Antes de ver o filme
Para qualquer artista que nele viva, Portugal é menos um país, um lugar habitável e à disposição dessa organização de forças que cada época permite, do que é uma questão moral, uma espécie de elemento opositor em relação ao qual se trava um debate alimentado por certos seres singulares como o era certamente Alexandre O’Neill. “Neste espaço a si próprio condenado”, por mais que o poeta pretenda “com a tristeza acender a alegria/ com a miséria atear a felicidade”, há este derrube constante que atinge, depois de uma certa idade, todas as esperanças, e então, mesmo a fantasia acaba por se reformar numa espécie de sarcasmo lírico, uma intenção suave de vingança, por meio de gracejos fulminantes, ainda que pouco eficazes, os quais oferecem um certo alivio, mas não atrapalham nem desfazem inteiramente a solenidade e o ritmo do cortejo fúnebre. Assim, alguns precisam de doses não propriamente aniquiladoras de contrariedades, mas constantes, como a sopa que se obriga a criança a engolir com a promessa de que a fará crescer saudável. A questão é depois saber o que se há-de fazer com tamanha saúde. “Certas pessoas são como as árvores”, notava Baptista-Bastos. “Eu não sei se o O’Neill, se saísse daqui, teria atingido os cumes de grande poeta que atingiu. Ele precisava do país, naturalmente. Precisava de ir para a beira-mar beber café, precisava de olhar para as miúdas, as pessoas, os velhos.” Este é um dos preciosos e mais reveladores testemunhos sobre o poeta, e é recolhido pela sua biógrafa, Maria Antónia Oliveira, naquela que é uma obra seminal no género entre nós, uma biografia literária que, editada pela Dom Quixote, há uns anos acabou guilhotinada uma vez que não vendia. E pode dizer-se que assim está tudo certo. Sendo outras as prioridades, cabe aos poetas oferecerem o pescoço para que o gume dessa estupidez dos dias continue a afiar-se. Mas agora que a cabeça mais ou menos decapitada do poeta, agarrada ao resto do corpo por uma víscera resistente, assume novamente uma posição de destaque, e antes de falarmos de “Um Filme em Forma de Assim”, retomemos os testemunhos para tentarmos ir além do contorno desta figura tão central a esse desgosto e necessidade de ser português. “O Alexandre era um ser, por um lado muito lisboeta, por outro lado profundamente português, enraizado mesmo no centro do país, na Beira – o Bulhões, o tio-avô dele”, ressaltava o cineasta José Fonseca e Costa. Já o poeta, ele mesmo, numa entrevista em 1982, explicava a coisa assim: “Sem pieguice, digo-lhe que sempre ‘sofri’ Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…)”. E aí está o que, por agora, mais nos interessa ressaltar, quando nos preparamos para receber nas salas de cinema, já sem máscaras, o poeta numa sessão de esclarecimentos além-tumba, e isto é feito 35 anos depois pela mão de João Botelho, que com Leonor Pinhão, tinha já, em 1986, assinado “Um Adeus Português”, que ia buscar o título a um dos poemas mais estimados, mais reconhecíveis e pungentes entre os escritos nesta língua. Era uma reflexão que ganhava balanço no consciencioso fôlego de O’Neill, que agora regressa num filme meio tresvariado, organizado como um sonho, num atavio de musical que recupera tantos textos e poemas, ditos ou contados, numa crónica de lugares que se repetem, elaborando ritmicamente esse registo insólito em que abunda o nosso quotidiano, a partir de situações inesperadas e risíveis, reelaborando este vaudeville de um “tempo de fantasmas” que é cada vez mais o nosso. Escrito a meias com a biógrafa do poeta, é de esperar que alguma justiça seja feita ao génio de palito nos dentes que era o de O’Neill, com aquele talento de sacar de orelha as intimidades meio embaraçadas ou desavergonhadas da nossa patriazinha iletrada. “Um Filme em Forma de Assim”, ousa dirigir-se ao público em geral, e pode-se esperar um desfilar dessas figuras assombrosas que falam sozinhas na rua, que desde a sua época como pela posteridade fora, balançam no poleiro, fincando as garras, a ler as notícias, a fazer sobressair essas inconsistências estapafúrdias que umas vezes nos fazem rir e outras nos desinfectam dessa ingenuidade de se querer a vida como um argumento para a esperança. O filme que estreia a 12 de maio nos cinemas, foi ontem exibido no São Jorge como um dos pratos fortes do IndieLisboa, o qual estende a sua programação até dia 8, mantendo-se fiel à tradição de apoiar o cinema de autor, esse que por ser tantas vezes indigesto, magoa a vista, cala fundo, rasga e abre o órgão deste remorso de todos nós.
