Mário Dorminsky. “O Tarantino só não veio ao Fantasporto por causa da Guerra no Golfo”

Mário Dorminsky. “O Tarantino só não veio ao Fantasporto por causa da Guerra no Golfo”


Em entrevista ao i, o organizador do Fantasporto, Mário Dorminsky, recorda como foi descobrir algumas “pérolas” do cinema moderno. 


Com o Fantasporto prestes a começar, o i  esteve à conversa com um dos fundadores e diretores do festival de cinema, Mário Dorminsky, para falar sobre como foi superar a pandemia, o porquê de retirar um filme russo da programação do evento e recordar alguns momentos marcantes do festival.

 

Depois de uma edição atribulada por causa da pandemia, como se sente por agora conseguir realizar o Fantasporto em condições mais familiares?

Não diria que foi atribulada. Foi complicado realizar o festival, tendo em conta as notícias que iam saindo sobre a pandemia. Fomo-nos apercebendo que iria abrir uma brecha durante a pandemia que nos iria permitir fazer alguns espetáculos, por isso, combinámos fazer o evento durante essa altura. Decidimos marcar o evento no Hard Club, um dos edifícios mais marcantes do Porto do início deste século, mesmo tendo noção da grande dificuldade que seria montar uma sala de cinema de raiz, uma vez que esta sala de espetáculos não está habituada a receber sessões de cinema, mas também adotar as medidas de segurança típicas da pandemia, como ter garrafas com gel para desinfetar as mãos, pessoas a medir a temperatura corporal das pessoas e certificar que todos estavam a usar máscaras. 

Tendo em conta o espaço do Hard Club e as medidas de restrição, foi uma edição com uma adesão menor comparado com edições anteriores?

O festival teve que acontecer em dimensões menores do que estamos habituados. Em vez das quatro ou cinco sessões que, normalmente, fazemos por dia, desta vez, só conseguimos fazer três porque tínhamos que fazer intervalos de uma hora, mas mesmo assim fizemos os dez dias do festival. Uma grande diferença foi que não contámos com a presença dos júris durante o evento. Eles receberam os links e viram os filmes em casa e só depois reuniram através de zoom, para debater e decidir quais seriam os filmes premiados nessa edição, por isso, foi a primeira vez que soubemos o resultado dos prémios do festival antes de ele sequer começar. 

Isso não estragou o efeito-surpresa do evento?

Pelo contrário, até ajudou na promoção do Fantasporto, que já tinha sido muito limitada e que se baseou quase às redes sociais. Chegámos a enviar notas para os meios de comunicação, mas ninguém acreditava que estava alguma coisa a decorrer. Acabámos por ter alguma repercussão internacional porque éramos o único festival que estava a decorrer em termos presenciais durante a pandemia. Tivemos sorte porque durante o festival o governo permitiu que decorressem espetáculos durante sábado e domingo e ainda conseguimos fazer algumas sessões extra, que serviu de empurrão para o festival. Em média, tivemos cerca de 150 a 200 pessoas por sessão, o que, nessa fase, era muito bom.

Houve alguma consequência para o festival por causa da pandemia?

Tivemos que reduzir a equipa para seis pessoas, mais os trabalhadores no espaço que nos ajudavam com as partes mais técnicas. 

Depois de uma análise ao programa da presente edição do festival, é notória a adoção de diversos filmes de vários países asiáticos. O cinema oriental tem ganho muita presença nos meios mais comerciais, é por isso que também é uma grande aposta do Fantasporto?

Uma das coisas que reparámos nos últimos anos é que temos registado vencedores de países como o Japão, como aconteceu no ano passado com Suicide Forest Village, a China ou a Coreia do Sul. Não é que não tivéssemos fortes relações com estes países, mas o que acontece agora é que o festival tem um impacto muito grande no Oriente, e foi daí que nos chegaram mais de 150 longas-metragens para seleção, este ano. Isto sem contar com todas as outras que recebemos, porque este ano tivemos mais de 300 filmes para avaliar, sem contar com as curtas-metragens, que só não chegaram ainda mais porque estavam limitadas à área do fantástico. 

