Invadir ou não invadir, eis a questão de Putin


As exigências russas devem ser analisadas sobre um longo historial de declarações de Vladimir Putin. Em perspetiva, as suas ameaças não devem ser consideradas vãs.


Facto incontroverso, a Ucrânia está visceralmente ligada à Rússia pela História dos últimos séculos. Não menos verdadeiro, no entanto, os seus anos de independência caminham já, desde dezembro de 1991, para quase um terço de século. 

Foi marcante o ano de 1654, quando Khmelnytsky, o chefe militar dos Cossacos, declarou a sua vassalagem ao Czar Alexei, o segundo na linha dos Romanov e pai de Pedro, o Grande. Como seria expectável, esta suserania moscovita sobre os territórios ucranianos não foi aceite pela Polónia – potência que, por esses anos em associação com a vizinha Lituânia, desenvolvia uma política externa autónoma e, como é o seu timbre em tais circunstâncias, assertiva, também. Deu-se assim origem à chamada Guerra dos Treze Anos. O final da contenda deixou sob domínio polaco a margem ocidental do rio Dnieper e a margem oriental do mesmo rio sob domínio russo. Kiev, a mítica capital do antigo Rus, banhada pelo Dnieper, pendeu para a órbita moscovita. 

Caso este apontamento histórico soe caduco, alerte-se para como nos últimos dias a mesma linha do Dnieper ressurgiu nos debates sobre a crise russo-ucraniana, que está ao rubro, levantando-se a hipótese, entre outras, de aquela linha vir a marcar nas próximas semanas – ou dias – o limite para o avanço da provável incursão militar russa em território ucraniano. 

Com efeito, a memória de 1654 continua bem presente. Assim, o estatuto legal da Crimeia, tão controverso desde a anexação russa em 2014, enredou-se na transferência em 1954 – então mais administrativa do que política – daquela península da Rússia para a Ucrânia. Pretendia-se em 1954 com este ato comemorar os trezentos anos cumpridos sobre o preito de vassalagem de Khmelnytsky. Confirmando a persistência da memória histórica, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia assinalou no mês passado a efeméride num tweet, onde 18 de janeiro de 1654 foi referido como marcando a reunificação da Ucrânia com a Rússia. A palavra reunificação foi evocada nesse tweet em memória do ato fundador do Rus de Kiev, entidade que uniu os eslavos orientais –essencialmente aqueles que hoje designaríamos de russos, de ucranianos e de bielorrussos – a partir do longínquo século nono da nossa era e por alguns séculos até ao domínio mongol, que sobreveio nos anos de 1240.

Todas estas vicissitudes históricas, entre muitas outras, surgem extensivamente seriadas até ao tempo atual por Vladimir Putin num longo texto seu, publicado em inglês pela Presidência russa em 12 de julho último. O título é revelador: “On the Historical Unity of Russians and Ukranians”.

Numa recente edição (28.12.2021) dos Munk Debates, Dov S. Zakheim defendia a moção: “Seja resolvido, o Ocidente deve intervir militarmente para defender a Ucrânia da Rússia.” Anatol Lieven, um dos mais esclarecidos comentadores desta atualidade e que fazia o contraditório, opondo-se à moção, afirmou a dado momento (11m:30s): “Se alguém tivesse sugerido há trinta e cinco anos que a América deveria comprometer-se em disputas territoriais com a Ucrânia contra a Rússia incluindo, por implicação, a expulsão da frota russa de Sebastopol ter-nos-iam internado ambos em asilos de alienados.” Zakheim retorquiria, minutos mais tarde (20m:03s): “Bem, sabe, trinta anos é muito tempo.” E a verdade é que ambos têm razão.

Por um lado, deveria dar-nos vertigem constatar como uma superpotência nuclear, a Federação Russa, se sente de tal modo acossada, ao ver-se em risco de ser expulsa de um território que considera visceralmente pertencer ao seu espaço civilizacional. Quem poderia imaginar tal situação há trinta e cinco anos? Lieven tem razão.

Mas, por outro lado, há que reconhecer também que as três décadas passadas desde os fatídicos dias de dezembro de 1991 cobrem já uma nova geração de ucranianos, que poderão não ter as mesmas afinidades e lealdades dos seus familiares mais velhos. Neste particular, há que dar razão a Zakheim.

Por estes dias, aguardam-se as decisões de Vladimir Putin face à resposta escrita entregue em Moscovo pelo embaixador dos EUA (26.1.2022). Esta resposta, anonimamente facultada ao jornal El País (2.2.2022), vem pontuar semanas de intensa atividade diplomática e deixar clara a recusa norte-americana às principais exigências formuladas pela Rússia no projeto de acordo de segurança entregue por escrito aos EUA em 17 de dezembro passado.

