“Se por acaso morrer do coração, é sinal que amei demais. Mas enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”, afirmava Rita Lee antes de ter descoberto o cancro no pulmão que a tem afastado dos holofotes mas, nem assim, do coração dos fãs que a acompanham desde que a artista se tornou num símbolo de resiliência e quebra de padrões patriarcais e inspiração para mulheres em todo o mundo. Há personalidades que nos tocam de tal maneira que sentimos a necessidade de as acompanhar tal como se fossem amigos chegados e é precisamente isso que tem acontecido com muitos que têm feito de tudo para estarem ao corrente do processo que “a rainha do rock brasileiro” tem seguido desde que recebeu a triste notícia de que estava gravemente doente.
Em maio de 2021, a cantora – nessa altura com 73 anos – foi diagnosticada com um tumor primário no pulmão esquerdo após realizar alguns exames de rotina. Desde então, tem-se submetido a sessões de quimioterapia e radioterapia e pouco tem aparecido nas redes sociais. Por isso, quando acontece, os seus admiradores “agradecem”, tal como ocorreu no sábado passado. A cantora, atualmente com 74 anos, partilhou uma fotografia ao lado do marido, com quem se encontra casada há mais de 40 anos, o músico Roberto de Carvalho. A partilha foi feita pelo próprio na sua rede social Instagram e de seguida partilhada por Lee. Na legenda, o também compositor escreveu apenas: “Eu e ela”. Esta foi a segunda vez que a artista apareceu completamente careca, sem usar perucas. A primeira foi em fevereiro deste ano.
A publicação depressa emocionou os fãs. “Amores! Esta fotografia salvou meu dia”, comentou um. “Te amo, Rita! Você embalou minha vida todinha com suas músicas”, declarou outra internauta. “Como é bom ver vocês! Rita amada, receba muita energia boa”, escreveu uma terceira pessoa. “Segundo pesquisas, o Brasil sempre volta a sorrir quando vocês dois postam fotos”, brincou outra seguidora.
No dia 31 de dezembro do ano passado, no dia do aniversário da cantora, Roberto desabafou também no Instagram sobre aquilo que os dois haviam enfrentado nos últimos meses: “Que ano difícil meu amor! Quanta provação! Meu coração em muitos momentos se despedaçou, para logo em seguida se deslumbrar diante de todas as suas demonstrações de coragem, força de vontade e resistência”, escreveu. “Que depois de todo o tormento estejamos diante de um tempo de paz, harmonia, e muita saúde. E tudo de melhor que eu puder te desejar, você merece milhões de vezes mais. Te amo, te admiro, te adoro, estamos juntos, ontem, agora e sempre”, continuou Roberto. Na data, na sua conta oficial, a cantora também fez questão de comemorar o aniversário e publicou uma fotografia sentada numa cadeira com o seu nome, de óculos pontiagudos e a peruca cinzenta que a tem acompanhado desde o princípio. “Feliz aniversário, mãe”, comentou o filho do casal, João Lee.
Segundo estimativas de 2020 do Instituto Nacional do Cancro (INCA) – órgão auxiliar do Ministério da Saúde no desenvolvimento e coordenação das ações integradas para a prevenção e o controlo do cancro no Brasil – o do pulmão é o terceiro mais comum em homens (depois da próstata, cólon e reto) e o quarto em mulheres (depois da mama, cólon e reto e colo do útero). O INCA afirma que o tipo de tumor de que sofre Lee é o primeiro em todo o mundo desde 1985, tanto em incidência quanto em mortalidade.
Na primeira entrevista que deu depois de receber o diagnóstico a cantora afirmou à Globo que mantinha “a energia e o bom humor”, mesmo durante o tratamento de quimioterapia: “Fiz um pacto com o universo, com o Criador, com os ‘seres de luz’, de que ia segurar a barra de ter um cancro no pulmão. Fiz radioterapia e agora faço quimioterapia. Os exames estão ótimos, mas fácil não é!”, revelou na época.
Uma carreira precoce Foi no dia 31 de dezembro do ano de 1947, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, que nasceu Rita Lee Jones, uma das mais importantes cantoras e compositoras da história da música brasileira, considerada a maior “representante do rock feminino do país”. Filha de um dentista americano, Charles Fenley Jones e de uma pianista brasileira, Romilda Pádua Jones, ao que parece, Lee nasceu com o “dom” para a música. Em criança estudou piano e, logo na adolescência começou a compor as suas próprias canções. A artista pretendia ser atriz de cinema, veterinária ou até mesmo seguir os passos do pai na carreira odontológica. Contudo, a vida “trocou-lhe as voltas”. Aos 16 anos, em 1963, Rita já integrava o trio feminino Teenage Singers e atuava em espetáculos e festas escolares.
