Há um humor feito de destroços, uma resiliência da vida magoada que se agarra aos aspetos leves, que vêm à superfície, balbuciam à tona os seus disparates quando, mais abaixo, já não há grande margem para ilusões. Muitas vezes a parvoíce cultural é um enredo de sobreviventes, um modo de esquecer outras coisas, fazer rir porque de outro modo se perderia o rosto. Há aqueles para quem chorar se tornou algo simplesmente fútil. Ivan Reitman, produtor e realizador de uma série de comédias que alcançaram um enorme sucesso de bilheteira a partir dos anos 1970, entre eles Os Caça-Fantasmas e A República dos Cucos, é um bom exemplo de um desses filhos da devastação europeia que soube trazer para o Novo Mundo esse sentido de resiliência, e com a sua leveza característica gravou nos ossos da cultura de várias gerações esse gozo por tropelias e travessuras, esse desejo de escapar e livrar-se de um mundo que nos esmaga. Reitman morreu de forma inesperada, durante o sono, no sábado, na sua residência em Montecito, Califórnia. Tinha 75 anos.
Com uma carreira que se estendeu ao longo de mais de meio século, mantendo-se ativo até ao fim, o seu nome foi sempre uma garantia para os estúdios de que veriam os seus lucros multiplicados, e até ao final do século XX não havia ninguém na comédia que tivesse pisado tantas vezes o nervo do humor sem o deixar entorpecido, conseguindo aliar as receitas a um conjunto de filmes que se tornaram icónicos nessa capacidade de fazer da sala de cinema um laboratório para a explosão das gargalhadas, contribuindo para a ascensão meteórica de atores como Bill Murray e Arnold Schwarzenegger, tendo tido a audácia de perceber o lado hílare de o colocar como um polícia infiltrado como educador num jardim-escola, em Um Polícia no Jardim-Escola em 1990. A par da matreirice, o seu grande talento foi reconhecer esses ângulos insólitos que se tornariam irresistíveis para as audiências, tendo sido também da sua cabeça que partiu a ideia de juntar o antigo Mr. Universe a Danny DeVito como gémeos separados à nascença no filme de 1988, Gémeos. Foi também Reitman quem chamou Murray, Harold Raimis, John Candy e companhia para formarem O Pelotão Chanfrado, em 1981, uma desabusada sátira com as Forças Armadas norte-americanas a invadirem a Checoslováquia. E depois, é claro, não se pode pensar no atual regime dos filmes de super-heróis que conseguem armadilhar doses absurdas de efeitos especiais com recurso a um humor pastilha elástica, uma capacidade dos personagens gozarem consigo mesmos, trocar o típico herói sisudo pelos bonzos bem-dispostos, cheios de manha, e que sabem desinchar essas fitas onde está sempre em causa salvar o mundo com altas doses de parvoíce. Foi Reitman quem teve a ideia de pôr um bando de espíritos do mal com pinta de bonecos a encher a cidade de Nova Iorque de uma nhanha verde no grande blockbuster de 1984, Os Caça-Fantasmas.
Se as macacadas e diabruras que congeminavam raramente levaram a crítica a enaltecer os seus filmes, o certo é que na viragem do milénio Reitman era o único produtor e realizador que se podia gabar de ter superado a marca dos dois mil milhões de dólares nas bilheteiras, o que acabou por cimentar a sua reputação como um tipo que soube sintonizar a frequência de uma juventude que desdenhava os antigos valores e se ria nos personagens que se estavam nas tintas para a etiqueta social e o horizonte convencional da geração dos seus pais.
Apesar dessa reputação, o estatuto de “autor” foi sempre algo que escapou a Reitman, e ele ressentia-se disso. Embora não fosse habitual fazer declarações em tom de lamúria, foi ele quem viu o potencial numa série de atores que se tornaram populares na década de 1970 em programas de comédia como o Saturday Night Live, entre eles Murray e Dan Aykroyd, que viriam a construir no cinema carreiras marcantes, com a sua sensibilidade enquanto humoristas a elevar a apreciação das audiências e também da crítica em relação ao cinema de comédia. Esse instinto que fez de Reitman, bem antes de Judd Apatow, um líder da matilha, levou a que ficasse mais conhecido como aquele que embrulha a coisa e lhe põe o laço criando um pacote aliciante do que enquanto cineasta.
