Ensina-nos a História como pequenos passos vão sendo sucessivamente dados na relação entre Estados, até que, cumulativamente, o contraste entre o ponto de partida e a posição final se revela em pleno, chocando-nos pela sua crueza. Eis o que se verificou na relação entre a Alemanha e a Rússia desde o fim da II Guerra Mundial, ao longo de três gerações, culminando, fatidicamente, na atual crise ucraniana, crise de uma gravidade inédita, pois envolve uma superpotência nuclear, a Rússia, como beligerante numa operação militar nas suas Marcas e de que não pode sair derrotada.
A saída definitiva e completa da Ucrânia da órbita russa, que seria consumada caso o país ingressasse na NATO, é uma linha vermelha geopolítica intolerável para Vladimir Putin e para as elites russas. A deriva para Ocidente da Ucrânia – cujo nome designa, reveladoramente, “terras de fronteira” – tem sido induzida por forças poderosas ao longo de três décadas. Sobre um colapso demográfico e económico, sucessivas lideranças ucranianas, ora incitadas pelo nacionalismo Galiciano, ora atentas ao peso industrial do Leste do país, tradicionalmente russófono e russófilo este, foram traçando um caminho sinuoso, é certo, mas tendencialmente aliciado pelo projeto europeu. O percurso, sempre tateante, por vezes empecilhado, por vezes facilitado pela endémica corrupção das elites ucranianas, encontrou uma encruzilhada no final de novembro de 2013, chegado o momento de assinar o Acordo de Associação UE-Ucrânia. O acordo não era uma mera associação comercial pois ambas as partes comprometiam-se a promover uma convergência nas áreas da política externa e de segurança; uma adesão da Ucrânia à NATO poderia assim entrever-se num futuro não muito longínquo. Sob pressão russa, a recusa de última hora do Presidente Viktor Yanukovych em assinar tal acordo desencadeou a revolução da Praça Maidan. Simplisticamente apelidado de russófilo – estava longe de o ser -, Yanukovych era um líder embrenhado nos arranjos mais ou menos inconfessáveis da política ucraniana, mas ciente das profundas linhas de fratura que dividiam o seu país.
No final de fevereiro de 2014 Yanukovych foi deposto revolucionariamente. Como era óbvio, a Rússia não iria permanecer passiva e anexou a Crimeia ao mesmo tempo que enquadrou a rebelião do Donbass contra o novo poder em Kiev, poder que se alinhou então totalmente com Bruxelas e com Washington. Acendeu-se assim uma guerra civil que se manteve em baixa intensidade durante oito anos até ao recente deflagrar da guerra russo-ucraniana.
A Alemanha, país fulcral na União Europeia, foi interveniente em todo o processo de aproximação à Ucrânia. Só a passagem de várias décadas sobre o final da II Guerra Mundial e o falso sentido de segurança induzido pelas ações quando tomadas em grupo pode ter iludido a Alemanha sobre a inevitabilidade de uma reação russa, reação que acabou por explodir nas últimas semanas com extrema violência. Como se chegou a este ponto? Como pôde a tremenda carga do passado histórico ser alijada pela Alemanha, ofuscada pelo processo estratégico, mas também profundamente burocrático, da expansão da União Europeia para Leste?
Recuemos então à primavera e ao verão de 1945. Milhões de prisioneiros de guerra alemães sofriam trabalhos forçados na União Soviética, em expiação da mortandade e da destruição por eles ali causadas no quadriénio anterior, enquanto o indizível era infligido a uma multitude de mulheres alemãs, indefesas perante a invasão do Exército Vermelho. Cruelmente, mas com implacável justiça, o Drang nach Osten, sonhado pela ambição desmesurada e criminosa de Hitler, entre a de muitos outros alemães, ricocheteou nach Westen: mais de uma dezena de milhões de refugiados – refere-se o aziago número treze – deslocou-se para Oeste, abandonando para sempre – melindrosa expressão, ensina-nos a História – as suas terras. Províncias com fixação germânica secular iriam integrar a nova Polónia e a própria União Soviética. Os Alemães designam tal período, e com propriedade, de “a catástrofe”.
Chegara a hora de comemorar o triunfo soviético, conseguido com sacrifícios que apareciam então como sobre-humanos aos restantes países europeus. No dia 24 de junho, na Praça Vermelha, sob a vigilância felina de Estaline, que tudo observava da tribuna sobranceira ao túmulo de Lenine, o marechal Jukov, o conquistador de Berlim, montava um magnífico puro-sangue do Terek no desfile da vitória. Quando, invariavelmente no dia 9 de maio de cada ano, as forças militares russas desfilam na mesma praça comemorando a vitória na Grande Guerra Patriótica, fazem-no perante a estátua equestre do grande marechal, prova de como o garbo daquela cavalgada de 1945 empolgara indelevelmente as consciências russas.
Qual seria, no centro da Europa, o destino reservado aos Alemães nos anos que se seguiram à catástrofe? Reeducados por cartilhas distintas, consoante os lados da Cortina de Ferro que lhes haviam cabido em sorte, compungidos, operosos e disciplinados como sempre, os Alemães construíram com uma tenacidade admirável um gigante económico a Oeste, gigante que se esquivou durante décadas a assumir um lugar compatível com o seu porte no palco da grande política do pós-guerra. A Leste, a chamada Alemanha Democrática construiu um mais modesto triunfo ao conseguir manter num funcionamento razoável a máquina económica regida pelo modelo utópico imposto por Moscovo.
A Guerra Fria correu o seu curso de décadas e eis chegado o verão de 1990, quando, poucos meses decorridos sobre a queda do Muro de Berlim, a reunificação alemã foi negociada. Negociação é um termo enganador, pois o chão já se abria então debaixo dos pés de Gorbachev – cedência unilateral e precipitada será classificação mais justa. Longe iam as quadras natalícias em que os berlinenses solicitavam a possibilidade de se reunirem com os seus familiares separados pelo Muro – modesta concessão ganha em 1963 pela Ostpolitik, a comedida tentativa de abertura e de reconciliação, política que tanto ficou a dever a Willy Brandt, o Burgomestre de Berlim Ocidental, mais tarde chanceler, merecidamente agraciado com o Prémio Nobel da Paz em 1971.
Porém, quando o Muro se esboroou, o povo alemão já não se apresentava de chapéu na mão perante o vencedor de 1945. Pelo contrário, os Alemães, se bem que agradecidos a Gorbi, que então idolatravam, não apareciam menos na posição de credores da decrépita economia soviética. Os largos capitais disponibilizados para tais auxílios contrastavam com a penúria de um sistema económico desacreditado, no qual os cidadãos soviéticos simulavam tantas vezes o trabalho, que resultava remunerado pelo Estado através de pagamentos numa moeda também essa simulada. Que amarga desilusão para os Russos! Ao fim de poucas décadas, o diligente burguês alemão tirava a sua desforra sobre o outrora vitorioso soldado soviético.
Avancemos até ao último dia de agosto de 1994, quando Boris Ieltsin se deslocou a Berlim para assinalar um momento que se desejava solene: os últimos 1800 militares russos abandonavam a guarnição naquela cidade, para serem desmobilizados e recomeçarem as suas vidas no caos da Rússia. Evocando a memória dos 7000 soldados soviéticos caídos na batalha final pela conquista da capital do Reich, e o total de 320 000 que continuam sepultados em território alemão, Ieltsin discursou visivelmente alcoolizado. Na ocasião, perante um Helmut Kohl entre o embaraçado e o divertido, o Presidente russo, sob a mesma bizarra influência, comprazeu-se a dirigir uma banda militar alemã na execução da Kalinka. Tais imagens, inequívocas, ficaram registadas para a posteridade. Não poderia imaginar-se contraste mais grotesco com o garbo de Jukov cavalgando na Praça Vermelha.
Guardamos dos idos de 1945 as imagens da alegria simples de rudes soldados soviéticos a dançarem, provavelmente a mesma Kalinka, quando se reuniram com os soldados anglo-americanos junto ao rio Elba. No entanto, meio século mais tarde, esperar-se-ia de Boris Ieltsin, comandante supremo das forças armadas russas um comportamento mais consentâneo com a solenidade da situação. Pelo contrário, o descalabro geoestratégico da Rússia ficou pontuado pelo comportamento embaraçoso do seu líder. Não se esqueça como tal descalabro advinha, em boa medida, da falta de escrúpulos políticos do mesmo Ieltsin no seu duelo mortal contra Gorbachev pelo poder supremo no Kremlin, duelo ocorrido poucos anos antes.
