A Direção Geral da Saúde está a acompanhar o alerta emitido pelo Centro Europeu de Controlo de Doenças e pela Organização Mundial de Saúde depois de terem sido sinalizados vários casos de hepatite aguda em crianças pequenas, de origem ainda indeterminada, primeiro na Escócia mas entretanto também nos Estados Unidos, em Espanha, nos Países Baixos e na Dinamarca. A origem dos quadros de inflamação aguda do fígado mantém-se uma incógnita, mas com vários países agora a reportar um fenómeno idêntico, começam a juntar-se as peças do que parece ser um fenómeno mais generalizado do que estritamente local e que tem estado a intrigar e preocupar os médicos que notaram um aumento de diagnósticos mais severos.
Desde logo porque os quadros clínicos, pouco habituais em crianças, não foram associados aos vírus da hepatite, o que seria a primeira hipótese. Sabe-se no entanto que diferentes infeções podem afetar o fígado. Com a pandemia ainda com níveis de transmissão elevados e o coronavírus a ser testado por rotina, constata-se que algumas crianças estavam infetadas como SARS-CoV-2 – sendo esta uma das manifestações possíveis da covid-19 – mas nem todas tinham esse quadro.
Uma outra suspeita, neste momento a mais forte, recai sobre o adenovírus, diagnosticado em algumas das crianças hospitalizadas. É um vírus respiratório que circula habitualmente de forma sazonal, mais de inverno que de verão, mas que normalmente não provoca quadros de lesão hepática, o que deixa em aberto poder tratar-se de uma variante mais agressiva ou o resultado de as crianças mais pequenas terem menos defesas depois de dois anos de menor contacto social durante a pandemia.
Portugal sem casos
Ao i, a Direção Geral da Saúde indicou esta segunda-feira que está a acompanhar os alertas e que até à data não houve notificações no país. Rui Tato Marinho, diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Hospital de Centro Hospitalar Lisboa Norte e diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais da DGS, adianta ao i que a situação começou a ser acompanhada nas últimas semanas quando começaram a surgir relatos de um aumento destes casos em idade pediátrica. Já no final da semana passada, quando foram emitidos os alertas do ECDC e da OMS e foram reportados os primeiros casos em Espanha, o médico adianta que o programa alertou a Sociedade Portuguesa de Pediatria para que os pediatras possam também estar atentos.
“Não há motivo para alarmismo, mas para reforçar a vigilância e estarmos preparados para como atuar na eventualidade de surgirem casos no país”, sublinha Rui Tato Marinho, explicando que a esta altura é cedo para ter certezas sobre o que explica estas hepatites. São atípicas por ser pouco comum haver hepatites agudas em crianças e mais preocupantes porque nos casos mais graves houve necessidade de transplantes hepáticos. Rui Tato Marinho admite ainda que neste regresso às aulas após as férias da Páscoa este é um motivo adicional para manter os cuidados de higiene nas escolas e no contacto entre as crianças mais pequenas e que poderá ser necessário reforçar as orientações. No Reino Unido a saúde pública recomendou já, sendo uma das suspeitas o adenovírus, que se reforce a higiene das mãos, com os pais a encorajar os filhos para as lavarem, além da etiqueta respiratória. Quanto aos sintomas a estar atento, a icterícia (pele amarelada) é o principal.
O que se sabe
Apesar de só na última semana terem soado os alertas internacionais, o número atípico de casos de hepatite aguda em crianças começou a ser constatado ainda em março. Um artigo publicado no Eurosurveillance na semana passada fez o ponto de situação sobre os casos em Glasgow, na Escócia: há registo de 13 crianças hospitalizadas nestas circunstâncias até 12 de abril – a primeira a 11 de janeiro. Têm uma média de idade de 3,9 anos e os sintomas incluíam icterícia, dor abdominal, náuseas, diarreia, vómitos e letargia e, segundo os autores, médicos na capital escocesa, nenhuma das crianças tinha doenças prévias conhecidas.
Depois de serem hospitalizadas, deram resultado negativo para os vírus da hepatite A, B, C e E. Cinco tinham historial recente de infeção com o SARS-CoV-2 e também cinco deram positivo para infeção com adenovírus, que este ano retomou os níveis de circulação pré-pandemia mas não é testado por rotina, pelo que pode passar despercebido.
A equipa concluía que além da elevada concentração de casos num curto espaço de tempo – habitualmente são esperados na Escócia quatro casos de hepatite de etiologia indeterminada por ano – a gravidade das manifestações clínicas foi especialmente notada pelos médicos.
Quando o artigo foi publicado, uma criança já tinha precisado de um transplante de fígado e outras duas tinham sido submetidas a avaliação. As hipóteses iniciais, escrevem, incluíam poder tratar-se de uma intoxicação, por exemplo alimentar, algo que descartam por haver entretanto mais casos confirmados no Reino Unido e nos Estados Unidos. “No momento desta publicação, a principal hipótese centra-se no adenovírus – ou uma nova variante com um síndrome clínico distinto ou uma variante que circule rotineiramente mas que esteja a impactar de forma mais severa crianças que são imunologicamente naíves. Este último cenário pode ser o resultado de restrições aos contactos sociais durante a pandemia de covid-19”, admitem, não excluindo que possa haver outra origem infecciosa, por exemplo que uma infeção recente com a variante BA.2 da Omicron, que tem dominado a circulação do coronavírus, possa aumentar a vulnerabilidade; ou que se trate de uma consequência de uma outra variante do SARS-Cov-2 não caracterizada ou de um novo vírus. Notavam ainda que nenhuma das crianças estava vacinada contra a covid-19.
No Reino Unido há agora mais de 70 casos reportados. Em Espanha, foram sinalizadas três crianças (entre os 22 meses e os 13 anos) e uma também precisou de transplante hepático. Nos EUA, o alerta soou no Alabama, onde o departamento de Saúde Pública adiantou que todas as crianças (nove) tinham menos de dez anos e testaram positivo para uma variante específica do adenovírus (adenovírus 41) associada a casos severos de diarreia. Somando os casos reportados nos últimos dias, são já cerca de uma centena. A Organização Mundial de Saúde considera provável que possam ser detetados mais antes de ser determinada a origem, que admite que pode ser biológica ou química, e as medidas apropriadas de controlo e prevenção. Para já, as medidas disponíveis e recomendadas são as que se generalizaram durante a pandemia e que são a base de prevenção de muitas infeções: lavar as mãos com frequência e não tossir ou espirrar para cima de outras pessoas, cuidados a reforçar especialmente entre as crianças.