Começo este texto com um convite neste tempo de Quaresma: desafio todos os leitores do i a visitar o Museu e a Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Cascais.
Com cerca de 250 anos de história, a Igreja da Misericórdia, bem no coração de Cascais, foi erguida logo a seguir ao grande terramoto de 1755 que arrasou a sede da Santa Casa da Misericórdia na Ermida de Santo André, onde se tinha instalado no longínquo ano de 1551 – na verdade, a Santa Casa, uma das mais antigas instituições do concelho, só rivaliza com a própria ideia de autarquia em questão de longevidade e presença continua no território.
A construção da Igreja parou em 1781. As dificuldades financeiras conhecidas ao longo do projeto ficariam visíveis nas torres sineiras inacabadas.
A austeridade do exterior sempre escondeu um interior riquíssimo, com uma coleção de arte sacra verdadeiramente admirável e de valor incalculável que muito poucos conhecem, ao ponto de se descobrirem pinturas originais do século XVIII camufladas pelo estuque. E porquê este desinteresse colectivo? Porquê a omissão deste património?
Porque esta Igreja centenária nunca conheceu qualquer melhoramento ou intervenção desde 1781, vivendo a maior parte do nosso tempo fechada sobre si mesma e envergonhada na sua simplicidade inacabada. A verdade é que não soubemos tratar da herança que nos foi legada durante anos demais.
Porém, acertámos contas com o passado. Domingo devolvemos a Igreja e o Museu da Misericórdia aos cascalenses e, sobretudo, consagrámos a centralidade das tradições judaico-cristãs na nossa identidade.
A intervenção, não apenas de restauro, mas de reabilitação do espaço público envolvente, simboliza literalmente um novo tempo. A Igreja deixou a sombra e passou a brilhar no perímetro do Bairro dos Museus.
Para além das paredes e do edifício que agora se impõem com naturalidade no espaço que sempre devia ter sido seu, garantimos às gerações vindouras o acesso livre e democrático às nossas raízes. O Arquivo Histórico Digital de Cascais, um dos maiores do país, passa desde esta semana a disponibilizar para consulta pública o riquíssimo arquivo desta irmandade fundada em 1551. Para além do fundo Santa Casa da Misericórdia de Cascais (1428-2007), o arquivo comporta ainda 9 subfundos de extrema importância para o estudo da história da religião e da assistência no concelho: Irmandade de Nossa Senhora dos Anjos (1680-1874), Irmandade das Almas (1813-1848), Irmandade do Santíssimo Sacramento (1838-1979), Confraria de S. Pedro Gonçalves (1849-1859), Associação de Socorros Mútuos Dr. José Passos Vela (1869-1973), Junta de Paróquia de Nossa Senhora da Assunção e Ressurreição de Cristo (1880), Albergue de Mendicidade da Mitra (1923-1995), Associação do Rosário de Nossa Senhora de Fátima (1927-1941) e Comissão Municipal de Assistência de Cascais (1946-1971).
A recuperação da Igreja e a constituição do museu é uma obra simbólica. Porque é feita entre guerras. Foi lançada em pleno período pandémico. E, por triste coincidência, acabada quando a Ucrânia é invadida brutalmente pela Rússia.
Há uma história popular que se conta sobre Churchill, em que o antigo PM britânico se terá negado a cortar o orçamento da cultura para financiar o esforço de guerra, replicando: “Se for assim, por que estamos a lutar?”.
A frase, que por acaso é erradamente atribuída a Churchill, serve para o caso: é que durante a nossa guerra contra a covid, e apesar do tremendo esforço que fizemos enquanto comunidade, não perdemos de vista a nossa cultura e a nossa identidade. Porque elas são as traves-mestras da nossa sociedade. Mesmo durante a covid, fizemos investimentos muito robustos na cultura – no Estoril com o Edifício Cruzeiro que constituirá a Vila das Artes, São Domingos de Rana com o Casal Saloio de Polima ou a requalificação das ruínas romanas de Freiria, e em Alcabideche com o futuro Museu dos Bombeiros.
Investimos no Património. Democratizamos a Cultura. Erguemos um Cascais mais forte. A pandemia não foi desculpa para não fazer. A pandemia não foi desculpa para não ser.
Inauguramos uma igreja quando a loucura da guerra voltou ao coração da Europa. Ao contrário do que nos querem convencer os propagandistas do regime, a Ucrânia é uma nação antiga, com uma história centenária, com expressões artísticas raras e valiosas.
Eu sei que é a tragédia humanitária que nos ocupa na sua urgência. Mas não podemos deixar de nos chocar com a brutalidade dirigida à cultura, num projeto claro de obliteração identitária. Há uma ameaça existencial à cultura e à arte ucranianas: na pilhagem à “Popov Manor House”, no ataque ao Memorial do Holocausto, na destruição infame de teatros e museus e no fanatismo dirigido contra os elementos constitutivos da narrativa histórica ucraniana.
É uma dor na alma ver cidades inteiras arrasadas. É comovente ver o amor com que os ucranianos salvam os seus quadros de museus estilhaçados. É inspirador ver como protegem as suas estátuas e monumentos com sacos de areia e gaiolas de ferro.
Estas são pessoas que enfrentam o risco de perder tudo. Tudo o que têm e tudo o que são. Que nos sirva de lembrança e nos moa a consciência, a nós em Portugal, que no nosso conforto, no comodismo e na desculpa fácil, tão maltratamos o nosso património.
Algumas vezes por ação, outras mais por omissão.
Na ausência de uma ameaça externa, não deixa de ser paradoxal que sejamos nós mesmos, tantas vezes, os maiores inimigos da nossa história.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira