A mãe de todas as reformas


O sistema está capturado de cima para baixo, num patamar de tipo oligárquico, que tem capacidade para tudo impedir, por maiores que sejam a pressão de baixo, o interesse público, o clamor popular.


Desde 2014 que escrevo regularmente nestas páginas sob o lema “Por uma Democracia de Qualidade”, série que tenho de interromper hoje, por imperativos de reorganização. Tem sido a sequência do Manifesto por uma Democracia de Qualidade, subscrito por cerca de 40 homens e mulheres da vida pública portuguesa e apresentado na SEDES, em fim de Agosto desse ano. Focava-se em dois problemas, causas principais do declínio da nossa democracia – a captura do sistema eleitoral e o financiamento partidário –, propondo medidas. A reforma eleitoral era ressaltada como a mãe de todas as reformas, porque os autores do manifesto, com longa experiência cívica, constataram em anos consecutivos de intervenção cidadã que as reformas essenciais não são feitas em Portugal porque, mesmo quando obtêm largo consenso e aceitação na opinião pública, há sempre interesses poderosos que as conseguem fintar, entreter ou bloquear, nas curvas e contracurvas do sistema. Porquê? Porque o sistema está capturado de cima para baixo, num patamar de tipo oligárquico, que, por maiores que sejam a pressão de baixo, o interesse público, o clamor popular, a consistência impressiva dos argumentos, a atractividade das propostas novas, a evidência dos benefícios das reformas, tem capacidade para tudo impedir e parar, porque “o que está, está”.

Os estudos da reforma eleitoral, primeiro na APDQ, depois também na SEDES, que abraçou este projecto em 2017, conduziram-nos para uma proposta de sistema misto de representação proporcional personalizada. Isto é, um sistema que articula de modo complementar os círculos plurinominais (como temos hoje), com novos círculos de candidatura uninominais (dentro do território daqueles) e um círculo nacional de compensação, assim permitindo a escolha personalizada dos deputados sem que isso altere a proporcionalidade da representação partidária.

Não fizemos esta escolha do nada, assim como quem constrói castelos no ar. Não. Tirámo-la do óbvio e pela via mais recta possível: a Constituição. De facto, esta prevê, desde 1997, no artigo 149.º, a possibilidade de “existência de círculos plurinominais e uninominais”, definindo “a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional”; e acrescenta um “círculo nacional” (que já era possível desde 1989).

O facto de a Constituição o permitir desde 1997 e a reforma não ter sido feita num período de 25 anos – vinte e cinco anos! –, dá bem a ideia de como é poderosa a força obstrutiva instalada. Os partidos mais pequenos têm infelizmente contribuído para isso, por desconhecimento, falta de estudo e percepção errada da operação do sistema. Não o digo por presunção, mas por experiência própria: se não me tivesse envolvido no seu estudo, não teria percebido como ele é tão bom e tão adequado à resolução dos problemas do nosso sistema eleitoral – quebra da ligação entre eleitos e eleitores, baixo grau de escrutínio político, caciquismo fácil, fragilização dos deputados, poder quase absoluto dos directórios, fácil captura, muito alta abstenção. E o facto de o modelo mais próximo ser o alemão não ajuda, pois a língua alemã (pouco falada) dificulta a sua percepção imediata por observação directa das pessoas comuns.

É, de facto, um sistema muito bom, que não esmaga nada os pequenos e médios partidos – pelo contrário. Permite ao eleitor, pelo exercício livre do duplo voto (no partido e no deputado), escolher o seu deputado, sem afectar a proporcionalidade da representação partidária. Gera uma dinâmica virtuosa na formação das listas de candidatura, limitando o poder impositivo dos directórios e favorecendo a escolha de candidatos (tanto uninominais, como plurinominais) com prestígio público, créditos firmados e boa aceitação do eleitorado. Instala, como deve ser, uma dinâmica geral de escrutínio ao longo do mandato individual de cada deputado. E aumenta, como é necessário, a legitimidade e o peso específico dos deputados, melhorando a qualidade democrática do Parlamento e dos grupos parlamentares.

Além da proposta geral que levámos à Assembleia da República em 2019, apresentámos já, em 2021, um desenho dos 105 círculos uninominais que, dentro dos 15 círculos plurinominais e com o círculo nacional, constituem a estrutura da proposta. Curiosamente, esta corresponde a fazermos o caminho reformista semelhante, mas em sentido inverso, ao da Nova Zelândia.