É normal o festival receber esta quantidade elevada de submissões de filmes?

Este foi um ano sem precedentes. Mas, dez anos depois do início do festival, tivemos que remodelar algumas coisas, nomeadamente, em relação ao cinema ligado ao fantástico, com uma grande variedade de autores, desde o Quentin Tarantino, ao Lars Von Trier, até a realizadores asiáticos. Existia uma grande diversidade, de grande qualidade e de nomes bastante conhecidos, aliás, os prémios dessa altura são entregues a essas pessoas, como ao Seven do David Fincher. Toda esta seleção deu um empurrão ao festival. Eventualmente, tivemos que alargar o âmbito a filmes que não entravam tanto no cinema comercial e acabámos por descobrir várias pérolas, como o cinema da Nova Zelândia ou coreano. Foi algo que se acabou por tornar rentável para nós porque as pessoas não teriam outra oportunidade de os ver a não ser que aproveitassem estas sessões especiais.

Também foi importante para o festival demarcar a diferença entre o cinema de fantasia e o cinema de terror?

Isso era algo que acontecia desde a origem do Fantasporto e que ainda continua a acontecer. É normal encontrar no jornal uma página inteira com títulos do género “o Fantasporto traz o horror ao Porto há mais de quarenta anos”. Mas nós nunca fomos um festival de filmes de terror. Foi sempre muito virado para o lado da fantasia e do imaginário, mais inspirado no Steven Spielberg ou no Harry Potter [risos]. Daí termos apostado em realizadores como o Almodóvar ou o Lars Von Trier, que não fazem filmes de terror, mas que entram na nossa seleção com muita facilidade, apesar de também contarmos com alguns filmes de terror. Isso é uma situação óbvia. Até devo confessar que as pessoas que fazem a seleção dos filmes nem sequer são fãs de filmes de terror [risos]. Por isso, é que nessa altura quisemos mudar a imagem do festival, para sermos visto de uma forma mais cinéfila e, criámos a semana dos realizadores, pedindo inclusive autorização ao Manoel de Oliveira para utilizar o seu nome para o prémio desta semana, o que confere uma maior importância aos cineastas e ao seu trabalho.

Estava a falar sobre a importância de descobrir “pérolas”, no cinema. Sente que isso agora é mais fácil ou difícil? Por exemplo, o festival é conhecido por ter “descoberto” realizadores como o Quentin Tarantino ou o David Lynch, será que agora é possível encontrar esse tipo de cineastas? 

Ainda esta semana descobrimos que a Jane Campion é uma Oscarizada descoberta por nós, porque exibimos um dos seus primeiros filmes, An Angel at My Table. Mas, por exemplo, falando dos cineastas que nomeou, na altura, o Tarantino, que estava a apresentar o Reservoir Dogs, só não veio ao Fantasporto por causa da Guerra no Golfo. Era suposto ele vir com o filme, que ainda vinha naquelas latas grandes dos 35 milímetros, mas, com essa guerra, os filmes perdiam-se muito na Europa. Foi uma confusão enorme conseguir fazer o festival e o Reservoir Dogs só não ganhou essa edição porque o filme chegou à última hora e foi exibido no último dia do festival. Tivemos que pesquisar nas alfândegas de toda a Europa, como hackers, para tentar perceber onde é que o filme estava. Por acaso tivemos uma pessoa que nos ajudou e conseguimos exibir esse e todos os outros filmes. Não foi nada fácil, mas isso mostra o quão estamos envolvidos no festival e o gozo que nos continua a dar realizá-lo todos os anos.

Uma importante mensagem que o festival quis passar esta edição está ligada à Guerra da Ucrânia. Decidiram retirar um filme russo da programação. Qual foi a razão por trás desta decisão?

Foi uma posição política que decidimos assumir. O filme, Vladivostok, é produzido e o argumento é do presidente de um dos maiores e mais antigos estúdios de cinema da Europa, a Mosfilm, responsável por produzir filmes de Serguei Eisenstein. O que acontece é que Karen Shakhnazarov, que já veio ao Fantas uma quatro vezes, já lhe foi dedicada uma retrospetiva e já ganhou diversos prémios, é presidente deste estúdio, que é a entidade que coordena a nível estatal o audiovisual russo. Ao negar a participação deste filme vamos chocar com uma situação que consideramos importante e que sentimos que devemos marcar uma posição. É absolutamente absurdo e criminoso o que a Rússia está a fazer à Ucrânia, por isso, tomámos a decisão de retirar o filme. Apesar de estarmos entre a espada e a parede e isso poder prejudicar as nossas relações futuras, tínhamos que tomar esta posição. 

Faria isso com qualquer tipo de filme de origem russa?

Não, se fosse um filme independente não teria sido retirado do festival. A cultura russa é uma das mais fantásticas do mundo, não é nada de se atirar fora. Acho horrível o que se fez em vários cinemas, terminando ciclos de cinema independente, sem sequer mencionar o que aconteceu no futebol. A nossa posição foi difícil de tomar, mas foi honesta. Entrámos em contacto com Shakhnazarov, um amigo pessoal do Putin, e explicámos que não iria ser possível passar o filme no festival. A Mosfilm não é só responsável por produzir filmes, eles também são responsáveis pela informação que é transmitida na televisão russa. Nem todos apoiaram esta nossa posição, mas era algo que tínhamos de fazer. 

E acaba por escolher como filme para acabar o Fantasporto um filme ucraniano – Everything, nothing and something else. Foi uma decisão propositada?

Não retirámos o filme russo para substituir por um ucraniano, nada disso. Esse filme surgiu numa proposta de última hora e decidimos que iríamos passar esse filme, do qual ficámos todos fãs, para encerrar o festival. Convidámos a embaixadora da Ucrânia, apesar de ainda não termos recebido confirmação da sua presença. Acabámos também por comprar o filme, foi a nossa forma de apoiar a causa ucraniana.

Um dos grandes destaques do Fantasporto costumam ser os seus convidados, pessoas icónicas da indústria do cinema, quem serão os convidados este ano do festival?

Este ano não devo ter nenhum convidado que seja conhecido do grande público, uma vedeta. Há um realizador, Charles Dorfman, que vem apresentar o filme Barbarians, que este ano esteve envolvido como produtor no filme The Lost Daughter protagonizado pela Olivia Colman e que esteve nomeado para três Óscares, mas não é propriamente uma grande estrela. Não temos ninguém de renome, nem capacidade financeira para poder cumprir os seus pedidos. Antigamente, muitos deles pediam-nos algum “pocket money” para poderem “passear” pelo Porto, o que nos pedem muitas vezes agora é bilhetes de avião de primeira classe para vir até ao festival, que são caríssimos, fica nos cinco mil euros. Se houvesse um investimento do Instituto de Turismo de Portugal, podia-se fazer isso e muito mais, mas não existindo é complicado.

Estava a falar dos pedidos dessas estrelas, houve assim algum pedido mais insólito que lhe tenham feito?

Algo que agora tenho alguma pena foi um pedido feito pelo Peter Bogdanovic [realizador que morreu em janeiro deste ano] que queria vir com a família toda para o festival, a contar também com a senhora que tomava conta dos quatro filhos. Era complicado, porque ele nem sequer vinha apresentar nenhum filme, era apenas um convidado que vinha ao Porto passar férias. É algo que, logicamente, evitamos. Mas há coisas malucas de todo, como uma equipa de um filme chileno que estiveram a fazer voodoo no quarto e acabaram por queimar um tapete. Estas histórias malucas do Fantas davam para encher um livro de centenas de páginas à vontade.

E entre todos esses convidados que já teve o prazer de receber, quais foram aqueles que o mais surpreenderam pela positiva?

