaça atómica e a arrogância do PS. Biden, Putin e Costa que se cuidem! De notar ainda que também ninguém do Bloco se indignou com a circunstância de Mariana Mortágua andar alegremente a fugir ao fisco. O respeitinho é muito bonito.

6. No PSD está, aparentemente, afastada a possibilidade das eleições diretas do próximo dia 28 serem impugnadas. Um pedido nesse sentido, feito por um grupo de militantes, foi rejeitado pelo conselho de jurisdição. Alegava-se que Rui Rio não se tinha explicitamente demitido, pelo que o Conselho Nacional não poderia ter convocado a corrida à sucessão. Nos termos da lei, há ainda recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, mas os prazos são curtos e a fundamentação da rejeição parece sólida. Refere que o objeto da liderança de Rio estava esgotada, na medida em que perdeu as eleições legislativas que constituíam o grande objetivo. Faz todo o sentido. 

7. Anunciada dias a fio, a proclamada descida dos preços dos combustíveis, em valores da ordem dos 15 cêntimos, foi um flop. Pode ter descido o ISP mas terão subido as margens de lucro ou os preços do produto. O acerto traduziu-se, na maior parte dos casos, em menos de 5 cêntimos e, geralmente, só nos postos não ligados às grandes empresas petrolíferas. António Costa irritou-se e mandou a ASAE investigar. Esperemos (confortavelmente sentados de preferência) pelas conclusões e as coimas a que eventualmente haja lugar.

Escreve à quarta-feira

O cair das máscaras do cinismo e da hipocrisia


Muito falamos de liberdade, democracia e justiça, mas basta olhar para meia dúzia de factos recentes para verificarmos que estamos longe de patamares aceitáveis.


1. O caso dos russos que em Setúbal (e eventualmente noutros municípios) estavam incumbidos de rececionar ucranianos, aproveitando para sacar informação útil a Moscovo, é apenas um dos muitos episódios surrealistas em que Portugal é pródigo. Os desenvolvimentos à volta da questão ucraniana fazem cair sucessivas máscaras de cinismo e hipocrisia. Já nem se estranha que, ainda por cima, a organização interrogadora tenha sido financiada com 90 mil euros pela câmara comunista. É a promiscuidade que nuns casos é política e noutros económica. Denunciado o escândalo, há agora uma catadupa de inquéritos, como é costume nesta terra. Vão da Inspeção de Finanças ao SEF, passando pela proteção de dados. Só não se foi ainda ao ponto essencial: fazer um inquérito através das entidades de segurança interna que dependem do primeiro-ministro, porque é manifesto que é com esse tipo de coisas com que estamos a lidar. E, por isso mesmo, se tal se confirmar, a câmara de Setúbal e os seus responsáveis terão de prestar contas, enquanto responsáveis políticos. Mesmo no pior tempo do salazarismo teria sido impossível, sob o pretexto da facilidade de comunicação, verem-se cidadãos alemães a interrogar refugiados judeus sobre as condições e circunstâncias em que ficaram para trás os seus familiares. Não era, entretanto, preciso o atentado à liberdade de Setúbal para verificar que o acolhimento dos refugiados não está a correr tão bem como se pinta. Só foram passadas 1400 autorizações de trabalho, quando o número de recém-exilados andará pelos 23 mil. Claro que muitos deles não vieram para trabalhar ou não têm condições para tal. São acolhidos temporariamente em casas de compatriotas ou portugueses solidários. Voltando ainda ao caso concreto espoletado em Setúbal, tem de se aceitar como normal que russos e ucranianos façam espionagem em Portugal. É próprio das relações internacionais e ainda mais em tempo de guerra. O mesmo se passa com americanos, franceses, ingleses, chineses e outros que por cá andam. O que não é normal é Portugal não se precaver, através das suas múltiplas entidades políticas (Governo, Parlamento, autarquias, institutos e comissões), civis, policiais (como o SEF que ora é extinto ora se mantém), militares, serviços de informação e segurança interna e externa. Se calhar é por serem tantos que não se entendem nem comunicam entre eles.