A Nova Zelândia tinha o sistema eleitoral britânico, de Westminster, apenas com círculos uninominais de maioria simples. A percepção crescente dos defeitos deste sistema – baixa proporcionalidade política –, levou os neozelandeses a fazerem, em 1994, uma reforma que aos círculos uninominais acrescentou os plurinominais e adoptou um sistema misto de duplo voto, assegurando a proporcionalidade da representação com personalização. Funciona bem.

Nós teremos de fazer o inverso: acrescentar aos plurinominais os círculos uninominais, que asseguram a personalização, e um círculo nacional, que dá mais garantias à proporcionalidade e mais oportunidades à personalização.

Como se vê do quadro que publico, a aplicação do nosso projecto aos resultados de 2019 prova que, além da personalização das escolhas, a justiça proporcional da representação é melhor, diminuindo o “prémio” exagerado de lugares a mais dos partidos mais votados e melhorando a representação dos mais pequenos e médios, que, hoje, são fortemente fustigados.

Estamos a trabalhar sobre os resultados de 2022, com a certeza de se verificar nova evidência de melhoria geral da representação com a nossa proposta. Daremos notícias.

O Partido Socialista defendeu uma reforma deste tipo em 1998, então a partir do Governo, numa tentativa frustrada pela Assembleia. Na vida já do nosso Manifesto, defendeu-a expressamente nos seus Programas Eleitorais de 2015 e 2019: “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo.” É isto mesmo.

Espero que não se tenha esquecido. Compreendem-se as razões e circunstâncias por que não pôde avançar nas duas últimas legislaturas, dependente que estava do PCP e do BE. Mas, agora, com maioria absoluta, tem campo aberto para avançar. Não que faça a reforma sozinho – não pode, nem em caso algum deveria fazê-lo. Mas deve relançá-la e liderar o debate construtivo que a consolide e concretize. Seria muito bom para Portugal e para a democracia. Quem não quer poder escolher deputado e partido?

A mãe de todas as reformas


O sistema está capturado de cima para baixo, num patamar de tipo oligárquico, que tem capacidade para tudo impedir, por maiores que sejam a pressão de baixo, o interesse público, o clamor popular.


Desde 2014 que escrevo regularmente nestas páginas sob o lema “Por uma Democracia de Qualidade”, série que tenho de interromper hoje, por imperativos de reorganização. Tem sido a sequência do Manifesto por uma Democracia de Qualidade, subscrito por cerca de 40 homens e mulheres da vida pública portuguesa e apresentado na SEDES, em fim de Agosto desse ano. Focava-se em dois problemas, causas principais do declínio da nossa democracia – a captura do sistema eleitoral e o financiamento partidário –, propondo medidas. A reforma eleitoral era ressaltada como a mãe de todas as reformas, porque os autores do manifesto, com longa experiência cívica, constataram em anos consecutivos de intervenção cidadã que as reformas essenciais não são feitas em Portugal porque, mesmo quando obtêm largo consenso e aceitação na opinião pública, há sempre interesses poderosos que as conseguem fintar, entreter ou bloquear, nas curvas e contracurvas do sistema. Porquê? Porque o sistema está capturado de cima para baixo, num patamar de tipo oligárquico, que, por maiores que sejam a pressão de baixo, o interesse público, o clamor popular, a consistência impressiva dos argumentos, a atractividade das propostas novas, a evidência dos benefícios das reformas, tem capacidade para tudo impedir e parar, porque “o que está, está”.

Os estudos da reforma eleitoral, primeiro na APDQ, depois também na SEDES, que abraçou este projecto em 2017, conduziram-nos para uma proposta de sistema misto de representação proporcional personalizada. Isto é, um sistema que articula de modo complementar os círculos plurinominais (como temos hoje), com novos círculos de candidatura uninominais (dentro do território daqueles) e um círculo nacional de compensação, assim permitindo a escolha personalizada dos deputados sem que isso altere a proporcionalidade da representação partidária.

