Witold Gombrowicz. Uma vida implacável

Witold Gombrowicz. Uma vida implacável


Aos 35 anos, era uma das vozes mais instigantes da literatura polaca, foi então que um golpe do destino o afastou do seu país e do rumo que havia traçado, vendo-se exilado e à deriva numa terra incógnita da qual nem a língua conhecia. Entregue à mais dolorosa indigência, a circunstâncias que dariam cabo de…


Witold Gombrowicz chegou a Buenos Aires em 1939. Tinha 35 anos, e foi na condição de jovem e promissor escritor, diz-nos a sua mulher no prefácio à edição do seu Diário (edição da Antígona, com uma irrepreensível tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz), que se viu convidado a seguir a bordo do transatlântico MS Chrobry (O Bravo) naquela que foi a viagem inaugural de uma nova rota marítima entre a Polónia e a Argentina. Não esperava que fosse mais do que um desses vagos títulos que se acumula enquanto embaixador cultural, e é provável que, sendo o seu tom geralmente desafiador, tenha aceitado o convite como quem vai cheirar a profundidade do horizonte para voltar a casa arrastando pelo arpão alguma carcaça digna de ser longamente decomposta sobre a mesa de trabalho, matéria para aquele tom corrosivo que primeiro se lança num registo de bazófia para, logo depois, furar mais fundo numa instrutiva depressão, perfurando uma e outra vez um mesmo tema a diferentes níveis, safando sempre a coisa nesse cerco próprio de um vento infatigável, sabendo como o génio da prosa salva tudo, obrigando-se a “injectar algum brilhantismo numa cena que é como um cartucho húmido que não dispara”, isto tanto na sua ficção como nas entradas diarísticas, que assumiam muitas vezes o fôlego de extraordinários ensaios, sendo desde cedo referida a influência de Montaigne.

Depois de Gombrowicz, muitos têm tentado essa proeza de erguer uma obra tonitruante num regime de pura audácia, encher páginas umas após as outras num sinal de uma determinação terrível, revelando um carácter e uma personalidade que é impossível deixar de nos causar impressão, tanto pelo lúcido fervor das suas asserções, como pelo balanço de uma imaginação capaz de nos sacudir ou fazer estatelar tantas mais vezes do que acontece nos grandes clássicos da literatura. Este génio da imaturidade tinha uma confiança desmedida nas suas capacidades enquanto narrador, e, também por isso, consegue estar ao nível dos grandes moralistas franceses dos séculos XVII e XVIII, desde logo pela sua capacidade de tomar balanço a partir de questões ociosas ou daquilo a que poderia chamar-se a etiqueta literária. “Quem decidiu que se deve escrever só quando se tem alguma coisa a dizer?”, indagava em tom de desafio, para logo rematar a questão vincando que “a arte consiste precisamente em não escrever o que se tem de dizer, mas algo completamente imprevisto”. Esta noção tem permitido a tantos escribas de segunda ordem aborrecerem-nos com as suas derivas patéticas e que esforçam o clima de superstição que tem vindo a tomar conta do ofício das palavras. A literatura tem vindo a ser confundida com um anedotário pegado com cuspo nas mesas de um café que nos falta. Este deveria localizar-se no coração das disciplinas do tédio, mas infelizmente essa é uma condição que praticamente foi erradicada no século XXI. Mas talvez essa ausência possa justificar o modo como abundam, hoje, as larachas, esses episódios de humor vicioso ou que tresandam a ironia, estórias rocambolescas em que se força uma moral patusca em lugar de uma experiência desenvolta. Vem faltando substância crítica, e também verdadeiro ímpeto e fulgor à imaginação, de tal modo que a escrita seja ainda capaz de reformular a sensação da vida e questionar o lugar dos homens no mundo. Não faltam, no entanto, escritores que, à maneira de Enrique Vila-Matas, assumem alegremente essa forma de diletantismo e redundância a que se convencionou chamar de pós-modernismo, e que serve de álibi a obras parasitárias, que traçam a sua pequena aventura como um desvio tosco a partir da reportagem literária, e que geram obras geralmente bem menos instigantes do que os temas de que se servem para segurar o embuste. E é Vila-Matas o primeiro a denunciar-se como uma espécie de impostor, embora pretenda criar esse engodo e se sirva daquele expediente de andar à caça desses gambozinos literários que são os bartlebys, e que assume que sem nunca ter lido Gombrowicz decidiu fazer dele um mestre, e chegou a mandar gravar essas palavras acima citadas, sendo as que mais o fascinavam numa obra que desconhecia. Prefere, assim, abordar a figura a partir de um contorno entre o mítico e o pindérico, nessa produção de um folclore para fins de tráfico cultural entre os que não estão para se maçar com terem de ler de facto as obras antes preferindo guias de viagens com itinerários para o turista que nem chega a levantar-se da sua cadeira de balanço.

