Na moção que vai ser discutida esta terça-feira no Parlamento Europeu para reforçar o combate ao cancro, é apontado o peso que justifica a recomendação de que as bebidas alcoólicas passem a ter avisos de saúde pública como aconteceu com o tabaco.
É lembrado que o etanol e o etanal, produto da metabolização do etanol, já foram classificados como carcinogénicos pela Agência Internacional de Investigação sobre o Cancro (IARC) e que, a nível europeu, se estima que atualmente 10% de todos os casos de cancro nos homens e 3% de todos os casos de cancro nas mulheres são atribuíveis ao consumo de álcool, sendo o consumo de álcool um fator de risco para diferentes cancros, da cavidade oral, faringe, laringe, esófago, fígado e cancro da mama.
Cita-se também uma análise global publicada em 2018 na revista Lancet, que concluiu que entre 1990 e 2016, em 195 países, cerca de 3 milhões de mortes a nível global foram atribuídas ao consumo de álcool, incluindo 12% das mortes prematuras entre os 15 e os 49 anos. Um trabalho, lembra a comissão que elaborou a moção, que foi destacado pela Organização Mundial de Saúde, concluindo que não existe um nível seguro de consumo de álcool. Motivos suficientes para colocar um rótulo nas bebidas alcoólicas?
O tema que hoje é discutido em plenário no Parlamento tem anos de discussão na comunidade médica, não sendo unânime. António Vaz Carneiro, médico e presidente do Instituto de Saúde Baseada em Evidência da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, considera uma decisão precipitada, sublinhando que havendo vantagens em dissuadir o consumo excessivo da população mais jovem, é preciso ter presente que todas as atividades na vida comportam risco e que percentagens relativas não exprimem o risco de uma atividade, neste caso da ingestão de álcool, numa população, o que considera ser “difícil” de medir por que existem fatores individuais associados.
“Dizer que uma percentagem de cancros é associada ao consumo de álcool não nos diz qual é o risco na população associado ao consumo de álcool e o que a evidência tem demonstrado no campo da nutrição é que os riscos são relativamente modestos”, sublinha o médico, acrescentando que, no caso do álcool, também já foram apontados benefícios, que defende que importa pesar e comunicar, mas sem uma medicalização excessiva.
“Devemos deixar as pessoas decidir sobre as suas vidas e não tentar medicalizar tudo”, defende o médico, questionando se nesta linha de pensamento não faria igualmente sentido colocar um aviso à porta do McDonalds ou da praia, alertando para o risco de cancro pela exposição solar.
“Espero que exista alguma calma. É essencial perceber como se avaliam os riscos, como se comunicam os riscos e que impactos têm e como as pessoas os conseguem avaliar, mas posições muito dramáticas acabam por poder tornar-se pouco credíveis”, alerta, lembrando ainda que no caso da doença oncológica, havendo um elevado número de cancros preveníveis, muitos resultarão de processos aleatórios, recordando uma investigação publicada em 2015 e revista em 2016 na revista Science que concluiu que 60% das mutações cancerígenas ocorrem no processo natural de divisão celular, não parecendo resultar de fatores ambientais ou hereditários.
No caso do tabaco, o médico sublinha que está demonstrado o risco não só no cancro mas em várias outras doenças, onde acaba por ser superior. “Sabemos que o risco de cancro é de 120 em 10 mil fumadores em 10 anos, mas ao mesmo tempo sabemos que 80% dos fumadores têm doença pulmonar obstrutiva e 30% doença coronária. São efeitos polimórficos que estão muito bem estudados, enquanto que em relação ao consumo de álcool não temos evidências de um risco tão elevado e beber moderadamente já foi associado a benefícios.”
Vaz Carneiro diz que esta discussão pode colocar-se um plano ainda mais abrangente, de como se encara a própria medicina, as suas capacidades e limitações: “Pode haver a ideia de que a medicina existe para nos transformar em seres virtuosos ou para nos salvar dos nossos pecados e são ideias diferentes, sendo certo que existem limitações”.
A discussão que agora chega ao plenário do Parlamento Europeu, com a proposta de tornar obrigatória a rotulagem dos ingredientes e conteúdo nutricional das bebidas alcoólicas este ano e avançar com avisos de saúde até ao final de 2023, não é de agora. No site do Parlameno Europeu, recorda-se como as primeiras tentativas de rotular bebidas alcoólicas surgiram nos anos 1970, não tendo passado.
A Comissão Europeia apresentou propostas a este respeito em 1982, 1992, em 1997 e em 2001. Há vários países onde é obrigatório apresentar ao consumidor uma lista dos ingredientes de algumas bebidas alcoólicas, como é o caso dos Estadoa Unidos, Brasil, Canadá, China, Indía, Nova Zelândia, Rússia e Suíça. No Canadá, há também agora propostas para que avancem os avisos de saúde pública. Há duas semanas, um estudo publicado na The Lancet Global Health concluiu que os argumentos da indústria de bebidas tem influenciado os países nesta matéria.
Uma análise às declarações de 212 países no âmbito da Organização Mundial de Comércio entre 1995 e 2019 em discussões sobre propostas de rotulagens de bebidas concluiu que mais de metade incluíam argumentos da indústria de bebidas alcoólicas, embora apenas 3% o referissem explicitamente. “No mínimo, os membros da Organização Mundial de Comércio precisam de ser mais transparentes quando representam os interesses da indústria do álcool em reuniões de políticas”, defendeu Pepita Barlow, da London School of Economics, uma das autoras do estudo.
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