“Ecocídios”, notícias falsas e a crise da democracia


Há uns meses largos, recebi um mail de uma jornalista que me pedia uma reação à “informação segura” que “a Câmara de Cascais ia vender os Paços do Concelho a um grupo chinês.” Para não ser deselegante, dispensei-me a qualquer comentário.


A vida política é repleta de desafios. Desafios gerados pela realidade, pela história, pela geografia. Obstáculos criados pelas dinâmicas sociais ou económicas das grandes crises ou pelas tensões nas relações com outros estados. Problemas da circunstância individual de cada cidadão ou de grupos fragilizados de pessoas a quem temos o dever de responder. 

Velhos e novos problemas convivem diariamente na secretária do decisor político. 

Isto é a natureza do serviço público. 

Como se estas questões que verdadeiramente importam não fossem já de si complexas, no ambiente mediático e hiperconectado do século XXI – que nos põe mais conhecimento na ponta dos dedos do que todas as bibliotecas do mundo reunidas num só lugar -, a ignorância massificada deliberadamente constituiu desafio urgente. 

As notícias falsas, os factos fabricados, as narrativas fantasiosas, são uma das maiores gangrenas das sociedades modernas. Elas minam a relação de confiança entre as instituições e os cidadãos, entre eleitores e eleitos, entre comunidades e indivíduos. Elas invertem, com a conivência de alguns jornalistas já despidos dos valores basilares do jornalismo, o ónus da prova e a presunção de inocência de pessoas ou grupos. Elas torpedeiam a república democrática nos seus ideais mais perenes como a justiça, a verdade e o bem do maior número. 

Estou presidente de Câmara há dez anos. E, neste tempo, nunca como nos últimos meses as notícias falsas foram tão deliberadamente fantasiosas. Três exemplos. Há uns meses largos, recebi um mail de uma jornalista que me pedia uma reação à “informação segura” que “a Câmara de Cascais ia vender os Paços do Concelho a um grupo chinês.” Para não ser deselegante, dispensei-me a qualquer comentário. 

Mais recentemente, fui confrontado com uma denúncia de ilegalidades no processo de alteração do Plano Diretor Municipal de Cascais que, de acordo com um grupo de ativistas radicais do concelho, seria motivo de denúncia à PGR. A denúncia foi, pois claro, objeto de parangonas. Felizmente, não demorou muito para que o Ministério Público arquivasse essas denúncias, sendo o despacho de arquivamento bastante claro a expor a incompetência e ignorância dos denunciantes. Também tive de liderar com a denúncia fantasiosa de que ia acabar com a pesca em Cascais com o encerramento da Lota, já para não falar na denúncia que íamos atravessar uma estrada por cima de um skate parque.

Já esta semana, os criadores de notícias falsas travestiram-se de “grupos ambientalistas.” Eles não fazem a coisa por menos. E já que é para mentir, então que seja à grande: há um “crime ambiental” ou, na sua versão mais dramática, um “ecocídio” em curso no Parque Natural Sintra Cascais (PNSC). Que crime hediondo é esse? Com a validação do Ministério do Ambiente, do ICNF, da Proteção Civil, das Unidades Técnicas Florestais e dos Bombeiros, a Câmara de Cascais está a fazer uma coisa chamada “gestão florestal” numa área de 3 hectares no coração do Parque. A ação dos serviços segue as melhores práticas das Nações Unidas na preservação dos ambientes naturais e no reforço da resiliência contra as alterações climáticas. Esse crime ambiental é tão-somente a erradicação de acácias e outras espécies invasoras que, toda a gente sabe, são o principal combustível para os fogos florestais. Clamar que há um “crime ambiental” no desbaste de acácias só pode ter bom acolhimento entre aqueles que clamam que a Terra é plana ou que os americanos fizeram o 11 de setembro. 

As notícias falsas, estas fabricações patológicas desprovidas de verdade e nexo, independentemente do tempo em que ocorram têm os mesmos traços comuns: são escandalosas, geram alarme e semeiam o medo; nascem nas redes sociais e tentam ganhar respeitabilidade através dos media fazendo-se passar por associações que não têm existência para além de páginas de Facebook; têm sempre o objetivo último de denegrir a integridade do agente político ou do corpo técnico que serve autarquia. 