Voltando a Gombrowicz, se há em tudo o que escreveu uma forte “aversão pelo que seja grandioso”, o seu exame das sensações que a vida prende nas suas redes é sempre invulgar. Veja-se esta reflexão sobre o abater das forças num homem à medida que começa a sentir-se velho: “Olhei para a chaleira e soube que esta e outras chaleiras serão cada vez mais aterradoras para mim à medida que o tempo passa, tal como tudo à minha volta. Tenho consciência suficiente para beber esta taça de veneno até ao fim, mas não tenho sublimidade suficiente para me erguer acima dela – espera por mim a angústia da morte num esmagador submundo, espera sem um único raio de luz.”

Embora uma certa noção de desventura e impotência estejam sempre presentes nos diários deste autor, isso é sentido por alguém que, verdadeiramente irado com a falta dessa comunidade que poderia integrar os raros espíritos inquietos de uma época, e à cabeça o seu, decide impor à sua alma a tarefa de criar um regimento de personagens audazes e em condições de suplantar o vazio de um ambiente cultural que tende a ser diluente: “Tenho de me tornar o comentador de mim próprio, melhor ainda, o director teatral de mim próprio. Tenho de criar Gombrowicz, o pensador, Gombrowicz, o génio, Gombrowicz, o demonólogo cultural, e muitos outros Gombrowiczez ainda necessários.” Isto disse-o em agosto de 1952 ao director da Kultura, Jerzy Giedroyc, que acolheu nas páginas daquela revista polaca que se editava nos arredores de Paris, e que, embora se dirigisse primeiramente à comunidade emigrante, opondo-se ao regime comunista, e apesar de ter visto a sua circulação ser proibida, era contrabandeada na Polónia, e acabava por ser lida nos meios culturais. Aquele desígnio de Gombrowicz se aplicar numa esquizofrenia criativa que lhe permitisse povoar a ausência de sinais, vendo-se ele exilado primeiro pela invasão nazi e, após a Guerra, pelo estalinismo, encontra paralelo nas múltiplas estratégias de tantos autores, nesses anos, para não definharem no ambiente de marasmo nessas sociedades sujeitas à vigilância paranoica de regimes que se perpetuavam no poder afundando as raízes do seu aparelho amesquinhante, de modo a sufocar as consciências. Entre nós, o exemplo mais célebre é certamente o de Fernando Pessoa, poeta que foi ao ponto de inventar toda uma geração para não se sentir tão só no inóspito poço da vida cultural portuguesa. Quanto a Gombrowicz, mesmo antes de se ver exilado na Argentina, quando recebeu o convite para zarpar naquele transatlântico, estava longe de ser um candidato óbvio para aquela honraria, e sabendo a sucessão de eventos que se deram nas semanas seguintes, a sensação é a de que o convite foi um presente envenenado, tendo ele vivido até ao final da guerra, em 1945, numa situação de extrema pobreza.