Um convidado que me vem sempre à memória, também por ter sido dos mais antigos, é o realizador francês Luc Besson [responsável por filmes como León, O Profissional, The Fifth Element ou Taken], que esteve no festival em 1984 para apresentar o seu primeiro filme, The Last Battle. A sala, no Teatro Carlos Alberto, estava completamente lotada e ele queria fazer a apresentação em cima do palco. Só que havia um grande problema: nessa altura, em toda a Europa todas as salas tinham o sistema de som Dolby Stereo, mas em Portugal nenhuma tinha essa tecnologia. Ainda por cima, como era um filme sem diálogo, o som era muito importante. O que é que eu fiz? Insisti com o Besson, que queria muito ficar na sala a ver o filme, atrapalhando-o no início do filme, junto a uma das portas de saída, para que fôssemos beber um copo num bar lá ao lado. E avisei uma das funcionárias para me avisar quando estivesse a passar os genéricos finais para voltarmos. Quando regressámos o filme já tinha acabado e estava tudo de pé a bater palmas.

Numa das fotografias que enviou ao jornal i antes da entrevista podia ver-se o realizador do Trainspotting, o Danny Boyle.

Ele esteve umas três vezes no festival, até chegámos a exibir o seu primeiro filme, o Shallow Grave (1994), foi também uma das nossas grandes descobertas. Mais tarde, quando veio apresentar o 127 Horas (2010), com o James Franco, ele tinha uns press junkets para fazer e inúmeras entrevistas para dar a inúmeros jornalistas de todo o mundo, mas tem piada porque ele chegou, no dia de abertura do Fantasporto, ele chega de carro, abre a porta, dirige-se a mim e diz que quer é ir passear e não falar com jornalistas. Tivemos que mudar os nossos planos todos e fazer um bloco para televisão, outro para rádio e outro para a imprensa escrita porque ele não estava para aturar jornalistas [risos].

Também partilhou uma fotografia do ator Ben Kingsley. Como foi conhecer este grande ator?

Ele também tem uma história muito engraçada. Ele queria muito ouvir fado e nós tivemos que explicar que isso não era algo que fosse propriamente do Porto, era mais de Lisboa [risos]. Mas havia uma, que era a Casa da Mariquinhas, e conseguimos arranjar maneira de ir. Ele ficou muito fã e ainda comeu uma lagosta, mas achou muito estranho a toalha estar cheia de buracos por causa dos cigarros. Também recordo com grande apreço ter recebido o Danny Elfman, que fez a música de imensos filmes do Tim Burton, mas também dos Simpsons, ou o Max von Sydow.

E recorda-se de algum episódio que o tenha deixado mais amargurado?

Já que estávamos a falar dos Simpsons, um filme que esteve quase para me parar nas mãos foi o filme de South Park, mas como não tinha ficado nada fã da animação acabei por considerar aquilo uma grande estupidez. Perdi aí um dos maiores possíveis negócios que podia ter tido na vida. Também me estou a recordar de um episódio em que recebemos o realizador John Gilling [responsável por diversos filmes de terror do famoso estúdio Hammer Film Productions] no Hotel Infante Sagres, que na altura era um dos mais famosos do Porto. Mas ele não gostou e foi-se embora, não compareceu no festival.

Estamos a ter esta conversa na mesma semana que ocorreu a agressão do Will Smith ao Chris Rock. Se o mesmo acontecesse no Porto como é que reagiria?

O que é que podíamos fazer? Ou chamávamos a polícia para parar a pancada ou eles que se entendessem. O que é que podíamos fazer? Nada. Até porque dá para perceber que o Smith sentiu que foi um ataque de mau gosto à mulher e teve uma atitude idiota como ele próprio admitiu. Todos sabem que naquele evento com apresentadores que se metem com os convidados ele podia ter tido um pouco mais de calma e no final dava-lhe uma palavrinha, porque eles conhecem-se e já trabalharam juntos. Mas, na minha opinião, por muito que as pessoas tentem desculpar, é uma atitude que é indesculpável.