Grande Turismo. Vagamente um romance

Grande Turismo. Vagamente um romance


A estreia na ficção do crítico literário do Observador João Pedro Vala é um produto acabado da transformação da literatura em entretenimento.


O relativo atraso de Portugal permite que o campo das letras, para usar um conhecido termo de um sociólogo, ainda não se encontre completamente homogeneizado nem totalmente subsumido por aquilo que se chama de “ficção”. Isto significa, antes de mais, que ainda se encontram, aqui e ali, representantes (dignos ou não, é outra história) desse género de escrita a que se convencionou chamar de “romance”, ao lado de espécimes desenvolvidos desse género de todos os géneros que se convencionou chamar “ficção”. Mas significa, também, que ainda é possível sinalizar, ao jeito de sintomas, aqueles objectos que se situam na transição entre um e outro – permitindo, para usar uma imagem que andou em voga durante uns tempos, um teste de stress à própria linguagem da crítica. Grande Turismo, do crítico literário do Observador, João Pedro Vala, é um desses objectos, que conserva ainda a memória do género romance, mas que está de tal forma imbuído de ficção que só pode ser contemporâneo – e isto, obviamente, é de tal forma intolerável que só pode ser uma acusação. 

Chamemos-lhe de império glorioso do pastiche – Grande Turismo é tão contemporâneo que vai buscar esta técnica tão em voga em finais de século XX –, onde tudo é redutível à formulação “sim, mas”. É um romance? Sim, mas não totalmente (“provavelmente um romance” é o subtítulo). É um romance de formação? Sim, em certos momentos, mas nem sempre. É um conjunto de contos? Sim, mas mais ou menos inseridos dentro de um romance – que apenas é “provavelmente um romance”. É um romance “meta”, como a dada altura é designado, querendo com isso designar um momento autorreferencial? Sim, mas nem sempre e quase sempre em modo mais ou menos humorístico, mais ou menos sério. 

O único mérito de textos como este “provavelmente romance” consiste, na realidade, nas dificuldades que colocam à crítica. São 170 páginas que se lêem de forma fácil, sem qualquer forma de atrito – isto também poderia ser uma acusação, mas para isso seria necessário outro tipo de texto crítico –, um conjunto de episódios, uns maiores, outros mais curtos, uns mais engraçados, outros menos engraçados, que vão sucedendo a uma personagem chamada João Pedro Vala – e que acabam, todos eles, numa espécie de hipocondria existencial cujo horizonte é Woody Allen, com alguma piada, mas sem o humor nervoso deste. Há episódios cujo sentido dentro da arquitectura geral deste “provavelmente romance” não se percebe bem – a dada altura, por exemplo, João Pedro Vala personagem dá por si na Guerra Colonial, provando que a ficção consegue arregimentar todos os tempos e espaços para a sua glória. Mas, tirando isso, a linguagem é escorreita, a arquitectura geral é bem pensada, os capítulos são curtos, nada maçadores e, para quem queira perder uma tarde (ou nem isso), Grande Turismo é o equivalente a uma série de televisão engraçada, ligeira. Entretenimento é, salvo erro, o termo técnico que se dá a este género de produtos (é preciso sublinhar, e bem, a palavra «produtos», porque é disto que se trata), e João Pedro Vala prova que daria uma excelente argumentista. E tem também, como não podia deixar de ser, o seu momento “vagamente Lobo Antunes”, para provar que até se consegue ter veia lírica – mas o original, já que João Pedro Vala gosta tanto de metáforas automobilísticas, é um carro de alta cilindrada cujo barulho do motor, mesmo estando há muito sem andar, consegue impor respeito. 

“De eu lhe perguntar se ela queria e ela sim ela a pôr os braços à minha volta e a deitar-me no chão para que eu pudesse sentir-lhe o peito e o perfume sim e o meu coração a bater que nem um louco e sim ela disse sim quero Sim”

É o único momento do livro, felizmente, em que a veia lírica vem ao de cima – mas até aqui há um certo sabor vagamente irónico. E esse tom irónico, vagamente humorístico, começa logo no primeiro momento de Grande Turismo, que nos dá a sua própria recensão.