Entretanto, Vladimir Putin, um coronel do KGB regressado de Dresden, a cidade alemã banhada pelo Elba, tentava reconstruir a sua vida em Leninegrado – até esse nome, sob o qual a histórica segunda cidade da URSS sustentara heroicamente um cerco de novecentos dias, iria ficar pelo caminho! -, tendo sido obrigado a conduzir como chauffeur para alinhavar o sustento da sua família. Não é difícil supor o ranger de dentes de Putin, na já então rebatizada S. Petersburgo, ao ser confrontado com imagens de tal forma humilhantes para um patriota russo. No final da traumática década de 1990, Putin, ascenderia por meandros, talvez fortuitos, talvez orientados pela mão invisível do KGB/FSB ao poder supremo no Kremlin, cooptado por um Boris Ieltsin, alcoólico, exausto e doente. O trabalho paciente de reconstrução da Rússia, sob o pulso cada vez mais firme e autoritário desse mesmo Putin, assegurou ao país e ao seu líder de mais de duas décadas uma posição respeitada, e temida, também.
E eis-nos em 2022, não distantes dos idos de março, mês da Guerra. Desde as primeiras horas do dia 24 de fevereiro anterior, as “medidas técnico-militares” prometidas por Putin em dezembro, caso as exigências russas no domínio da segurança não fossem atendidas pelo Ocidente, materializaram-se numa “operação militar especial” em território ucraniano. Putin decidiu “soltar os cães de guerra”, na aceção shakespeariana da expressão. Chamá-los de novo ao seu pulso não se revelará tarefa fácil.
Dois dias após o início da invasão russa, no dia 26 de fevereiro último, a Alemanha tomou uma decisão histórica no contexto da sua carregada relação com a Rússia: fornecer armamento letal à Ucrânia, declaradamente e sem subterfúgios. Tal atitude, apesar de enquadrada no alarido geral da indignação ocidental face à agressão russa, não passará despercebida ao Kremlin. Arrisca-se vaticínio mais severo: muito dificilmente será tal atitude perdoada. Este passo alemão sobre o Rubicão – não reste qualquer dúvida de que a Rússia, chame-lhe paranóide quem o quiser, assim entenderá tal passo – desencadeará fatalmente uma série de ações mútuas no domínio da defesa e carregará ainda mais os céus sobre territórios que o historiador Timothy Snyder designou de “terras ensanguentadas”, título do seu livro Bloodlands, Europe between Hitler and Stalin.
Ao prometido substancial aumento no orçamento da defesa alemã, que cobrirá uma defesa antimíssil minimamente competente, seguir-se-á a reativação de cabeças nucleares russas até agora em reserva. Que credibilidade e sentido terão, em tal contexto, quaisquer negociações sobre a limitação de armas nucleares estratégicas ou mesmo táticas em território europeu?
Ora, qual é o motivo imediato para tal corrida às armas? Trata-se, nem mais nem menos, da fatídica Ucrânia. Pior “osso da discórdia” nas relações germano-russas não poderia imaginar-se. Cite-se o mesmo Timothy Snyder, de um discurso pronunciado perante o Bundestag em 20 de junho de 2017. Este discurso enquadrava-se numa conferência então organizada pelo grupo parlamentar Die Grünen (Os Verdes) sobre o tema da “Responsabilidade Histórica Alemã perante a Ucrânia”. Afirmou então Snyder: “O desígnio da Segunda Guerra Mundial, na perspetiva de Hitler, era a conquista da Ucrânia. […] Qualquer comemoração da Segunda Guerra Mundial que envolva os propósitos nazis – os propósitos ideológicos, económicos e políticos do regime nazi – deve começar precisamente pela Ucrânia.” Aquilo que Annalena Baerbock, dos mesmos Os Verdes e hoje detentora da pasta dos Negócios Estrangeiros no governo de Olaf Scholz, terá retido do juízo de Snyder não sabemos. Contrapor-se-á que o chanceler Scholz está nos antípodas ideológicos do seu antecessor Adolfo Hitler. Concorda-se. Porém, a relação entre Estados segue uma lógica própria que é contingente em relação aos seus respetivos líderes. Por vezes, estes últimos são meros epifenómenos arrastados pelo motor invisível, mas inexorável, da tectónica de placas geopolítica.
E são estes os movimentos em curso que no momento presente revolvem as fatídicas Bloodlands, terras onde teutões e eslavos se têm secularmente digladiado e que continuam pejadas de minas por desativar e de cadáveres mal enterrados.
Por esta altura, terá sido transmitida ao leitor a inquietação que o momento justifica. Perdoe-se por isso a invocação insistente da História, essa mestra severa e de longa memória!