Além disso, o castigo foi de tal ordem que, enquanto aguardava o destino do seu país antes de retomar a escrita, Gombrowicz viveu um longo impasse, tendo-se recusado a escrever noutra língua, e ficando dependente de edições publicadas na emigração. Numa altura decisiva na sua carreira enquanto escritor, quando começava a causar algum desconforto e espanto com as suas criações, era-lhe intolerável a noção de que havia sido ejectado das suas ambições e da forma mais cruel, incapaz de regressar ao seu país, com o qual continuou, no entanto, a viver uma relação bastante tortuosa. Se Rita Gombrowicz nos diz que o marido embarcou no Chrobry como um jovem e promissor escritor polaco, a verdade é que ele tinha, então, já dado claros sinais da sua feição rebelde, e tinha no cadastro um volume de contos que passavam a correr pelo estendal surrealista, apanhando algumas peças da roupa interior que parecia cheirar com os olhos meios desorbitados de um arruaceiro prestes a provocar distúrbios nessa zona tão apegada às convenções que é o meio literário, e era também o autor de uma peça de teatro – Yvonne, Princesa da Borgonha – carregada de uma ambiência onírica e que esperou décadas antes de ser levada à cena, e um crucial romance, Ferdydurke, publicado em Varsóvia, dois anos antes da fatídica viagem que o levou para o outro lado do mundo. Embora se desse ares, gostasse de fazer a fita do conde amaneirado que tinha em si um talento que era pesado demais, demasiado assombrado para o Novo Mundo, a condição de absoluto anónimo provocava-lhe suores frios, crises de pânico perante a vertigem concreta de se sentir atirado para uma marginalidade em que se via a desaparecer sem deixar uma marca ou sequer uma mancha neste mundo. Continuou sempre a zurzir nesse “mundo pequeno, infantil, secundário, arrumado e piedoso” que deixara para trás, mas a verdade é que Gombrowicz nunca conseguiu sentir-se à-vontade na condição de emigrado. Por mais que se rebelasse contra a Polónia, reconhecia ser “terrivelmente polaco”. E a este respeito, muitas das mais proveitosas passagens do seu Diário, publicado em fascículos mensais na revista Kultura é precisamente o confronto que mantém com o seu país, num braço-de-ferro acirrado pela distância, pela sensação de que os seus compatriotas se estariam nas tintas se, por ventura, ele fosse engolido por essa região ultramarina que funcionava como uma espécie de cárcere no qual o destino, numa imprevisível e traiçoeira jogada, o obrigava a assistir enquanto a vida parecia passar-lhe ao lado. Mas nada como as mais dolorosas contrariedades para obrigarem um autor que, se até ali era tido como um excêntrico, cujo talento causava alguma irritação, a superar-se, vendo-se espoliado do que julgava ser seu por direito, e que acabaria por congeminar um género literário absolutamente devastador, um registo que faz do tom confessional uma epopeia dos ajustes de contas e do vigor cáustico dos seus argumentos um modo de vingança tão profícuo quanto consequente. De resto, ele mesmo reconhece o favor que acabaram por lhe fazer todos essas complicações que a vida lhe criou. “Thomas Mann, um especialista versado nestes assuntos, disse que uma arte que nascesse desde o início no esplendor do reconhecimento seria sem dúvida diferente de uma arte que, com dificuldade e à custa de muitas humilhações e derrotas, tinha de conquistar gradualmente um lugar para si. Como seria a minha obra se tivesse sido adornada com uma coroa de louros desde o primeiro momento, se até hoje, depois de tantos anos, eu não tivesse de me dedicar a ela como se fosse algo proibido, confrangedor e inapropriado?” E quando vitupera a classe artística do seu país, quando faz um exame desolador da “histórica falta de dinamismo da Polónia”, da sua impotência cultural, dizendo que essas características se justificam “porque Deus sempre nos levou pela mãozinha”, muito cedo a Polónia se torna um símbolo de nações periféricas como a nossa, e é difícil não sentir que o que diz não se aplica tal e qual a Portugal. “Confrontei esta infância polaca bem-comportada à independência adulta de outras culturas. Esta nação sem uma filosofia, sem uma consciência histórica, intelectualmente branda e espiritualmente tímida, uma nação que produziu apenas uma arte ‘honrada’ e ‘respeitável’, um povo lânguido de líricos rabiscadores de poesia, de folcloristas, de pianistas, de actores”… E com este diagnóstico demolidor, que, entre nós, encontraria um paralelo na terrível crítica a que Eça de Queirós sujeitou a nossa sociedade, Gombrowicz sintetiza o seu propósito dizendo que o seu labor literário “é guiado pela ideia de extrair os Polacos de quaisquer realidades secundárias e de pô-los em confronto directo com o universo”. E no seu estilo caracteristicamente fanfarrão, remata: “Eles que se cuidem o melhor que possam. Desejo arruinar-lhes a infância.”