2. No solo da Ucrânia a guerra prossegue com violência e deve estar para durar. Nesta fase, nenhuma das partes quer verdadeiramente negociar porque acredita que pode ganhar alguma vantagem nos próximos tempos. A digressão de Guterres não trouxe qualquer alteração substancial. Mesmo assim, terá contribuído para permitir o início da retirada de civis de Mariupol, o alvo mais devastado pelos russos. É possível que Guterres tenha aberto campo para outros pequenos passos. A deslocação valeu a pena, apesar da provocação russa de bombardear uma zona civil de Kiev a pouca distância do sítio onde estava o secretário-geral da ONU. Poucas vezes ficou tão exposta a crueldade fria de Putin e do seu sistema de poder individual. É duvidoso que alguma vez uma única pessoa tenha tido tanto poder de destruição ao seu alcance. Até na China há forças capazes de destituir os líderes. Xi Jinping tem poderes excecionais e únicos, mas incomparavelmente menores que os de Putin. 

3. A nossa assistência social não é digna de um país da União Europeia, apesar da propaganda em contrário. Soube-se há dias que só 181 dos 8122 cuidadores oficiais (são muitos mais) beneficiaram do descanso anual a que têm direito por via da Rede de Cuidados Continuados. E porquê? Porque é difícil inscrever-se, porque há poucos lugares, mas sobretudo porque é caro para os recursos da generalidade dos cuidadores. Para variar, este apoio foi anunciado com uma campanha que envolveu discursos, propaganda e notícias. Esta justa causa foi apoiada pelas principais figuras do país, mas a aplicação está claramente aquém das expectativas criadas. Vai-se a ver e temos esta triste realidade. No plano legislativo somos como a Dinamarca. No terreno somos mais a Albânia.

4. O que funciona mesmo a sério entre nós são as finanças, os radares, os entraves burocráticos e, aproveitando-se da desorganização, certas obediências totalitárias que lutam sistematicamente contra causas justas e humanitárias, utilizando-se da democracia que desprezam e odeiam, sempre sob a capa do pacifismo. Lá para setembro estarão todos juntos a gritar pela paz numa festa nos arredores de Lisboa. Serão uma multidão de militantes e funcionários a que se juntarão ingénuos e os chamados idiotas úteis, que ajudarão a levar avante a missão de liquidar o modo de vida ocidental que os alimenta e os trata como se fossem democratas.

5. Quem também se proclama um farol da liberdade é o nosso Bloco de Esquerda. Está na vanguarda de todas as causas democráticas, desde que não perturbem a capelinha deles. No fim de semana passado, realizou-se a convenção nacional do agrupamento. Se fosse um partido ocidentalizado, certamente que alguém lá estaria a pedir uma renovação democrática, na sequência da copiosa derrota eleitoral do BE. Mas nada disso aconteceu. Usou-se a cartilha do PCP. A renovação não veio à colação. A malta dirigente garantiu a permanência nos lugares ao sol que a política lhe traz. Assim sendo, a grande Catarina saiu incólume e anunciou que o partido vai para a rua, mas ela nem pensar…A luta será agora dirigida contra a catástrofe climática, a guerra, a ameaça atómica e a arrogância do PS. Biden, Putin e Costa que se cuidem! De notar ainda que também ninguém do Bloco se indignou com a circunstância de Mariana Mortágua andar alegremente a fugir ao fisco. O respeitinho é muito bonito.

6. No PSD está, aparentemente, afastada a possibilidade das eleições diretas do próximo dia 28 serem impugnadas. Um pedido nesse sentido, feito por um grupo de militantes, foi rejeitado pelo conselho de jurisdição. Alegava-se que Rui Rio não se tinha explicitamente demitido, pelo que o Conselho Nacional não poderia ter convocado a corrida à sucessão. Nos termos da lei, há ainda recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, mas os prazos são curtos e a fundamentação da rejeição parece sólida. Refere que o objeto da liderança de Rio estava esgotada, na medida em que perdeu as eleições legislativas que constituíam o grande objetivo. Faz todo o sentido. 

7. Anunciada dias a fio, a proclamada descida dos preços dos combustíveis, em valores da ordem dos 15 cêntimos, foi um flop. Pode ter descido o ISP mas terão subido as margens de lucro ou os preços do produto. O acerto traduziu-se, na maior parte dos casos, em menos de 5 cêntimos e, geralmente, só nos postos não ligados às grandes empresas petrolíferas. António Costa irritou-se e mandou a ASAE investigar. Esperemos (confortavelmente sentados de preferência) pelas conclusões e as coimas a que eventualmente haja lugar.

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