Este é um fenómeno que qualquer democrata e qualquer poder mediador tem o dever de combater. Por três razões principais.  

Primeira razão: fundadas em mentiras e ignorância, as narrativas divorciam a cidadania da democracia – não obstante falarem quase sempre em nome do “povo”. As narrativas debilitam a república democrática e fragilizam as instituições. 

Segunda razão: as fabricações levam ao bloqueio dos decisores, adiam a resolução de problemas e turvam a noção do que está certo ou errado. As redes sociais são, desse ponto de vista, um fator ainda mais condicionante da ação política do que as sondagens. Se o decisor político mais calculista tiver em consideração a voz da turba e as polémicas estéreis criadas nas redes, cristaliza e perde o vigor da ação executiva. Em Cascais, quero frisar, este modus operandi nunca terá ganho de causa, sobretudo quando temos a certeza, validada pela ciência e pelos técnicos, de que estamos a fazer o que está certo. 

O que me leva à terceira razão: opinião é uma coisa, verdade é outra. As redes sociais deram a todos uma voz, e muito bem. Mas se é bem certo que todos têm a liberdade de dizer o que lhes apetece, incluindo disparates, não podemos esquecer-nos que opinião e verdade são, ou deveriam ser, coisas distintas. Mais: mal anda o mundo quando, sobre determinada matéria, seja abate de acácias ou vacinas, há uma equivalência de opinião entre o técnico e o cientista, por um lado, e o activista tudólogo das redes sociais, por outro. Cada um tem a sua opinião, legítima, mas as opiniões não valem todas o mesmo.   

Preservar a democracia e a liberdade é um trabalho de cada um de nós, cidadãos da pólis. Mas ao contrário do que dizem alguns, mais liberdade e mais democracia não é dizer tudo o que se quer. É ser responsável e procurar a verdade em tudo o que se diz. 

“Ecocídios”, notícias falsas e a crise da democracia


Há uns meses largos, recebi um mail de uma jornalista que me pedia uma reação à “informação segura” que “a Câmara de Cascais ia vender os Paços do Concelho a um grupo chinês.” Para não ser deselegante, dispensei-me a qualquer comentário.


A vida política é repleta de desafios. Desafios gerados pela realidade, pela história, pela geografia. Obstáculos criados pelas dinâmicas sociais ou económicas das grandes crises ou pelas tensões nas relações com outros estados. Problemas da circunstância individual de cada cidadão ou de grupos fragilizados de pessoas a quem temos o dever de responder. 

Velhos e novos problemas convivem diariamente na secretária do decisor político. 

Isto é a natureza do serviço público. 

Como se estas questões que verdadeiramente importam não fossem já de si complexas, no ambiente mediático e hiperconectado do século XXI – que nos põe mais conhecimento na ponta dos dedos do que todas as bibliotecas do mundo reunidas num só lugar -, a ignorância massificada deliberadamente constituiu desafio urgente. 

As notícias falsas, os factos fabricados, as narrativas fantasiosas, são uma das maiores gangrenas das sociedades modernas. Elas minam a relação de confiança entre as instituições e os cidadãos, entre eleitores e eleitos, entre comunidades e indivíduos. Elas invertem, com a conivência de alguns jornalistas já despidos dos valores basilares do jornalismo, o ónus da prova e a presunção de inocência de pessoas ou grupos. Elas torpedeiam a república democrática nos seus ideais mais perenes como a justiça, a verdade e o bem do maior número. 

Estou presidente de Câmara há dez anos. E, neste tempo, nunca como nos últimos meses as notícias falsas foram tão deliberadamente fantasiosas. Três exemplos. Há uns meses largos, recebi um mail de uma jornalista que me pedia uma reação à “informação segura” que “a Câmara de Cascais ia vender os Paços do Concelho a um grupo chinês.” Para não ser deselegante, dispensei-me a qualquer comentário. 