Não há melhor programa literário do que uma terrível vingança, não tanto em nome de uma série de valores ou princípios, mas antes em nome de todas as ambições que não vingaram, os espíritos que se viram obrigados a chafurdar na álacre mediocridade que reina e estende a sua intriga de modo a que ninguém consiga escapar-lhe. Se hoje, Ferdydurke é amplamente reconhecido como uma obra-prima da literatura do século passado, a verdade é que, na altura, boa parte da crítica mostrou desdém pelo livro, exercendo essa forma de censura que passa por etiquetar qualquer voz que surja animada por um furor raivoso como meras “sandices e delírios de um demente”. Rita Gombrowicz diz-nos que o Diário do marido logo se tornou o coração da revista Kultura, pois “abordava assuntos fundamentais para os Polacos, tais como o exílio, o patriotismo, o comunismo e o catolicismo, que causavam acesas discussões com os leitores, cujas cartas e respostas eram publicadas”. A mulher do escritor exalta o papel que o Diário teve ao renovar por completo a cultura polaca, tendo criado “um genuíno fórum de discussão, um blogue pré-internet”. Diz-nos ainda que, com o passar dos anos, Gombrowicz veio a tornar-se “um ícone de liberdade”, mas seria mais adequado falar nele como um ícone da incomodidade, uma espécie de magistrado de um tribunal que actuava por via de uma sedução demoníaca, produzindo sentenças que avançavam numa forma de flagelo da consciência, como se ele mesmo fosse perseguido por vozes, como se a sua escrita e a sua voz fossem a de uma instância desesperada de recurso, e através dela se abrissem os túmulos.

Sabemos bem como, naqueles períodos mais conturbados e que por isso mais exigem da consciência dos escritores, uma larga maioria consegue precisamente garantir certas posições e privilégios, um prestígio que faça deles figuras convenientes para o poder, mostrando-se muito competentes na hora de se fazerem desentendidos. No fundo, nada é com eles. Não ouvem essas frases, palavras, exclamações desconexas ou gritos que Gombrowicz, apesar de estar longe, conseguia ouvir, recolher em toda a parte, fosse nas ruas e praças, nos estabelecimentos ou instituições, no interior de toda essa urdidura aberrante que impede que alguma coisa seja feita para mudar o estado das coisas. “As palavras negras, impressas, mortas, eram para ele palavras sonoras. Quando, depois, as citava, era como se pusesse vozes a falar: eram citações acústicas.” Isto escreveu Elias Canetti a propósito de Karl Kraus, o satirista vienense que em muitos aspectos é dos autores que, tendo precedido Gombrowicz, mais se parece com um seu precursor. Tanto um como o outro, eram “o antítipo  de todos os escritores, da esmagadora maioria de todos os escritores, que passam mel pelos lábios das pessoas, a fim de serem queridos e louvados por elas”. Bruno Schulz, outro génio das letras polacas ignorado e que, mesmo depois das circunstâncias terríficas em que perdeu a vida, tendo sido abatido a tiro em plena luz do dia num gueto judeu em Drohobycz, tudo por causa de uma disputa entre oficiais nazis, também ele pagou o preço de ter-se recusado a escrever o idioma domesticado desses que nos passam mel pelos lábios, e ele que, mesmo sendo mais velho, suportou a sobranceria de Gombrowicz, não só foi seu amigo como foi um dos seus primeiros admiradores incondicionais, tendo-o caracterizado como um “implacável caçador de mentiras culturais”. 

O seu grande triunfo está nessa convicção profunda que levou a que, mesmo nos momentos em que foi sujeito às piores humilhações, sobrevivesse sempre em si a insaciabilidade e veemência dos anos juvenis. À sua passagem, nenhum desses habituais deuses que servem para segurar a imagem do espaço literário como um templo, nenhum desses ídolos de barro permaneceu incólume. O seu plano de vingança teve um impacto tão profundo porque, depois dele, não é possível olhar para trás sem se ter da perspectiva da literatura que então se escrevia algo mais do que um panteão desfeito em cacos. A grande herança de Gombrowicz foi a sua capacidade de resgatar a literatura enquanto fala da insubmissão, devolvendo-nos uma imagem mais fiel daquilo que surge nos programas desses cursinhos ministrados por uma gente cuja função é arrumar num dispensário e calar de vez o tumulto bárbaro que ali se desenfreou.

Gombrowicz, por outro lado, serve-se do seu imenso desconsolo, e também da sua inveja e ciúme, dessa vertente petulante, ansiosa por nos devolver qualquer cânone como um amontado de escombros sobre escombros. E se é impossível colar os cacos e reconstituir qualquer altar, esses escombros surgem-nos agora cada vez mais estranhos, vulneráveis mas, também, reveladores, fantásticos.