A banda foi depois descoberta por Tony Campello – astro da música dos anos 50 e 60 – e depressa passou a fazer o coro de artistas conhecidos, como o famoso grupo de rock Jet Blacks e os cantores e compositores Demétrius e Prini Lorez. Um ano depois Rita e os outros membros integrantes da banda juntaram-se ao trio masculino Wooden Faces, formando o Six Sided Rockers que mais tarde se transformaria no O Conjunto, depois O´Seis e, por fim Os Mutantes, banda brasileira de rock psicadélico fortemente influenciada por The Beatles, Jimi Hendrix e Sly & the Family Stone. A alcunha surgiu graças ao apresentador Ronnie Von que, durante o seu programa na Record TV em 1966, batizou o grupo. E foi justamente com Os Mutantes, juntamente com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, que Rita passou a dedicar-se exclusivamente à música. A banda trouxe uma renovação para a sonoridade brasileira e inicialmente causou estranheza nos concursos musicais da época.
O ano de 1972, marcou a reviravolta na carreira da paulista, que anunciou que deixaria o trio. Na sua autobiografia Rita Lee: Uma Autobiografia, publicada em 2016, a cantora revelou alguns detalhes sobre o ocorrido, que até hoje gera polémicas. Segundo o seu relato, esta foi expulsa da banda. Da mesma forma, de acordo com a biografia sobre os Mutantes, A Divina Comédia dos Mutantes, escrita pelo jornalista e crítico musical Carlos Calado, que dedicou dois anos à pesquisa do grupo, foi Arnaldo Baptista, seu ex-marido, que lhe comunicou que estaria fora da banda. Rita Lee alegou ainda que os seus companheiros achavam que não tinha o “virtuosismo” necessário para tocar o rock progressivo, o novo interesse da banda na época.
Dos grupos para o solo Formou depois, com a amiga Lúcia Turnbull uma dupla no estilo folk rock, apelidada As Cilibrinas do Éden, cuja única gravação, ao vivo, no festival Phono 73, foi lançada mais de 35 anos depois. Cedo desistiram do duo e formaram a famosa banda Tutti Frutti com Luis Sérgio Carlini e Lee Marcucci, entre outros. Em 1975, a banda lançou o álbum Fruto Proibido que contém os sucessos Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow e Ovelha Negra – que se tornou um clássico do rock brasileiro, vendendo mais de 200 mil cópias na época – e que deu a Rita Lee o título de “Rainha do Rock Brasileiro”.
No ano de 1977, já comprometida com a pessoa que iria mudar o rumo da sua vida pessoal e profissional, Roberto de Carvalho, pai dos seus três filhos, Beto, João e António, Rita Lee foi presa por porte e uso de canábis. Na altura a cantora alegou que tinha deixado de usar drogas por causa da gravidez (a artista encontrava-se grávida do seu primeiro filho) e que o que foi encontrado na época seriam restos usados por amigos e frequentadores da sua casa. Contudo, foi condenada a um ano em prisão domiciliar. Assim que saiu em liberdade, retomou a sua carreira, voltando ainda mais “forte”.
Depois do fim do grupo, já na carreira a solo, a parceria com Roberto rendeu frutos, lançando-a além fronteiras. O primeiro disco da dupla foi o álbum Rita Lee, mais conhecido por Mania de Você, de 1979, com os sucessos Mania de Você, Chega Mais e Doce Vampiro. Seguiram-se então 15 discos a solo. Rita Lee levava para várias cidades do Brasil a inovação tecnológica do microfone sem fio. À época, o casal começou explorar a sexualidade nas canções. A cantora cantou a menstruação, o sexo e a menopausa, quebrando tabus e transformando-se numa inspiração para muitas mulheres. Alcançou a marca de 55 milhões de discos vendidos, escreveu cinco livros infantis e tem duas autobiografias publicadas. Agora, mesmo reformada, doente e sem cabelo, ao olharmos para si relembramos o cabelo vermelho, as roupas coloridas, os óculos redondos arroxeados e os seus grandes olhos azuis. Resguardada numa casa com o seu marido, o seu nome continua a ecoar em toda a parte e a sua marca ficará com certeza viva na história da música não só do Brasil, como de todo o mundo.