Terra da fraternidade


Quando lhes foi perguntada “qual a maior necessidade” em Portugal, a esmagadora maioria respondeu: “emprego”. Alojamento e educação.


A ambição da normalidade passa-nos despercebida na voracidade dos nossos dias. Mas é inevitável pensar nela quando entre um povo e a sua legítima ambição de viver em paz se interpôs uma máquina de guerra com mais de 200 mil homens, mísseis hipersónicos, colunas de blindados de dezenas de quilómetros, armas letais de toda a espécie e um céu que pinga assassina artilharia sobre escolas, maternidades, hospitais e bairros residenciais.

A mais de 4000 km de distância das sirenes que anunciam crimes por julgar por quem de direito, sem fim à vista para a tragédia que se desenrola à frente dos nossos olhos, há famílias ucranianas que entre nós lutam para reconquistar o mínimo de normalidade nas suas vidas. Não deixa de ser comovente observar o seu esforço para levar a vida para a frente, mesmo com a maior das feridas abertas. Seja a contemplar o mar na Baia de Cascais ou no Guincho, seja a conhecer melhor a terra que os acolhe visitando os nossos museus, seja ainda na frequência das nossas escolas ou na procura de um emprego que lhes permita uma autonomia tão rápida quanto possível. 

A Câmara de Cascais acolheu até ao momento mais de quatro centenas de refugiados ucranianos. Ou melhor, de convidados ucranianos, num total de mais de um milhar que chegou ao nosso concelho. Com segurança e abrigo garantidos entre nós, o que estas pessoas querem não é proteção, tutela ou paternalismos. Querem a liberdade e independência subtraídas na sua pátria por um exército invasor. 

Como os leitores do i que acompanham esta coluna sabem, em Cascais preparámos uma operação de auxilio à Ucrânia em dois níveis de atuação. Por um lado, o plano humanitário. Assentes nos generosos donativos de milhares de cidadãos e de empresas, conseguimos enviar mais de 150 toneladas de alimentos, produtos de higiene, roupa e medicamentos para algumas das cidades mártires que vemos nas notícias e cujos nomes tristemente sabemos de cor. Como foi público, e ainda no plano humanitário, montámos uma operação de resgate na Roménia que trouxe até ao nosso país 229 pessoas em fuga de vários pontos da Europa. Esta noite mais 205 pessoas serão trazidas por várias iniciativas da sociedade civil. Por outro lado, trabalhámos muito no plano do acolhimento. Para além de um grande Centro de Acolhimento de Emergência, por onde idealmente passam todos os cidadãos deslocados que chegam a Cascais naquilo que se pretende ser o apoio de primeira linha, a câmara tem ainda a funcionar três Centros Residenciais. Esta é a segunda linha de apoio que durará até que os nossos convidados encontrem soluções de habitação junto das famílias de acolhimento de Cascais – um pilar decisivo para o sucesso da nossa operação de suporte à Ucrânia. De entre as variadíssimas medidas que implementámos, destaco a criação de um supermercado social no nosso Centro Logístico, onde qualquer cidadão deslocado pode levantar bens de primeira necessidade, a distribuições de cartões telefónicos para permitir comunicações a mais baixo custo da comunidade entre si e com o país de origem e a distribuição por todos do cartão Viver Cascais, que dá acesso a mobilidade gratuita em todo o concelho.

A acompanhar a implementação destas políticas de integração, um esforço exaustivo das nossas equipas tem permitido delinear respostas de saúde, de educação e de apoio social, ao mesmo tempo que nos permite traçar um perfil das necessidades e expectativas da comunidade que acolhemos. Todo este apoio tem sido dado sem reduzir qualquer acção de apoio dado aos cidadãos que já cá residiam. Somos um dos concelhos que mais presta apoio social aos seus através de uma diversificada e abrangente política social.

Assim, e com alguns dias entre nós, começamos todos a conhecer-nos melhor. Como tem sido claro nas notícias que nos entram casa dentro, os grupos de deslocados são sobretudo constituídos por mulheres e crianças. Os dois grandes grupos etários vão dos 3 aos 12 anos e dos 30 aos 50 anos. Com mais de 65 anos, estão entre nós apenas onze pessoas. Sem vontade de reconstruir a vida noutro país, a população mais idosa cria raízes que nem a guerra corta. Tende, assim, a ficar para defender o que é seu, a obra de uma vida, e apoiar o esforço de guerra dos que estão na linha da frente.    

Muitos dos que vieram, 47%, têm algum tipo de suporte familiar em Portugal e quase todos, 95%, querem aprender a nossa língua rapidamente. Um número que confirma a ideia da comunidade ucraniana se integrar bem entre nós. Com uma percentagem elevada de pessoas com qualificações superiores (40,6%), a principal preocupação destas famílias é a autonomia. Quando lhes foi perguntada “qual a maior necessidade” em Portugal, a esmagadora maioria respondeu: “emprego”. Alojamento e educação (para as muitas crianças que compõem os diversos grupos) completam o pódio das necessidades. 

Isto mostra a importância de poderes públicos e privados trabalharem em conjunto para dar aos nossos convidados ucranianos uma justa oportunidade para recomeçarem a sua vida e, quem sabe, um dia – esperamos mais cedo do que tarde – reunirem as suas famílias num projeto de felicidade nas margens do Atlântico. 
Independentemente de onde venham ou para onde quer que vão os deslocados ucranianos, aqui queremos que se sintam em casa. Porque em Cascais vemos em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade. Como um dia os nossos convidados saberão, esta Vila é também a terra da fraternidade. 
 
