Cheguei a casa, mais tarde do que o normal, e, como o dia tinha sido longo, o cansaço abatia-se nas minhas costas que teimavam em vergar e obrigava a desacelerar o passo de quem insistia em marchar rumo ao que ainda faltava fazer, antes que o dia terminasse.
Em casa, os rapazes estavam pespegados em frente ao televisor, a assistir ao que se passava a mais de 4 mil quilómetros de distância, comentando, de vez em quando, o equipamento militar dos soldados e os tanques que avançavam sobre tudo o que se interpusesse entre eles e Kiev. Tudo estava calmo, demasiado calmo.
Lá fui fazer o que tinha a fazer. Antes da noite terminar, gosto de fazer uma ronda pelos quartos dos rapazes para conversar um pouco com cada um deles sobre o dia, quando assim estão para lá virados. Na maioria das vezes, sou despachada com um “correu tudo bem, mãe! Não se preocupe” e passo para o próximo, na esperança que me dê um pouquinho mais de conversa. Umas vezes tenho sorte, outras nem tanto. Mas acho que é assim em muitas casas, principalmente quando há só rapazes.
Por isto mesmo, esta noite foi diferente. No cumprimento da minha ronda, os mais novos dispensaram a conversinha da praxe e invocaram o estatuto de filhos cansados que precisam de ir dormir. Com o mais velho, raramente há surpresas a esta hora e trocam-se os beijos de despedida, os votos de uma boa noite e guardam-se as conversas para as alturas mais apropriadas do que a hora de deitar. Só que neste dia, já eu estava a fechar a porta do quarto, quando ouço a seguinte pergunta: “-Acha que posso ser chamado para a guerra?”.
Gelei, petrifiquei e quase que o meu coração parou naquele instante. Na sua voz não havia receio, ansiedade ou até emoção. Era uma pergunta lógica e racional de quem sente que precisa uma resposta e nada mais. Não me tinha ocorrido esta possibilidade, de tantas outras que já tinha perspetivado. Os efeitos práticos de uma guerra, ali dentro da minha casa, a materializarem-se numa questão real e concreta.
Afinal, este meu filho já é adulto e sim, pode ser convocado para integrar as forças armadas, em caso de guerra. De um momento para o outro, aquela guerra que se passa a mais de 4 mil quilómetros entrou pela minha casa adentro, sem que eu tivesse ligado a televisão.
Não quero pôr as mães de Portugal a pensar sobre isto. Mas também não posso não partilhar esta angústia que me tornou numa entusiasta e defensora de uma solução diplomática e célere para um conflito que pode chegar até nós, antes que nos apercebamos das suas implicações.
Se antes analisava toda a situação de uma perspetiva muito académica e consubstanciada nos manuais das relações internacionais, hoje só desejo que aquela guerra termine o mais rápido possível, antes que os seus estilhaços nos atinjam.
Acabámos de sair de uma pandemia que “roubou” dois anos da vida a todos nós, em especial aos mais jovens que gozam daquela voragem própria da idade para viver.
Preocupa-me esta geração mais nova que está novamente inquieta com o seu futuro, sem ter certezas de nada quanto ao dia seguinte. Mas também me orgulho desta geração destemida e fortalecida pelas adversidades. Não exibem queixumes ou lamúrias, só querem saber com o que contam e, ainda assim, estão solidários com todos os que perdem a vida naquele território longínquo e com os que foram obrigados a abandonar as suas casas e famílias.
Não estou preparada para enviar os meus filhos para a guerra. Perante a pergunta, respondi com um abraço forte e senti o meu coração a bater contra o dele, como se fôssemos novamente um só.
Se eles forem, eu também irei.