“Sou a Meilin. Visto o que quero, digo o que quero, a qualquer hora, sempre que quiser!”. É desta forma que se apresenta a protagonista da última produção da Pixar, que se estreou na sexta-feira, na plataforma de streaming Disney+, Turning Red, em português Estranhamente Vermelho. Tal como tem acontecido com outras longas-metragens, como foi o caso de Coco, em 2017, que fala sobre o Alzheimer e a perda, Soul, em 2020, sobre a morte, ou Luca, no ano passado, que estreou um personagem homossexual nos filmes animados, o tema central do enredo surpreende, mostrando mais uma vez que os estúdios de animação e os realizadores estão atentos aos assuntos que estão “na ordem do dia”. Agora, a Pixar quebra “tabus” com uma história sobre o feminismo e as mudanças na vida de uma adolescente de 13 anos que tem a sua primeira menstruação naquele que pensa que será o melhor ano da sua vida.
O psicanalista, filósofo humanista e sociólogo alemão Erich Fromm foi provavelmente o primeiro a associar a cor vermelha da capa de veludo da Capuchinho Vermelho com a menstruação. No seu ensaio intitulado Linguagem Esquecida, de 1969, conseguiu ver nada mais nada menos que as aventuras de uma menina transformada em mulher diante “dos homens com fome”. Segundo Fromm, advertências tais como “não se desviar do caminho na floresta” seriam uma forma de se proteger do “perigo do sexo”, ou do “risco de perder a virgindade”. Agora e pela primeira vez, um desenho animado faz explicitamente essa associação, mesmo que as intenções sejam outras. Na produção, existem inúmeras metáforas sobre menstruação e alterações hormonais. Aliás, há toda uma série de “estreias” em torno da estreia de Estranhamente Vermelho. É a primeira vez que uma longa-metragem da Pixar – estúdio criador de Toy Story e À Procura de Nemo – é inteiramente realizada por uma mulher. A produção esteve à responsabilidade da realizadora chinesa Domee Shi conhecida por ter ganho o Óscar para a melhor curta de animação em 2019, com Bao e que já admitiu em várias entrevistas que muito desta história está relacionada com a sua vida pessoal e o seu crescimento. Tal como em Bao que conta a história de uma mãe que sofrendo com a ausência do filho, volta a ver sentido na vida quando um dos bolinhos que preparou ganha vida, Shi voltou a inspirar-se na cultura chinesa para “conversar” sobre a maneira como vive uma adolescente ocidental com das formas muito diferentes de ver o mundo.
O salto para a puberdade A protagonista é uma jovem canadiana de origem chinesa chamada Mei Lee. Aos 13 anos, a sua relação próxima com a mãe começa a alterar-se com todas as transformações que acontecem da infância para a adolescência. A jovem começa a mostrar alguns sinais de “rebeldia”, que em muito se distanciam da forma como esta reagia enquanto criança. Numa manhã, ao olhar-se ao espelho, percebe que o seu pequeno e humano corpo, se transformou numa bola de pelo enorme e avermelhada – uma metáfora da primeira menstruação – ou, como se diz no filme, do “desabrochar da peónia vermelha”. Depois disso, Meilin percebe que, a partir desse momento, quando tem as emoções ao rubro, se transforma num panda vermelho gigante, descobrindo também que os seus antepassados tinham uma ligação mística com estes animais.
“O panda vermelho é uma metáfora não só para a puberdade, mas também é algo sobre o que herdamos das nossas mães, e como é que lidamos com as coisas que herdámos delas”, explicou ao site Polygon a realizadora. “A Mei está a crescer entre dois mundos, o Oriente e o Ocidente, e está numa altura da vida em que caminha para a idade adulta, e todas estas mudanças estão a acontecer, não só no seu corpo, mas na relação com a sua mãe e os seus amigos”, acrescentou Shi.
A produtora Lindsey Collins, por sua vez, sublinhou a importância de abordar estas questões diretamente: “Toda a gente na equipa estava a apoiar declaradamente termos esta conversa sobre o período e este momento da vida das raparigas. A esperança é que, ao colocarmos isto no ecrã, sendo algo constrangedor mas também divertido e parte da história, que o normalize”, acredita.
A "missão" do filme Ao jornal espanhol El Mundo, a realizadora já havia admitido que “o momento em que a jovem menstrua foi uma das primeiras cenas que a equipa pensou e planeou”. “Achámos interessante por causa da sua universalidade. Quando começámos a falar nunca pensámos muito na sua importância. A única coisa que tínhamos em mente era como poderia ser divertido e emocionante animar um momento como este tão crucial”, contou, revelando que a equipa só mais tarde, quando se começaram “a ouvir e sentir as reações”, percebeu que estava a lidar com um “tabu”. “Na verdade, se olharmos para o passado, existem muitos tipos de filmes que tratam esta altura da vida, mas nenhum deles fala claramente sobre menstruação ou sequer menciona a palavra. E, no entanto, do ponto de vista da narração, é um acontecimento tão engraçado quanto aterrorizante. Por que não apenas tratá-lo? O que impediu que fosse feito até agora?”, continuou Shui, que admite não saber se “é missão de um filme mudar o código do que pode ou não ser dito”, mas acredita que “é responsabilidade de um artista”. “A Pixar já lidou com questões proibidas e muito obscuras para desenhos animados, como a morte em Coco ou Soul, ou a depressão, no filme Inside Out. Talvez a menstruação seja a última fronteira”, afirmou.
A nova produção Disney Pixar é também a primeira com uma equipa criativa exclusivamente feminina, com a realizadora Domee Shi rodeada não só por Collins, como pela coargumentista Julia Cho.
Em entrevista à Lusa, Collins defendeu que “isto não teria sido feito há uns anos, porque só a Domee poderia ter feito este filme”. “A Pixar empenha-se em fazer filmes que parecem que só poderiam ter sido feitos por determinada pessoa num determinado momento”, continuou. “Não me parece que qualquer outro realizador na Pixar tenha a sua voz, e este filme definitivamente tem uma voz, é muito único e refrescante”, sublinhou.
“Cresci a identificar-me facilmente com histórias de crianças. Agora o desafio é que as crianças cresçam também a identificar-se com histórias como esta protagonizadas por raparigas”, acrescentou a realizadora ao El Mundo.
Entre os atores que dão vozes às personagens encontram-se Rosalie Chiang, Sandra Oh, Ava Morse, Maitreyi Ramakrishnan, Orion Lee ou Tristan Allerick Chen, entre outros.