O certo é que, mesmo no papel de realizador, foi Reitman um dos primeiros a comandar orçamentos milionários e a permitir que os actores tivessem a confiança para disparatar e levar a improvisação a limites até ali inéditos no cinema. Essa forma pela qual ficou conhecido, e que permitiria depois a ascensão de actores explosivos como Jim Carrey ou Will Ferrell, foi vista pela crítica como uma linha um tanto frouxa ou até preguiçosa de se fazer cinema. Por outro lado, os atores sempre o defenderam, notando que Reitman sempre foi de ideias claras, e sabia caminhar sofre essa ténue fronteira que escapa a tantos realizadores que gostam de controlar todos os aspetos de um filme e aqueles outros que estão lá apenas como babysitters para tentar controlar minimamente os caprichos dos seus atores. O que Reitman soube fazer foi trazer o melhor do mundo da comédia de improvisação e aproveitar esses momentos irrepetíveis em que a comédia é uma forma de jazz.
Numa entrevista que deu na década de 1990 ao The New York Times, Reitman insistiu que a sua abordagem era “bastante controlada”. “Há uma altura em que os actores podem dizer e propor tudo o que quiserem, e depois, a parte que tem graça para mim enquanto realizador é pegar nesse trabalho ainda cru e encontrar uma estrutura e tentar dar-lhe a volta de forma a que o trabalho com cada uma das personagens e o enredo se combinem, por isso trata-se de uma forma de composição em que tanto a orquestra como a música, tudo está em permanente evolução. É uma forma de ser também guionista do filme enquanto este está a ser filmado. Mas é claro que esta abordagem não permite esse grau de controlo obsessivo nem um acabamento final tão polido e que acaba por conduzir ao grande reconhecimento de que gozam os criadores desses filmes”.
Acontece, como notou um crítico do Times, que um dos motivos porque a força criativa de Reitman nem sempre foi reconhecida pode relacionar-se com o facto de as suas produções parecerem emergir da própria cultura contemporânea, esteja esta relacionada com os acampamentos de Verão, a vida universitária ou militar e, em geral, o quotidiano da classe média e dos trabalhadores de colarinho branco. O facto é que ele soube como ninguém balançar o tom cínico e os momentos de honestidade e até aqueles de comoção de modo a celebrar o género de rebeldia desenfreada que soube corroer o excesso regimental da vida norte-americana quando as suas instituições controlavam a narrativa sobre o que era ser americano e defender patrioticamente os interesses do país.
Harold Raimis, que além de integrar o elenco de O Pelotão Chanfrado e Os Caça-Fantasmas, também teve uma mão na escrita dos guiões de ambos, disse que a sensibilidade nesses filmes estava impregnada do tipo de niilismo que emergiu ainda na década de 1960. “Nós crescemos num período marcado pela alienação e pelo absurdo. Quando Kennedy foi abatido, isso deitou por terra qualquer optimismo que ainda nos restasse. Desenvolvemo-nos com uma atitude bastante cínica, a qual se expressava por meio dessa sátira anti-sistema”.
Filho de um casal de judeus checoslovacos que sobreviveram à perseguição nazi antes de escaparem ao sufoco imposto pelos comunistas em 1950, quando tinha 4 anos, Ivan fez a sua primeira ameaça no que viria a ser uma prolífica carreira no entretenimento, e durante o período de seis meses que passou numa quinta de um tio nos arredores de Paris, ele que nem sabia uma palavra de francês, reuniu as crianças locais no celeiro para montar um circo em miniatura com panelas e frigideiras. O pai tinha sido membro da resistência durante a II Guerra, tendo posto em risco a sua fortuna, pois detinha a maior fábrica de vinagre da Checoslováquia. A mãe tinha escapado dos campos de concentração, e juntos decidiram deixar a Europa quando o regime comunista começou a prender os empresários. Antes de chegarem a Paris, passaram por Viena, na Áustria, e Ivan foi escondido num porão secreto, tendo sido trancado com pregos numa barcaça. Os pais terão recorrido a soporíferos para o manter em silêncio.
“Chegámos cá sem um tostão”, contou mais tarde, numa entrevista à CBC, quando, em 2007, se preparava para ver o seu nome brilhar no Passeio da Fama no Canadá. Depois de cruzarem o Atlântico, os Reitman reuniram-se com um familiar em Toronto, e o pai de Ivan acabou por criar uma empresa de limpeza a seco com grande sucesso. Ivan atribuía à forma como viu os seus pais batalharem num país onde chegaram sem nem conhecerem a língua a sua atitude indómita. Ele mesmo não demoraria a criar um pequeno teatro de marionetas e, mais tarde, enveredou pela música folk e pelos estudos na Universidade McMaster, onde começou a produzir e a realizar curtas-metragens. Em breve, mudar-se-ia para os EUA onde começou a participar em produções fora da Broadway, e antes de se tornar um filme A República dos Cucos foi a peça onde começou por forjar uma parceria inicial com Ramis, Murray e John Belushi antes ainda de estes se tornarem estrelas no Saturday Night Live. O resto, é a nossa infância nas salas de cinema a rir e a estender os limites do recreio, para sempre.