Mais recentemente, fui confrontado com uma denúncia de ilegalidades no processo de alteração do Plano Diretor Municipal de Cascais que, de acordo com um grupo de ativistas radicais do concelho, seria motivo de denúncia à PGR. A denúncia foi, pois claro, objeto de parangonas. Felizmente, não demorou muito para que o Ministério Público arquivasse essas denúncias, sendo o despacho de arquivamento bastante claro a expor a incompetência e ignorância dos denunciantes. Também tive de liderar com a denúncia fantasiosa de que ia acabar com a pesca em Cascais com o encerramento da Lota, já para não falar na denúncia que íamos atravessar uma estrada por cima de um skate parque.

Já esta semana, os criadores de notícias falsas travestiram-se de “grupos ambientalistas.” Eles não fazem a coisa por menos. E já que é para mentir, então que seja à grande: há um “crime ambiental” ou, na sua versão mais dramática, um “ecocídio” em curso no Parque Natural Sintra Cascais (PNSC). Que crime hediondo é esse? Com a validação do Ministério do Ambiente, do ICNF, da Proteção Civil, das Unidades Técnicas Florestais e dos Bombeiros, a Câmara de Cascais está a fazer uma coisa chamada “gestão florestal” numa área de 3 hectares no coração do Parque. A ação dos serviços segue as melhores práticas das Nações Unidas na preservação dos ambientes naturais e no reforço da resiliência contra as alterações climáticas. Esse crime ambiental é tão-somente a erradicação de acácias e outras espécies invasoras que, toda a gente sabe, são o principal combustível para os fogos florestais. Clamar que há um “crime ambiental” no desbaste de acácias só pode ter bom acolhimento entre aqueles que clamam que a Terra é plana ou que os americanos fizeram o 11 de setembro. 

As notícias falsas, estas fabricações patológicas desprovidas de verdade e nexo, independentemente do tempo em que ocorram têm os mesmos traços comuns: são escandalosas, geram alarme e semeiam o medo; nascem nas redes sociais e tentam ganhar respeitabilidade através dos media fazendo-se passar por associações que não têm existência para além de páginas de Facebook; têm sempre o objetivo último de denegrir a integridade do agente político ou do corpo técnico que serve autarquia. 

Este é um fenómeno que qualquer democrata e qualquer poder mediador tem o dever de combater. Por três razões principais.  

Primeira razão: fundadas em mentiras e ignorância, as narrativas divorciam a cidadania da democracia – não obstante falarem quase sempre em nome do “povo”. As narrativas debilitam a república democrática e fragilizam as instituições. 

Segunda razão: as fabricações levam ao bloqueio dos decisores, adiam a resolução de problemas e turvam a noção do que está certo ou errado. As redes sociais são, desse ponto de vista, um fator ainda mais condicionante da ação política do que as sondagens. Se o decisor político mais calculista tiver em consideração a voz da turba e as polémicas estéreis criadas nas redes, cristaliza e perde o vigor da ação executiva. Em Cascais, quero frisar, este modus operandi nunca terá ganho de causa, sobretudo quando temos a certeza, validada pela ciência e pelos técnicos, de que estamos a fazer o que está certo. 

O que me leva à terceira razão: opinião é uma coisa, verdade é outra. As redes sociais deram a todos uma voz, e muito bem. Mas se é bem certo que todos têm a liberdade de dizer o que lhes apetece, incluindo disparates, não podemos esquecer-nos que opinião e verdade são, ou deveriam ser, coisas distintas. Mais: mal anda o mundo quando, sobre determinada matéria, seja abate de acácias ou vacinas, há uma equivalência de opinião entre o técnico e o cientista, por um lado, e o activista tudólogo das redes sociais, por outro. Cada um tem a sua opinião, legítima, mas as opiniões não valem todas o mesmo.   

Preservar a democracia e a liberdade é um trabalho de cada um de nós, cidadãos da pólis. Mas ao contrário do que dizem alguns, mais liberdade e mais democracia não é dizer tudo o que se quer. É ser responsável e procurar a verdade em tudo o que se diz.