8 de Março de 1925. Saindo pela porta de mão dada com a morte

8 de Março de 1925. Saindo pela porta de mão dada com a morte


Aos 53 anos, Ângela Pinto, uma das grandes senhoras do teatro e da opereta em Portugal, sofreu um ataque de miocárdio em pleno palco do Politeama. Foi levada, inconsciente, para fora dele e nunca mais voltou. Sobreveio-lhe uma hemorragia cerebral que a condenou de vez dois anos mais tarde.


Tinha a cabeça pousada numa almofada branquíssima de fronha lavada e posta a corar. Talvez não soubesse ainda que não iria viver mais 24 horas. Ou talvez nem o adivinhasse, há tanto tempo que mergulhara nas vascas da agonia. Havia quem derramasse prosa sobre a sua beleza: “Que linda a cabeça de Ângela a morrer! Saiu, há pedaço, o dr. Alberto McBride, e levou consigo, atravessando o corredor atabafado de silêncio, a última esperança”.

Ângela. Ângela Pinto. Ângela Rita Clara de Almeida Pinto. Nascida em Lisboa no dia 15 de Novembro de 1869, uma das mais aclamadas actrizes portuguesas da passagem do século XIX para o século XX. Tinha 55 anos. Era ainda uma jovem. Soltou-se da pena do jornalista travestido de poeta: “Ângela agoniza como uma criança. No beijo, que deixamos na sua fronte magnífica, ainda havia calor. A sua respiração é fraca, o seu agonizar não transmite medo, não traz o pavor da morte”. E, no entanto, velhaca, sinistra, a morte estava sentada à sua cabeceira, entretecendo a mantilha preta do seu luto.

Não havia flores no quarto de Ângela, nem uma única flor. Estava em casa, no 2º andar da Rua da Emenda, freguesia da Encarnação. A hemorragia cerebral que sofrera deixara-a prostrada numa cama simples à beira da qual, agonizava também um Cristo, preso ao madeiro da sua ressurreição.

Fim triste para quem fora uma fonte de alegria. Actriz, cantora, mulher de mil vidas, frequentadora de lautos almoços no Restaurante Tavares e de ceias fartas no Botequim Magrinho. Era uma das grandes boémias de Lisboa, logo ela que fora obrigada a casar-se, com apenas 17 anos, contra um fidalgo 32 anos mais velho, António Luís de Miranda Lorena de Queiroz, um tipo pelos vistos tão insuportável que Ângela tratou de o abandonar no dia que se seguiu à boda. Borrifava-se para boatos, estava-se nas tintas para as más línguas. Amou os homens que quis amar e viveu os últimos dias com um amigo antigo, na Rua da Emenda. Pelo caminho fez de Madalena de Vilhena, em Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, de Mariana, em Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, de Gonerill, no Rei Lear, numa adaptação de Júlio Dantas, e de A Mártir, de Adolph d’Ennery. 

O palco Aos 15 anos já tinha subido ao palco, em Setúbal, numa barraca de feira, para participar na zarzuela Simão, Simões & C.ª. Tornou-se profissional no Porto, com a opereta Lobos do Mar, levada à cena no Teatro da Rua dos Condes. Foi íntima de todos os grandes do seu tempo, de Gervásio Lobato a D. João da Câmara, trabalhou para a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, foi traída pelo coração, não na vida mas nas coronárias, aos 53 anos. Estava no palco do Politeama, representando Maria de Jesus, em As Flores, dos irmãos Quintero. Levaram-na inconsciente para fora de cena e nunca mais voltou.

“Tem sobre a roupa”, continuava a descrever o nosso prolixo repórter, “que deixa ver um pedaço de pele branca a confundir-se com os linhos, um crucifixo pequeno. No corredor arde uma lâmpada a Nossa Senhora, num oratório onde Santa Isabel, de Teixeira Lopes, sorri para imaginárias flores. Choram olhos femininos; chora seu filho…”.

Mais uma alma se preparava para partir. Uma alma que todos consideravam grande e à qual devotavam tempos de inimagináveis alegrias no céu que a esperava. Há longos meses que vivia de forma precária. O cérebro deixara de funcionar por custa do excesso de sangue, De olhos semi-cerrados, com a respiração aos repelões, estendida por entre lençóis alvos, Ângela preparava-se para representar o maior papel da sua extraordinária carreira. A de sair pela porta de mão dada com a morte.