“Feitas estas considerações gerais, seria agora o momento de iniciar um longo capítulo que intitularia, com a devida pompa, «Ressonâncias literárias em João Pedro Vala». Referiria, é claro, Holden Caulfield, a personagem de Salinger que funciona aqui como modelo de franqueza jovial do discurso – não no sentido de um modelo académico, imitando segundo uma técnica, mas como uma referência viva que parece ter migrado para o espírito de que brotou Grande Turismo”

 E o “provavelmente romance” continua, dando-nos, sempre em modo mais ou menos paródico, mais ou menos em forma de jogo, a sua própria crítica (a referência a Salinger era escusada, o termo “banzado”, que surge profusamente na tradução portuguesa, comparece no parágrafo anterior), virando do avesso aquela ideia do romantismo alemão segundo a qual uma obra de arte contém a sua própria crítica. Tudo, claro, de forma ligeira, vagamente humorística, piscando o olho à haute culture, como forma de provar que a ficção consegue, se assim quiser, privar – o termo importa, obviamente, porque há aqui familiaridade – com Pirandello, Salinger ou Proust (a informação biográfica, digna de um estudo apurado de tal forma está imbuída num típico espírito português, afirma que o crítico e agora romancista concluiu, “com distinção e louvor” uma tese de doutoramento sobre Marcel Proust na, presume-se que muito digna, Universidade de Chicago e na não tão digna Universidade de Lisboa). 

Talvez faça falta um estudo mais sociológico que literário (ou ambos ao mesmo tempo) deste género de produtos que transpiram cultura por todos os poros. Chamemos-lhe o “eixo Alvalade-Roma”, que não designa um local da cidade de Lisboa, mas uma condição existencial onde a cultura é uma espécie de reviver do filistinismo de que falava Hannah Arendt – onde se conhece tudo o que é feito por esta Europa fora, mas sempre cheio de um enfado pastoso porque nada vale muito a pena e já tudo está visto.  É a cinemateca, claro (Bergman, obviamente), é Clarice Lispector, Guimarães Rosa, os já mencionados Proust, Pirandello, Salinger, Man Ray, é a música (aquela Pop que qualquer lisboeta minimamente instruído ouve e gosta), tudo isto temperado por uma certa distância irónica, vagamente humorística; João Pedro Vala personagem, como não podia deixar de ser, não é um marginal, mas é um inadaptado do mundo contemporâneo (é a ficção a dar-se ares de universalismo, que inadaptado é uma condição que vai de Nova Iorque a Tóquio num ápice), apesar de escrever um romance que prova que é o ser mais adaptado do mundo àquilo a que se chama de ficção. É tão contemporâneo que o português, por vezes, cai numa tradução do inglês: depois de uma lição de moral que todos os seres inadaptados ouvem, num qualquer momento da vida, do pai (“Já és um homemzinho, tens responsabilidades, rapaz, não vives num hotel, não achas que estás na altura de começares a pensar no que queres da tua vida”: ignoremos o cliché), o “provavelmente romance” termina com “vocês sabem, o habitual”, que mais parece ser a tradução de uma conhecida expressão americana (“you know, the usual”).

“Na altura não pensava nisso, claro, mas agora parece-me adequado que o jogo que usei como metáfora para estas história se chamasse Gran Turismo, porque é afinal de turismo que isto se trata. Nunca consegui deixar de me ver como visitante de um mundo com roupa de cama insuficiente, com audioguias desinteressantes que passam ao lado da questão essencial. Um mundo de bifes que, com muito boa vontade, poderiam ser descritos como «meio-termo» quando eu os pedi explicitamente em sangue”

Kafka dizia, sobre o alemão checo, que o “nível médio da linguagem não é senão cinza, uma cinza que não é capaz de tomar um aspecto de vida”. É o que acontece com grande parte da produção contemporânea daquilo que se convencionou chamar de ficção: não são nem totalmente maus (é de fácil leitura e entretém) nem, também, propriamente memoráveis. E interessante é que a fórmula “nem…nem”, que tem uma dignidade filosófica reconhecida, encontra um limite com este tipo de “produtos”: o mutismo, que já não é aquele extático da experiência religiosa, mas aquele de quem se limita a passar para outra série de televisão qualquer – e o termo chave, aqui, é o qualquer.

Tudo em Grande Turismo é contemporâneo, ao ponto de apetecer usar um termo também ele contemporâneo: cutting edge (como nos telemóveis). Ligeiro, humorístico, vagamente irónico – tudo quanto se pede a um “provavelmente romance” que fale para todos os inadaptados deste mundo, e são tantos!, que até queriam sangue, mas cujos bifes vêm sempre médio –, encontrará certamente um modo, bastante contemporâneo, também, de crítica. É aquilo a que se chama de “recensão” e que enxameia os jornais um pouco por este mundo fora e que, face a este tipo de produtos, tem uma curiosa consequência: tornam-se, livro e recensão, mutuamente exclusivos. Quem leia uma recensão sobre este género de produtos não precisa de ler o próprio livro e, por outro lado, quem leia o livro não precisa de ler qualquer recensão porque, na realidade, nada há a dizer sobre estes produtos tirando isto: são entretenimento e daria uma série engraçada.