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira

Terra da fraternidade


Quando lhes foi perguntada “qual a maior necessidade” em Portugal, a esmagadora maioria respondeu: “emprego”. Alojamento e educação.


A ambição da normalidade passa-nos despercebida na voracidade dos nossos dias. Mas é inevitável pensar nela quando entre um povo e a sua legítima ambição de viver em paz se interpôs uma máquina de guerra com mais de 200 mil homens, mísseis hipersónicos, colunas de blindados de dezenas de quilómetros, armas letais de toda a espécie e um céu que pinga assassina artilharia sobre escolas, maternidades, hospitais e bairros residenciais.

A mais de 4000 km de distância das sirenes que anunciam crimes por julgar por quem de direito, sem fim à vista para a tragédia que se desenrola à frente dos nossos olhos, há famílias ucranianas que entre nós lutam para reconquistar o mínimo de normalidade nas suas vidas. Não deixa de ser comovente observar o seu esforço para levar a vida para a frente, mesmo com a maior das feridas abertas. Seja a contemplar o mar na Baia de Cascais ou no Guincho, seja a conhecer melhor a terra que os acolhe visitando os nossos museus, seja ainda na frequência das nossas escolas ou na procura de um emprego que lhes permita uma autonomia tão rápida quanto possível. 

A Câmara de Cascais acolheu até ao momento mais de quatro centenas de refugiados ucranianos. Ou melhor, de convidados ucranianos, num total de mais de um milhar que chegou ao nosso concelho. Com segurança e abrigo garantidos entre nós, o que estas pessoas querem não é proteção, tutela ou paternalismos. Querem a liberdade e independência subtraídas na sua pátria por um exército invasor. 

Como os leitores do i que acompanham esta coluna sabem, em Cascais preparámos uma operação de auxilio à Ucrânia em dois níveis de atuação. Por um lado, o plano humanitário. Assentes nos generosos donativos de milhares de cidadãos e de empresas, conseguimos enviar mais de 150 toneladas de alimentos, produtos de higiene, roupa e medicamentos para algumas das cidades mártires que vemos nas notícias e cujos nomes tristemente sabemos de cor. Como foi público, e ainda no plano humanitário, montámos uma operação de resgate na Roménia que trouxe até ao nosso país 229 pessoas em fuga de vários pontos da Europa. Esta noite mais 205 pessoas serão trazidas por várias iniciativas da sociedade civil. Por outro lado, trabalhámos muito no plano do acolhimento. Para além de um grande Centro de Acolhimento de Emergência, por onde idealmente passam todos os cidadãos deslocados que chegam a Cascais naquilo que se pretende ser o apoio de primeira linha, a câmara tem ainda a funcionar três Centros Residenciais. Esta é a segunda linha de apoio que durará até que os nossos convidados encontrem soluções de habitação junto das famílias de acolhimento de Cascais – um pilar decisivo para o sucesso da nossa operação de suporte à Ucrânia. De entre as variadíssimas medidas que implementámos, destaco a criação de um supermercado social no nosso Centro Logístico, onde qualquer cidadão deslocado pode levantar bens de primeira necessidade, a distribuições de cartões telefónicos para permitir comunicações a mais baixo custo da comunidade entre si e com o país de origem e a distribuição por todos do cartão Viver Cascais, que dá acesso a mobilidade gratuita em todo o concelho.

A acompanhar a implementação destas políticas de integração, um esforço exaustivo das nossas equipas tem permitido delinear respostas de saúde, de educação e de apoio social, ao mesmo tempo que nos permite traçar um perfil das necessidades e expectativas da comunidade que acolhemos. Todo este apoio tem sido dado sem reduzir qualquer acção de apoio dado aos cidadãos que já cá residiam. Somos um dos concelhos que mais presta apoio social aos seus através de uma diversificada e abrangente política social.

Assim, e com alguns dias entre nós, começamos todos a conhecer-nos melhor. Como tem sido claro nas notícias que nos entram casa dentro, os grupos de deslocados são sobretudo constituídos por mulheres e crianças. Os dois grandes grupos etários vão dos 3 aos 12 anos e dos 30 aos 50 anos. Com mais de 65 anos, estão entre nós apenas onze pessoas. Sem vontade de reconstruir a vida noutro país, a população mais idosa cria raízes que nem a guerra corta. Tende, assim, a ficar para defender o que é seu, a obra de uma vida, e apoiar o esforço de guerra dos que estão na linha da frente.    

Muitos dos que vieram, 47%, têm algum tipo de suporte familiar em Portugal e quase todos, 95%, querem aprender a nossa língua rapidamente. Um número que confirma a ideia da comunidade ucraniana se integrar bem entre nós. Com uma percentagem elevada de pessoas com qualificações superiores (40,6%), a principal preocupação destas famílias é a autonomia. Quando lhes foi perguntada “qual a maior necessidade” em Portugal, a esmagadora maioria respondeu: “emprego”. Alojamento e educação (para as muitas crianças que compõem os diversos grupos) completam o pódio das necessidades. 

Isto mostra a importância de poderes públicos e privados trabalharem em conjunto para dar aos nossos convidados ucranianos uma justa oportunidade para recomeçarem a sua vida e, quem sabe, um dia – esperamos mais cedo do que tarde – reunirem as suas famílias num projeto de felicidade nas margens do Atlântico. 
Independentemente de onde venham ou para onde quer que vão os deslocados ucranianos, aqui queremos que se sintam em casa. Porque em Cascais vemos em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade. Como um dia os nossos convidados saberão, esta Vila é também a terra da fraternidade. 
 
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira