3 de Maio de 1948. Um francês educadíssimo no meio de 800 campistas

3 de Maio de 1948. Um francês educadíssimo no meio de 800 campistas


No Parque Dona Leonor, nas Caldas da Rainha, ergueram-se mais de 400 tendas de campanha. Realizava-se o I Acampamento Nacional organizado pela Federação Portuguesa de Campismo.


Chovia de que Deus a dava nas Caldas da Rainha. Mas a água que caía do céu aos borbotões não arrefecia o espírito aventureiro daqueles que gostavam de se misturar com a natureza. Era o que faltava! No belo parque da Rainha Dona Leonor, a Leonor de Avis, ou Leonor de Lencastre, ou Leonor de Viseu, por via de seu pai, Fernando de Portugal, duque de Viseu, mulher de D. João II, seu primo, o Príncipe Perfeito, mais de 800 campistas armaram as suas mais de 400 tendas, impermeabilizando o solo. Vinham em festa, quase em romaria.

O I Acampamento Nacional, que servia de fecho ao II_Congresso da Federação Portuguesa de Campismo, foi um êxito. Gente e gente e mais gente. Vinda de todos os pontos do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, de Santiago-de-Riba-Ul a Chão-de-Meninos, uma espécie de comunhão de gostos e de interesses que nunca se tinha visto no mundo das tendas de campanha. Vendo bem era quase uma cidade no meio do jardim de árvores centenárias. Os pingos de chuva corriam ao longos das folhas, dos troncos, do plástico das coberturas dando ao lugar um certo ar lúgubre, tão diferente da libertação do espírito das pessoas que se juntavam para exibir a sua paixão.

Como ficou o local depois dos mais de 800 campistas se terem posto a caminho de regresso a casa, as notícias são escassas. Não se esperavam exemplos de higiene, pelo que terá sido algo como uma fossa de lixo e de dejectos. Não eram ainda tempos de alguém se preocupar muito com isso (alguma vez foram ou serão?), os funcionários municipais haveriam de fazer horas extraordinárias para varrerem do chão, à custa de mangueiradas, os restos de comida, as latas de atum, de cavala e de salsichas, os guardanapos de papel e um ou outro pedaço de matéria orgânica dos que se aliviavam nas traseiras dos pinheiros e dos carvalhos. Importante, importante, era que o Estado tinha montado serviços de telégrafo e telefone especiais para que todos pudessem ligar para a casa a contar como as coisas iam correndo ao longo desses três dias longos, longos. Os campistas mostravam-se agradecidos. Era um luxo! E a filosofia do campismo não estava por aí além ligada a luxos. Mas quem os recusa, se lhos põem à disposição, e de borla? Pois. Ninguém, nem mesmo os mais fanáticos do isolamento. E com mais de 400 tendas a formarem uma aldeia não havia isolamento que resistisse.

 

França presente

O movimento foi de tal forma difundido que a organização dos campistas franceses resolveu enviar um representante: monsieur Hurteau Georges, um senhor educadíssimo, por sinal, e que se gabava, do alto dos seus cinquenta e poucos anos, de já ter acampado em todos os países da Europa. Tomemos a frase como autêntica e não como farronca. Hurteau nunca tinha montado tenda nem em Portugal nem em Espanha, e estava a aproveitar a oportunidade com a satisfação de um rapazinho que corre livre num campo de papoilas e gipsofila. Georges era um poliglota. E quando subiu ao palanque devidamente preparado para a sessão de festas, dirigiu-se à plateia num português um bocado macarrónico, mas ainda assim português, facto que arrancou aplausos sinceros da multidão que se juntara para ouvir o seu discurso de campista experimentado que conhece todos os segredos de plantar tendas de campanha seja lá onde for.

Ao meio-dia em ponto, com a chuva a tornar-se apenas numa morrinha irritante, foi a vez de falar o poder. Ou seja, meteu a boca no microfone o presidente da Comissão de Turismo, o dr. Asdrubal Calisto, logo seguido pelo sr. Jaime Neto em representação do presidente do município que, nesse dia, tinha mais do que fazer. Procedeu-se, em seguida, à inauguração oficial do acampamento. Coisa de arromba. Gente aos magotes seguiu a fileira oficial pelo meio das barracas que se erguiam por todo o parque. Aqui e além um “Viva!” ou um “Hurrah!”

A coisa, convenhamos, durou pouco tempo. Não estavam os eméritos personagens para se molharem por dá cá aquela palha, reduziram o percurso ao mínimo possível, nem lhes passou pela cabeça ir de tenda em tenda, uma a uma, perguntar a quem lá estava se se sentia em casa, ou quase. Já foi praticamente perante um bocejo colectivo que todos regressaram ao palanque dos discursos. Içaram-se bandeiras. A portuguesa, da República, como não podia deixar de ser, e a da Federação de Campismo de Portugal. Estralejaram aplausos, agora autênticos, principalmente quando a segunda subiu pelo mastro acima como se fosse uma lagartixa, lá ficando molemente dependurada como seria de esperar de um pedaço de pano escharcado.

Carlos Freire, presidente da FCP, era um homem feliz e orgulhoso. Hurteau era procurado por toda a gente numa ânsia de histórias caricatas em países mais exóticos. Pela tarde, estender-se-iam os trabalhos do Congresso onde seria dada a palavra a 45 dos delegados presentes. Para alguns era demais. Tinham vindo para montar a tenda e tirar proveito dela. A chuva foi um bom motivo para se encafuarem dentro delas e não saírem mais o resto do dia.