Note-se que, na opinião do Kremlin, os EUA são o verdadeiro interlocutor da Rússia neste grave assunto. Utilizando figurativamente personagens retiradas do Livro da Selva de Kipling, Putin comprazeu-se (21.4.2021) a comparar os EUA ao tigre Shere Khan, acolitado pelo chacal Tabaqui, figurando este último pelos aliados europeus dos EUA, entenda-se. “Eles uivam para agradar ao seu senhor”, na opinião de Putin.

Interrogado sobre quais seriam as decisões de Putin, o Presidente Joseph Biden confessou-se limitado à ignorância daquele que tenta ler o futuro na disposição de folhas de chá no fundo de uma taça. Ora, o melhor sucedâneo para as folhas de chá evocadas por Biden será a interpretação das palavras pronunciadas ou escritas pelo próprio Putin desde a primavera do ano passado. E estas desenham um padrão claro, sobretudo quando enquadradas nas grandes manobras militares junto à fronteira russo-ucraniana, iniciadas em abril de 2021 e reeditadas em passo acelerado nos últimos meses. Fundamentalmente, as linhas vermelhas anunciadas por Putin em abril último, então indiscerníveis, ficaram agora bem delineadas. Surpreendentemente, dando-lhes quase um tom de ultimato, as reivindicações russas foram tornadas públicas. E não são menores: fecho definitivo do acesso à NATO para a Ucrânia, para a Geórgia e para outras repúblicas ex-soviéticas, à exceção das três bálticas, já incorporadas naquela organização em 2004; retorno, no que diz respeito às infraestruturas militares, ao status quo vigente em 1997, data do primeiro alargamento da NATO, ressalvadas aquelas que resultaram em 1990 da reunificação alemã.

Estas propostas, ou, talvez mais propriamente, estas exigências russas, devem ser analisadas sobre um longo historial de declarações de Putin feitas desde pelo menos 2007. Ficaram registados os semblantes atónitos de vários líderes ocidentais presentes em fevereiro desse ano na Conferência de Segurança em Munique ao ouvirem da boca de Putin a erupção súbita e ríspida do ressentimento russo, acumulado ao longo de quase duas décadas. Fundamental, também, para apreender o fundo do pensamento de Putin, leia-se o seu discurso, pronunciado em condições solenes e de reverberação histórica, quando da reunificação da Crimeia com a Federação Russa (18.3.2014). Note-se que este discurso rematava três semanas de ação política, mas também militar, na península da Crimeia. Já alguns anos antes, em agosto de 2008, uma ação militar efetiva tinha sido desencadeada por Putin (e por Medvedev, no cargo de Presidente havia então poucos meses) contra a Geórgia. E há que conceder a Vladimir Putin espírito sistemático na reconstituição do poderio do Estado Russo, tarefa a que se dedicou diligentemente ao longo de mais de duas décadas de atividade política, não descurando a correspondente capacidade militar. Recorde-se a ênfase colocada pelo Presidente russo na panóplia de novas armas estratégicas – algumas com cunho futurístico – apresentadas publicamente e de forma espetacular em ecrãs gigantes perante os seus deputados e senadores (1.3.2018). Significativamente, na ocasião Putin lançou de imediato uma queixa e uma interpelação acerada ao Ocidente: “Ninguém nos ouviu, ouçam-nos agora.”

Em perspetiva, as suas ameaças não devem ser consideradas vãs. Fundamentalmente, reconheçam-se os laivos de enfado, entrelaçado com o profundo ressentimento de sempre, nas palavras bem recentes (21.12.2021) de Putin perante os órgãos superiores do Ministério da Defesa Russo. Ali ficou explicitada a ameaça da aplicação de “medidas técnico-militares” caso as propostas escritas apresentadas aos EUA quatro dias antes não venham a ser aceites.
As negociações diplomáticas das últimas semanas têm sido inconclusivas, mas, como acima referido, deixaram já passada a escrito a recusa norte-americana às principais exigências russas. Este facto foi explicitamente reconhecido por Putin a 1 de fevereiro, abrindo assim a via para a aplicação das enigmáticas “medidas técnico-militares”, aludidas pelo mesmo Putin em 21 de dezembro último frente aos seus militares de topo. A essência e o alcance destas medidas permanecem uma incógnita, podendo ir desde a colocação de armas estratégicas russas a um tempo de impacto sobre o solo norte-americano inferior a dez minutos até à ocupação integral do território ucraniano, dando assim utilização às dezenas de brigadas motorizadas russas recentemente colocadas próximo das fronteiras ucranianas.