Este Diário é a congeminação fabulosa de uma sucessão tremenda de fracassos, de uma mente embalada na prepotência de alguém que se sabia dotado de recursos francamente invulgares, mas que vê abaterem-se as suas esperanças contra o muro de uma realidade empenhada em fazer troça daquele ser que se achava destinado a grandes feitos. Ao mesmo tempo, ao ver-se obrigado a desistir de escrever romances, condenado à condição de um escritor de fim-de-semana (“fui condenado a trabalhos literários ocasionais para feriados e dias santos, como este diário, onde não posso fornecer-vos nada mais além de um resumo superficial, à maneira do pobre discurso jornalístico”), é a partir do momento em que se vê forçado a acatar o seu destino que a sua rebelião encontra esse formidável subterfúgio, inventando um género caótico, metendo no saco muitas coisas diferentes, indo ao sabor dos humores. E é também ao ver-se livre da camisa-de-forças da ficção narrativa que todo o destempero desta consciência ganha balanço e se lança à jugular dos leitores, soltando “uma voz que diz que a vida não tem sentido, mas cujo timbre profundo se revela o eco desse sentido” (Claudio Magris). Para nos servirmos das palavras de Gombrowicz a propósito de uma das primeiras leituras de que nos dá conta, “naquelas páginas, a presença do tempo é tão forte que desperta em nós uma fome de frontalidade e franqueza, uma vontade de viver e de nos realizarmos, ainda que imperfeitamente”. E prossegue: “A vida, porém, parece desenrolar-se atrás de um vidro – afastada –, como se já nada fosse nosso e fosse visto de um comboio.”

Na descrição de todos os seus infortúnios, da Comédia Não-Divina que se tornou a sua vida, temos a imagem de um deus enxotado daquele Olimpo que chegou a vislumbrar, damos com ele a experimentar o avesso da glória, resistindo pobremente, uma sombra destacando-se dolorosamente em sombrios quartos de pensão, aproveitando-se de todas as oportunidades para vir respirar à tona da miséria em que se via mergulhado, seja sendo recebido para jantar na casa de amigos, seja gozando da possibilidade de escapar de Buenos Aires para ser acolhido nalguma propriedade ou quinta, sempre meio combalido nessa aura intermitente de que ia gozando como um grande escritor que se vira transformado num ilustre desconhecido, exilado do seu idioma, um alienígena que só piorava as coisas dissimulando a sua timidez com brusquidão, e que, sentindo dificuldade em fazer-se entender, não se esforçava demasiado para ser acolhido, proferindo umas frases em francês, mostrando-se sempre enfadado. Tinha o orgulho como uma espinha descomunal atravessada na alma, e, por mais pão duro que a vida o forçasse a engolir, não conseguia livrar-se daqueles excessos que, como ele mesmo reconhecia, apenas lhe levantavam mais obstáculos.

Ainda assim, não deixou de encontrar outros párias iluminados como ele, e depois dos primeiros e dificílimos meses, dos quais nada se sabe, no estupendo ensaio que Ricardo Piglia lhe dedicou – “O escritor como leitor” –, este diz-nos que adoptou como seu centro de operações o café Rex, na sobreloja de um cinema na rua Corrientes, onde passava as tardes a jogar xadrez e, aos poucos, foi reunindo à sua volta “um grupo de iniciados e adeptos, entre eles o poeta Carlos Mastronardi e o grande Virgilio Piñera”. Foi ali, assistido por esta sua corte de radiosos marginais, que Gombrowicz tomou a seu cargo traduzir Ferdydurke para espanhol, e depois de fazer uma primeira versão do texto vertendo o que sabia e podia, levou-a dactilografada ao café Rex, “onde os meus amigos argentinos trabalharam comigo o texto, frase a frase, procurando as palavras certas, batalhando contra a sintaxe, as neoplasias e o espírito da língua”. A tradução viria a ser considerada um feito magnífico, mas, apesar disso, quando foi publicada em 1947, em Buenos Aires, foi ignorada nos círculos literários. Piglia adianta que não era invulgar, nessa época, ouvir Gombrowicz reclamar para si uma posição na hierarquia literária que não ficava abaixo da de Kafka, o que só ajudava a que o tomassem como um pomposo arrogante. Depois, tinha a mania de se dirigir aos outros desde uma superioridade que já lhe estava no sangue, dizendo ser um conde, e que, vivendo embora na indigência, provinha de uma família aristocrática. Jorge Luis Borges ter-se-á cruzado uma única vez com ele, num jantar em casa de Silvina Ocampo e Bioy Casares, e embora os relatos sobre o que se passou nesse encontro diferissem segundo a fonte, a maioria dos presentes concordava que foi uma noite que, apesar de atrair tantas especulações, não deixou nada digno de ser recontado. Mas Borges não terá ficado muito impressionado com a figura, e aplicou-lhe aquele verniz verrinoso que reservava para quem lhe inspirava pouca confiança, atravessando as suas asas com o alfinete da sua malícia sem lhe dar mais destaque do que a uma vulgar traça no vasto catálogo dos escritores com quem se cruzou: “Vivia muito modestamente e precisava de partilhar o quarto, um sótão, com outras três pessoas; todos dividiam entre si a limpeza do cubículo. Ele convenceu os outros de que era um conde e recorreu ao seguinte argumento: nós, condes, somos muito sujos. Com este artificio, conseguiu que os outros assumissem a sua parte na limpeza.”

