Guterres queixa-se do capitalismo realmente existente


Não é inocente nem despiciendo que Guterres inclua nas suas acusações, além dos governantes, os líderes empresariais. Grandes grupos económicos que escondem atrás de fachadas muito verdejantes a sua atuação (às vezes a sua própria existência) anti-climática.


Não há um único acontecimento importante no mundo que não tenha efeitos globais. As consequências de uma pandemia, de uma catástrofe natural, de uma guerra ou das opções erradas de um governo são hoje muito dificilmente mapeáveis – expandem-se à velocidade da fibra ótica. Os países podem tentar proteger-se desse contacto, ter regimes mais democráticos ou mais autoritários, economias mais abertas ou mais fechadas; podem até ter sucesso no seu isolamento, mas nada disso fará barreira às alterações climáticas.

É isso que a ONU tem tentado mostrar num grande estudo sobre as alterações climáticas, cujo último relatório foi publicado há poucos dias. Há uma certa ironia na expressão “o último”, porque as conclusões dos cientistas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas não podiam ser mais catastróficas: na última década bateram-se recordes de emissões de gases que provocam o efeito de estufa. De tal forma que a ONU corrige a previsão: se não houver uma mudança profunda, até ao final do século a temperatura pode aumentar 3,5º Celsius.

Dito assim, parece coisa pouca. Mas o que este estudo realmente nos diz é que caminhamos para uma existência insuportável. Se é complicado entendê-la em termos climáticos, devia ser fácil compreender os seus efeitos sociais e económicos: crises, refugiados e destruição. Virtualmente, o prolongamento infinito do que temos vivido nas últimas décadas.

De forma trágica, a crise do subprime, a COVID-19 e a invasão da Ucrânia obrigaram-nos a refletir sobre o controlo do sistema financeiro e de movimento de capitais, transportes e logística, saúde pública, patentes, mobilidade, inovação tecnológica, teletrabalho, soberania alimentar ou transição energética. Sublinho que cada uma dessas questões tem mais impacto nas alterações climáticas do que a maioria dos nossos gestos individuais do quotidiano, por mais sustentáveis que sejam. No entanto, as mudanças nessas políticas tendem a ser lentas, desgarradas ou simplesmente a não passar de promessas motivadas por picos de atenção pública.

Para o bom e para o mal, as alterações climáticas têm sido um efeito colateral do capitalismo. As boas escolhas fazem-se por necessidade de criar novos mercados ou pelo esgotamento (político, económico ou natural) das anteriores soluções. As más, porque há sempre alguma coisa mais urgente ou, com maior frequência, porque o capital não tem interesse nas boas escolhas.

E assim chegámos a "uma litania de promessas climáticas quebradas, um arquivo vergonhoso que cataloga os compromissos vazios". A frase é de António Guterres, citada por uma notícia do Expresso que não podia ser mais clara: “Guterres condena governos e empresários mentirosos que encaminham mundo para ‘catástrofe’”, e a crescenta as palavras exatas do Secretário Geral da ONU: "Alguns governos e líderes empresariais dizem uma coisa e fazem outra. Estão a mentir e a deitar gasolina no fogo".

Não é inocente nem despiciendo que Guterres inclua nas suas acusações, além dos governantes, os líderes empresariais. Grandes grupos económicos que escondem atrás de fachadas muito verdejantes a sua atuação (às vezes a sua própria existência) anti-climática. Não há dúvida que poderosas empresas energéticas, agroalimentares, de distribuição ou da indústria extrativa não têm qualquer interesse em preservar a Amazónia, quanto mais as àreas protegidas do Tejo ameaçadas pela construção do novo aeroporto. Isso não é estranho, o que é inaceitável é que os governos não se lhes oponham para  proteger os interesses privados que põem em causa a sustentabilidade da vida no planeta.

Não irei fazer uma lista ilustrativa das palavras sensatas de António Guterres. Mas, se a fizesse, servia para tornar ainda mais gráfica a conclusão: entre uma crise financeira, uma pandemia e uma guerra aprendemos que em, áreas estratégias, o mercado é supletivo da intervenção pública. Isto não é um desejo (ainda que seja também uma convicção), é uma constatação.

Por todas as razões, às quais se acrescenta evitar a destruição do planeta, precisamos de discutir o financiamento do investimento público e a propriedade pública dos bens estratégicos. Esse é também o caminho para proteger o emprego e o salário.