Depois de ver o filme
O’Neill presta-se bem a uma desgarrada, a que o digam alto, tem o rodeio sonante que até pede que o cantem, dá para a cotovelada irónica, que deixa o outro a pasmar sem ter o que responder, e é um ás naquela bazófia com fundo melancólico, mas entre tudo aquilo com que já contávamos, às tantas damos por ele como um ser desdobrado em comunidade, e mais do que o génio dos mil apartes, no filme de João Botelho, que teve a sua ante-estreia no primeiro dia (28) do IndieLisboa, vemos um retrato de tal modo aberto, livre, como o miolo de um pão esfarelado num rol de personagens alimentando-nos na praça da sua imaginação, que damos por um homem muito mais precioso que uma obra, um homem-manancial, o protagonista de um desabrido incêndio metido em coisas de sonho. Entre cogitações fabulosamente urdidas, damos por nós entregues a uma revoada, num ensaio fílmico que alcança um nível inesperadíssimo no que toca a lembrar tudo o que é possível fazer-se no recreio da homenagem, encadeando de forma sumptuosa as partes que ficam de um homem a latejar aos bocados, como ruína afinando do vento o assobio no desinteresse dos anos que passam. Este “Um Filme em Forma de Assim” não tem só pernas e cabeça, tem aquela força de saber divagar, dissociar e associar, aumentar, diminuir, deformar, saber retardar a explosão do belo, criar a justa impressão entre este e o grotesco, fazer entender que é ténue a linha entre uma noção e a outra, fazer-nos saber que a mordacidade deste poeta nasce, como ele mesmo disse sendo generoso com outro artista, de um saber inspirar-se em “abandono vigiado”, dando asas vagabundas à razão. Ora, neste filme sobressai justamente aquela espirituosidade malandra, o gosto de sacar de orelha, compor atravessado entre estar só entre a gente, num desígnio que balança entre a graça e o ultraje, sempre com um espantoso traquejo. Este é antes de tudo um maravilhoso acto de imersão, um puzzle montado e desfeito tantas vezes, um exercício profundíssimo que parte das palavras e chega ao fundo de todos os bolsos, revirando-se, refazendo-se de novo, dando tempo ao olhar de tudo ver, ao ouvido de cair no enlevo, deixando muito longe aquela sisudez que se tornou ritual quando se vem para estas coisas discutir o que nos irmana na condição de sermos daqui, de Portugal.
Assinado a meia entre Botelho e a biógrafa de Alexandre O’Neill, Maria Antónia Oliveira, o enredo é uma demanda extraordinária, uma aventura que, afinal, encontra imensa matéria para dar um nó ao corrimão, fazendo justiça ao poeta que se lamentava amiúde da condição que nos leva a passar a vida a encontrar a mesma mosca. Trata-se de sair indo ao mais fundo de si, de todo o intricado humano que a sensibilidade de um ser alcança. E num ambiente cultural onde a maior liberdade que nos vai sendo dada é gostar disto, gostar menos daquilo, ser niquento à mesa do café, apupar com os críticos no dia seguinte, neste país em que nos olhamos ao espelho “pelo buraco da fechadura”, é bom de súbito sairmos de uma sala de cinema, depois de nos desfazermos em palmas, encantados da vida!