Esta forma de ficção que, mesmo quando exalta, acaba por reduzir qualquer escritor a uma caricatura, funciona, hoje, melhor do que nunca, quando a própria literatura cede a um regime de folhetim, e em vez de aprofundar seja o que for, se fica por alusões, caretas, piadinhas e piruetas, e com isso prossegue com a conversa fiada, um ruminar da comida da véspera, que dá palha aos tolos, impedindo que nasça, no seu seio, algo de inconveniente. Era essa a tese de Gombrowicz, que entendia que estava a dar-se “mais uma sujeição da arte à sociedade”, e que a literatura tinha sido capturada por tudo aquilo que vai sendo escrito nos jornais e nas revistas, num registo em que “já nem sequer reina o antigo lugar-comum pomposo, mas a anedota”. E acrescentava: “Somos um grupo de turistas que troca piadas e ditos populares.”

Para ele, a crítica tinha-se tornado incapaz de verificar a verdadeira qualidade das obras, desejosa de criar ela mesma os acontecimentos, lançara-se mecanicamente numa corrida em busca de valores – e, claro, com boa vontade, não foi difícil encontrá-los, como ele vinca, pois, “em última análise, até a mediocridade expressa algo”. Assim, esta deixa de vigiar atentamente para orquestrar a coisa, registando “variados sabores e pequenos paladares”. “Uma obra era neste ou naquele aspecto simplesmente magistral, outra obra era em fragmentos quase brilhante, esta e aquela página eram bastante estrangeiras, universais, mundiais”… E depois, “os próprios escritores também não sabiam por que razão certas vezes criavam algo melhor – acontecia-lhes aquilo que diz o provérbio polaco: ‘um galinha cega apanhou um grão’. Era uma literatura de galinhas cegas”, frisa Gombrowicz, adiantando que “a nossa literatura daquele período transformou-se em jornalismo literário”. “Parecia que as revistas literárias deveriam estar ao serviço dos escritores e das suas obras; mas a verdade é que os escritores existiam para alimentar o semanário, a única literatura verdadeira daquela época (…) As revistas semanais transformaram a arte em feira e espectáculo. Quem é ‘o maior’? Quem promover? Quem afundar? Quem coroar? Poetas e escritores galopavam como cavalos de corrida e as grandes massas rugiam desportivamente: ‘Leva-o, leva-o!’”

E se, nestas circunstâncias, os escritores até poderiam passar pelas vítimas, Gombrowicz entende que foram cúmplices nesta subjugação: “Os artistas sentiam-se como peixes fora de água, ou melhor, sentiam-se até como um peixe na frigideira. Eles bem viam que algo estava errado com eles, que as coisas não eram como deviam ser e que eram usados de maneira imprevista; contudo, e isto é significativo, nenhum deles tentou fazer face ao que estava a acontecer. Pelo contrário, esforçavam-se com toda a discrição por nada ver.” Mais à frente, recorda esses anos de juventude na Polónia, e a sensação que tinha de estar “dentro de algo que quer existir mas não pode, que quer exprimir-se mas não consegue… Que pesadelo! Quanta frustração em meu redor! Quando afinal de contas o material humano era bom e certamente não era pior do que qualquer outro material europeu. Eles pareciam até criaturas dotadas, porém, ligadas à mediocridade e inibidas por algo impessoal, superior, interpessoal e colectivo, vindo do meio circundante.”