Não fizemos esta escolha do nada, assim como quem constrói castelos no ar. Não. Tirámo-la do óbvio e pela via mais recta possível: a Constituição. De facto, esta prevê, desde 1997, no artigo 149.º, a possibilidade de “existência de círculos plurinominais e uninominais”, definindo “a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional”; e acrescenta um “círculo nacional” (que já era possível desde 1989).

O facto de a Constituição o permitir desde 1997 e a reforma não ter sido feita num período de 25 anos – vinte e cinco anos! –, dá bem a ideia de como é poderosa a força obstrutiva instalada. Os partidos mais pequenos têm infelizmente contribuído para isso, por desconhecimento, falta de estudo e percepção errada da operação do sistema. Não o digo por presunção, mas por experiência própria: se não me tivesse envolvido no seu estudo, não teria percebido como ele é tão bom e tão adequado à resolução dos problemas do nosso sistema eleitoral – quebra da ligação entre eleitos e eleitores, baixo grau de escrutínio político, caciquismo fácil, fragilização dos deputados, poder quase absoluto dos directórios, fácil captura, muito alta abstenção. E o facto de o modelo mais próximo ser o alemão não ajuda, pois a língua alemã (pouco falada) dificulta a sua percepção imediata por observação directa das pessoas comuns.

É, de facto, um sistema muito bom, que não esmaga nada os pequenos e médios partidos – pelo contrário. Permite ao eleitor, pelo exercício livre do duplo voto (no partido e no deputado), escolher o seu deputado, sem afectar a proporcionalidade da representação partidária. Gera uma dinâmica virtuosa na formação das listas de candidatura, limitando o poder impositivo dos directórios e favorecendo a escolha de candidatos (tanto uninominais, como plurinominais) com prestígio público, créditos firmados e boa aceitação do eleitorado. Instala, como deve ser, uma dinâmica geral de escrutínio ao longo do mandato individual de cada deputado. E aumenta, como é necessário, a legitimidade e o peso específico dos deputados, melhorando a qualidade democrática do Parlamento e dos grupos parlamentares.

Além da proposta geral que levámos à Assembleia da República em 2019, apresentámos já, em 2021, um desenho dos 105 círculos uninominais que, dentro dos 15 círculos plurinominais e com o círculo nacional, constituem a estrutura da proposta. Curiosamente, esta corresponde a fazermos o caminho reformista semelhante, mas em sentido inverso, ao da Nova Zelândia.

A Nova Zelândia tinha o sistema eleitoral britânico, de Westminster, apenas com círculos uninominais de maioria simples. A percepção crescente dos defeitos deste sistema – baixa proporcionalidade política –, levou os neozelandeses a fazerem, em 1994, uma reforma que aos círculos uninominais acrescentou os plurinominais e adoptou um sistema misto de duplo voto, assegurando a proporcionalidade da representação com personalização. Funciona bem.

Nós teremos de fazer o inverso: acrescentar aos plurinominais os círculos uninominais, que asseguram a personalização, e um círculo nacional, que dá mais garantias à proporcionalidade e mais oportunidades à personalização.

Como se vê do quadro que publico, a aplicação do nosso projecto aos resultados de 2019 prova que, além da personalização das escolhas, a justiça proporcional da representação é melhor, diminuindo o “prémio” exagerado de lugares a mais dos partidos mais votados e melhorando a representação dos mais pequenos e médios, que, hoje, são fortemente fustigados.

Estamos a trabalhar sobre os resultados de 2022, com a certeza de se verificar nova evidência de melhoria geral da representação com a nossa proposta. Daremos notícias.

O Partido Socialista defendeu uma reforma deste tipo em 1998, então a partir do Governo, numa tentativa frustrada pela Assembleia. Na vida já do nosso Manifesto, defendeu-a expressamente nos seus Programas Eleitorais de 2015 e 2019: “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo.” É isto mesmo.

Espero que não se tenha esquecido. Compreendem-se as razões e circunstâncias por que não pôde avançar nas duas últimas legislaturas, dependente que estava do PCP e do BE. Mas, agora, com maioria absoluta, tem campo aberto para avançar. Não que faça a reforma sozinho – não pode, nem em caso algum deveria fazê-lo. Mas deve relançá-la e liderar o debate construtivo que a consolide e concretize. Seria muito bom para Portugal e para a democracia. Quem não quer poder escolher deputado e partido?