Guterres queixa-se do capitalismo realmente existente


Não é inocente nem despiciendo que Guterres inclua nas suas acusações, além dos governantes, os líderes empresariais. Grandes grupos económicos que escondem atrás de fachadas muito verdejantes a sua atuação (às vezes a sua própria existência) anti-climática.


Não há um único acontecimento importante no mundo que não tenha efeitos globais. As consequências de uma pandemia, de uma catástrofe natural, de uma guerra ou das opções erradas de um governo são hoje muito dificilmente mapeáveis – expandem-se à velocidade da fibra ótica. Os países podem tentar proteger-se desse contacto, ter regimes mais democráticos ou mais autoritários, economias mais abertas ou mais fechadas; podem até ter sucesso no seu isolamento, mas nada disso fará barreira às alterações climáticas.

É isso que a ONU tem tentado mostrar num grande estudo sobre as alterações climáticas, cujo último relatório foi publicado há poucos dias. Há uma certa ironia na expressão “o último”, porque as conclusões dos cientistas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas não podiam ser mais catastróficas: na última década bateram-se recordes de emissões de gases que provocam o efeito de estufa. De tal forma que a ONU corrige a previsão: se não houver uma mudança profunda, até ao final do século a temperatura pode aumentar 3,5º Celsius.

Dito assim, parece coisa pouca. Mas o que este estudo realmente nos diz é que caminhamos para uma existência insuportável. Se é complicado entendê-la em termos climáticos, devia ser fácil compreender os seus efeitos sociais e económicos: crises, refugiados e destruição. Virtualmente, o prolongamento infinito do que temos vivido nas últimas décadas.

De forma trágica, a crise do subprime, a COVID-19 e a invasão da Ucrânia obrigaram-nos a refletir sobre o controlo do sistema financeiro e de movimento de capitais, transportes e logística, saúde pública, patentes, mobilidade, inovação tecnológica, teletrabalho, soberania alimentar ou transição energética. Sublinho que cada uma dessas questões tem mais impacto nas alterações climáticas do que a maioria dos nossos gestos individuais do quotidiano, por mais sustentáveis que sejam. No entanto, as mudanças nessas políticas tendem a ser lentas, desgarradas ou simplesmente a não passar de promessas motivadas por picos de atenção pública.

Para o bom e para o mal, as alterações climáticas têm sido um efeito colateral do capitalismo. As boas escolhas fazem-se por necessidade de criar novos mercados ou pelo esgotamento (político, económico ou natural) das anteriores soluções. As más, porque há sempre alguma coisa mais urgente ou, com maior frequência, porque o capital não tem interesse nas boas escolhas.

E assim chegámos a "uma litania de promessas climáticas quebradas, um arquivo vergonhoso que cataloga os compromissos vazios". A frase é de António Guterres, citada por uma notícia do Expresso que não podia ser mais clara: “Guterres condena governos e empresários mentirosos que encaminham mundo para ‘catástrofe’”, e a crescenta as palavras exatas do Secretário Geral da ONU: "Alguns governos e líderes empresariais dizem uma coisa e fazem outra. Estão a mentir e a deitar gasolina no fogo".

Não é inocente nem despiciendo que Guterres inclua nas suas acusações, além dos governantes, os líderes empresariais. Grandes grupos económicos que escondem atrás de fachadas muito verdejantes a sua atuação (às vezes a sua própria existência) anti-climática. Não há dúvida que poderosas empresas energéticas, agroalimentares, de distribuição ou da indústria extrativa não têm qualquer interesse em preservar a Amazónia, quanto mais as àreas protegidas do Tejo ameaçadas pela construção do novo aeroporto. Isso não é estranho, o que é inaceitável é que os governos não se lhes oponham para  proteger os interesses privados que põem em causa a sustentabilidade da vida no planeta.

Não irei fazer uma lista ilustrativa das palavras sensatas de António Guterres. Mas, se a fizesse, servia para tornar ainda mais gráfica a conclusão: entre uma crise financeira, uma pandemia e uma guerra aprendemos que em, áreas estratégias, o mercado é supletivo da intervenção pública. Isto não é um desejo (ainda que seja também uma convicção), é uma constatação.

Por todas as razões, às quais se acrescenta evitar a destruição do planeta, precisamos de discutir o financiamento do investimento público e a propriedade pública dos bens estratégicos. Esse é também o caminho para proteger o emprego e o salário.