Esta descrição apanha-nos em cheio, e retrata também aquilo que ocorreu até aos primeiros anos deste século, quando as próprias revistas e semanários que gastavam algum do seu espaço com a vida literária acabaram por sufocar, deixando-nos entregues a uma geral indigência que despeja o vazio sobre o vácuo, embora tente ainda coroar este ou aquele talento por altura dos sistemáticos balanços. E aqui, como sublinha Gombrowicz, “talento” é só mais outra palavra vazia, uma vez que, “para escrever, tem de se ser alguém, esforçar-se muito, até mesmo lutar contra si próprio. É uma questão de desenvolvimento…”

Noutra altura, diz-nos que “só crianças ou tiazinhas bondosas (cuja inocência de solteironas é, infelizmente, um factor importante na nossa opinião pública) podem imaginar que um escritor seja um ser calmamente sublimado, um espírito elevado, que ensina das alturas do seu ‘talento’ o que é Bom e Belo”. E logo assegura que não, que “o escritor não se senta no topo, mas do fundo trepa para cima”. E a sugestão que lança é que, perante estas circunstâncias, “a história da literatura deve ser escrita ao contrário, ou seja, como a história daquilo que não foi realizado”. Acrescenta que “é melhor estarmos orgulhosos e sermos firmes na rejeição de tudo aquilo que realmente não está ao nosso nível”. E é isto, em certo sentido, a tarefa de que se vai ocupando em muitas destas páginas. No fundo, o grande combate que Gombrowicz trava é com a forma, e tanto na Argentina como já antes o fizera na Polónia, insistia com os escritores que abandonassem os planos limitados, uma vez que seria sempre preferível “uma gafe criativa, um equívoco, até um desleixo cheios de energia, embriagados da poesia que o país respirava e ao lado do qual eles passavam com o nariz enfiado nos livros”.

“Mais de uma vez, tentei dizê-lo a este ou àquele argentino tal como, aliás, não raro o dizia aos Polacos: ‘Pára por um momento de escrever poemas, de pintar quadros, de falar sobre surrealismo, antes de mais pensa se o que fazes não te enfastia, verifica se tudo isso é assim tão importante para ti, pensa se não serás mais autêntico, livre e criativo desvalorizando os deuses a quem dizes as tuas preces. Pára com tudo isso por um momento a fim de reflectires sobre o teu lugar no mundo e na cultura e escolheres os teus meios e objectivos.’”

Foi precisamente isto aquilo que Gombrowicz fez, escudando-se da imobilidade sonolenta que via tomar conta de tudo, guindado muitas vezes pela sua disposição para representar o que se opõe à plenitude, representando em seu lugar “a insuficiência, a inferioridade, a menoridade, a imaturidade que são características daquilo que ainda é jovem, isto é vivo”. Isto porque, em seu entender, a juventude é um valor em si, actuando como “destruidora de todos os outros valores de que não necessita, porque ela é auto-suficiente”.

Com a sua fome de realidade, na primeira entrada de 1955, ao fim de uma década e meia, Gombrowicz revê o golpe do destino que o apanhou na Argentina numa altura em que, subitamente, “as fronteiras entre os países e as tábuas da lei foram destruídas”, ficando ele à mercê de forças cegas, encontrando-se num país desconhecido, “completamente sozinho, isolado, perdido, falido, anónimo”. Recorda a mistura de sensações que, então, tomaram conta dele, ao mesmo tempo excitado e assustado, mas “algo dentro de mim fez-me saudar com uma emoção apaixonada o golpe que me tinha destruído e tirado da ordem em que até então vivera”.

De resto, esta capacidade de acatar os ímpetos mais devastadores do acaso integra-os ele como um programa literário e o conselho que continuamente dava a si mesmo e a quem mais o quisesse ouvir era: “Não te deixes subornar com simpatia! Não te deixes derreter com vagos sentimentalismos, nem com o doce entendimento com as massas, nas quais tanta literatura polaca se afundou. Sê sempre um estranho! Sê relutante, desconfiado, sóbrio, perspicaz e exótico. Espera aí, rapaz! Não te deixes domar e assimilar pelos teus! O teu lugar não é entre eles, mas fora deles; tu és como uma corda, que as crianças chamam de corda de saltar – atira-se de trás para a frente e salta-se sobre ela.”