Numa altura em que andamos um tanto amofinados pelo palavrório redundante que revira à lupa anotações minúsculas, que se entretêm com relatórios da polícia exarados como se tudo o que respeita à literatura só pudesse ser alvo de perícias enfadonhas, surge-nos pela frente uma coisa realmente em forma de assim, no sentido em que, partindo não só da obra mas do homem, o sabe compreender e amparar, sabe ver e rever, mas sobretudo sabe mostrar e celebrar, e não só com aquele afã legitimador de quem atesta, carimba, mas antes com o prazer de se espantar, com aquele gozo do desarme, de ver como “a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu”, e, assim, o filme baralha e volta a dar, sabe trazer à luz mais crua, puxar por uma trela, juntar-se ao poeta no modo de fazer notar o tanto estrago que faz a vidinha, com aquela sua “venenosa ternura”. E assim, no meio da azáfama, quando o regime de modas e bordados manda que se vire os gavetões um tanto à balda, nesse ensejo dos anões saltitantes que pretendem dar-nos em bloco tudo o que tenha saído da pena de um autor maior, é numa altura destas que João Botelho e Maria Antónia Oliveira nos livram dos tão costumeiros e degradantes modelos que, por facilidade, levam a recair nessa forma de culto de santinhos de altar, essa chusma de “biopics” que vão saindo a um ritmo alucinante da fábrica hollywoodesca. Botelho confessa que, mais que repulsa, está ao nível do ódio o seu sentimento por essas fórmulas, e explica que, no seu filme, pelo contrário “ninguém é O’Neill, mas todos, principais e secundários, são o escritor, porque, em cenas criadas por ele, em outras inventadas por mim, transportam a sua magnífica escrita”. Trechos, excertos, bocados, escombros de vida, tudo se recombina, baralha, num refazimento que nos denúncia como os géneros literários são inimigos que não falham os alvos, e então, o próprio filme é um ensaio sobre a forma, uma libertação desassombrada, numa sucessão de planos e num balanço entre zonas de penumbra e uma explosão de cores, aproveitando-se de uma estrutura musical que leva a que tudo ressoe, com aquele balanço do corpo, aquele gesto seguro da mão que passa de escrever para se enlaçar com a outra e impor o “coração acordeão”. Se não há como disputar que se tenha alargado a época dos mirones, dos que vêm para espreitar o lado grotesco do acidente, e, com alguma sorte, testemunhar ainda o sofrimento, a agonia antes do fim, este filme vai no sentido contrário. Assumindo-se como um divertimento em tempo de pandemia, há nele aquela urgência de retomar a festa, num país que mal sabe como dar alento à alegria, e então é como se ousasse lançar-se num estudo anatómico desse órgão que produz os sonhos, e assim, como que empurrado, também o cinema é forçado a deixar as manias ditadas pelo “negócio estúpido”, e, deste modo, João Botelho, retoma a sua tese, e enfatiza como o “cinema acontece quando a metonímia arrasa a metáfora, quando a liberdade expressiva esmaga a vigilância normativa”. Para que o cinema volte a prosseguir ideias que sejam suas e não noções impostas de fora, Botelho rasga os pressupostos da narrativa, os convencionalismos bacocos que ditam os limites entre os quais o público ou os espectadores se sentem confortáveis, limites que estão, na verdade, ao serviço do apetite dos mirones. Aqui, pelo contrário, dos textos e poemas, extraem-se “signos que se organizam em novas constelações”, que colidem e se encadeiam. “os sentidos fluem, degeneram, renascem, numa vertigem sem fim”, diz-nos o realizador, adiantando que o seu trabalho passou por “tentar como artífice de um mundo que se orienta para outros pontos cardiais, os do sonho”. E segundo esta audácia exploratória que se joga o ardiloso regime de combinações que nos oferece este filme, vencendo todas as curvas sem nos entregar a uma linha recta, devolvendo-nos a um O’Neill que tem aquela inocência da visão que faz dele um poeta ao gosto popular, sem abrir mão dessas argúcias e manhas que dão para “devolver a imagem mais secreta/ à mais comum visão”.