Em grande medida, este Diário é o esforço de um escritor para soprar o vento necessário e encher as suas próprias velas, e que se alimenta de todas as suas limitações para fazer crescer a dimensão dos pulmões, dirigindo-se a um leitor que, pelo simples facto de estar a ler estas páginas, e isto seja em que época for, produz nele esse encorajamento, esse esforço infatigável que faz com que esta obra, como só um punhado dos grandes romances do século passado, nos pareça uma aventura em aberto, um incitamento que continua a produzir efeitos: “Não exijo mais nada de ti – apenas aquela centelha de rebelião que liberta a tua própria realidade (…) deixa que a tua situação dite o teu estilo. Não se trata de saberes o que queres. Basta que saibas o que não queres. O resto resolver-se-á por si só. Vira as costas à beleza que te é inacessível”.

Isto é o oposto da resignação, é a capacidade de fazer trabalhar a seu favor as limitações a que parecia estar sujeito, não abrindo mão disso precisamente que o orienta para a originalidade que só ele pode alcançar. E reconhecendo, contudo, “a pressão colossal a que hoje estamos sujeitos por todos os lados – para renunciar à nossa própria existência –, [e que] como qualquer postulado que não pode ser realizado, conduz tão-só à distorção e falsificação da vida”. Num tom bem mais ansioso e angustiado do que é habitual nos grandes autores, aqui, como numas cartas dirigidas a um jovem poeta (ou escritor), que era antes de qualquer outro ele mesmo, Gombrowicz não cessa de se esporear: “Devemos realizar-nos até ao fim, completar-nos de A a Z, porque só os fenómenos capazes de uma vida implacável têm o direito de existir.”

Em vez dessa maioria que nos cerca com a sua literatura que não passa de um decálogo de bons sentimentos, e que é exaltada como suplemento da existência e como decoração, ele pergunta: “Ainda não estais enojados deste coaxar de rãs, vindo das águas paradas do vosso lago?” E lança-se num riso diabólico sobre tudo isto, esclarecendo que, hoje, o nosso riso “já não pode ser espontâneo ou automático – tem de ser um riso premeditado, um humor aplicado com frieza e seriedade, tem de ser a aplicação mais séria do riso à nossa tragédia”. Mas ressalva ainda que “este riso, ditado por terríveis necessidades, deve abarcar não só o mundo dos inimigos, mas acima de tudo nós mesmos e aquilo que temos de mais caro”. Por outro lado, e tendo em conta as humilhações a que foi sujeito uma e outra vez, Gombrowicz sabia que “se queria ter alguma importância no mundo da cultura, tinha de arrasar o zodíaco dos condes e dos duques no meu firmamento”. E aqui, para não defraudar inteiramente as expectativas dos leitores, para rematar este artigo de jornal, convém lançar mão de uma dessas anedotas ou caretas que sempre caem bem nestas ocasiões. Porque Gombrowicz acabaria por regressar à Europa, e acabaria por viver os últimos anos de vida como escritor consagrado, mas se, em Buenos Aires, ele mergulhou na mais profunda miséria, descobriu ali que se há algum escândalo na literatura é “não termos ainda uma língua para expressar a nossa ignorância”. E Ricardo Piglia diz que foi isso o que o castelhano lhe deu, essa linguagem da despossessão, essa língua que aprendeu “nos bares do porto, com os rapazes, com os operários, com os marinheiros que frequentava: uma língua próxima da circulação sexual e do intercâmbio com desconhecidos”. O polaco viu-se forçado, naqueles anos de exílio, a atingir o âmago da alma, a esgotar o derradeiro significado da luta, da dor, do desespero, e foi assim que se livrou daquele que acaba por ser o principal receio de todos os escritores: “Temos medo da nossa própria voz”, reconhece ele no Diário. E Piglia defende que a Argentina, com todas as desventuras e humilhações que nela foi encontrar, acabou por forçar Gombrowicz a realizar-se até ao fim, a exprimir uma vida implacável. “A pobreza da língua”, diz Piglia, “replica a falta de dinheiro, a precariedade em que vive. O conde como mendigo tem uma relação simétrica com o grande estilista que não sabe falar. A despossessão como condição da grande literatura. A opção Beckett, Céline, Néstor Sánchez; o escritor como clochard, o escritor à margem.” E é assim que, em 1963, quando se preparava para deixar por fim aquele país e regressar à Polónia, um quarto de século depois do esperado, diante de um grupo de amigos e de admiradores que vieram despedir-se dele no porto de Buenos Aires, sabendo que o viam pela última vez, o ambiente era de desolação. E Gombrowicz esperou até ao fim, e quando o navio a vapor em que partia largou amarras e começou a afastar-se, gritou o seu último conselho àqueles que lhe acenavam nas docas: “Matem o Borges!”