Há um quarto de século (5.2.1997), George Kennan, já então nonagenário e retirado de uma longa e influente carreira na diplomacia norte-americana, escreveu um artigo de opinião intitulado “A Fateful Error”. Este mesmo Kennan, endereçara em 1946 ao então secretário de Estado norte-americano James Byrnes o “Long Telegram”, memorando que entraria nos anais da Guerra Fria como tendo delineado a política do “containment” da União Soviética. Contudo, o teor do seu artigo de 1997 soava bem diferente: “Mas algo da maior importância está aqui em jogo. E talvez não seja demasiado tarde para avançar uma opinião que, segundo creio, não é unicamente minha mas é partilhada por outros com extensa e em muitos casos mais atualizada experiência em assuntos russos. A opinião, claramente expressa, é que o alargamento da NATO seria o erro mais fatídico da política americana em toda a era do Pós-Guerra Fria. É expectável que tal decisão inflame as tendências nacionalistas, anti-ocidentais e militaristas na opinião russa; que tenha um efeito adverso no desenvolvimento da democracia russa; que traga de volta a atmosfera de Guerra Fria às relações Leste-Oeste, e que propulse a política exterior russa em direções que não são decididamente do nosso agrado. […] Por que razão, com todas as auspiciosas possibilidades geradas pelo fim da Guerra Fria, deverão as relações Leste-Oeste centrar-se na questão de quem deverá ser o aliado de quem e, por implicação, contra quem num fantasioso, totalmente imprevisível e muito improvável conflito militar futuro?” E quem pode negar que o quarto de século entretanto decorrido confirmou o tom de Cassandra do alerta de Kennan? Cruelmente, só a alusão ao caráter fantasioso de um conflito militar futuro perdeu hoje validade.

Emmanuel Macron, no discurso pronunciado em Estrasburgo (22.1.2022) frente aos eurodeputados, referiu: “Face [ao] retorno do trágico na História, a Europa deve armar-se não por desafio às outras potências, não, mas para assegurar a sua independência neste mundo de violência, para não se sujeitar à escolha dos outros, para ser livre.”
Não será tarefa fácil. Mas, parafraseando Fernando Pessoa, citado precisamente por Macron nesse mesmo discurso como uma glória europeia: “tudo vale a pena…”. En passant, há que não merecer o epíteto do chacal Tabaqui de Kipling.

Invadir ou não invadir, eis a questão de Putin


As exigências russas devem ser analisadas sobre um longo historial de declarações de Vladimir Putin. Em perspetiva, as suas ameaças não devem ser consideradas vãs.


Facto incontroverso, a Ucrânia está visceralmente ligada à Rússia pela História dos últimos séculos. Não menos verdadeiro, no entanto, os seus anos de independência caminham já, desde dezembro de 1991, para quase um terço de século. 

Foi marcante o ano de 1654, quando Khmelnytsky, o chefe militar dos Cossacos, declarou a sua vassalagem ao Czar Alexei, o segundo na linha dos Romanov e pai de Pedro, o Grande. Como seria expectável, esta suserania moscovita sobre os territórios ucranianos não foi aceite pela Polónia – potência que, por esses anos em associação com a vizinha Lituânia, desenvolvia uma política externa autónoma e, como é o seu timbre em tais circunstâncias, assertiva, também. Deu-se assim origem à chamada Guerra dos Treze Anos. O final da contenda deixou sob domínio polaco a margem ocidental do rio Dnieper e a margem oriental do mesmo rio sob domínio russo. Kiev, a mítica capital do antigo Rus, banhada pelo Dnieper, pendeu para a órbita moscovita. 

Caso este apontamento histórico soe caduco, alerte-se para como nos últimos dias a mesma linha do Dnieper ressurgiu nos debates sobre a crise russo-ucraniana, que está ao rubro, levantando-se a hipótese, entre outras, de aquela linha vir a marcar nas próximas semanas – ou dias – o limite para o avanço da provável incursão militar russa em território ucraniano. 

Com efeito, a memória de 1654 continua bem presente. Assim, o estatuto legal da Crimeia, tão controverso desde a anexação russa em 2014, enredou-se na transferência em 1954 – então mais administrativa do que política – daquela península da Rússia para a Ucrânia. Pretendia-se em 1954 com este ato comemorar os trezentos anos cumpridos sobre o preito de vassalagem de Khmelnytsky. Confirmando a persistência da memória histórica, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia assinalou no mês passado a efeméride num tweet, onde 18 de janeiro de 1654 foi referido como marcando a reunificação da Ucrânia com a Rússia. A palavra reunificação foi evocada nesse tweet em memória do ato fundador do Rus de Kiev, entidade que uniu os eslavos orientais –essencialmente aqueles que hoje designaríamos de russos, de ucranianos e de bielorrussos – a partir do longínquo século nono da nossa era e por alguns séculos até ao domínio mongol, que sobreveio nos anos de 1240.

Todas estas vicissitudes históricas, entre muitas outras, surgem extensivamente seriadas até ao tempo atual por Vladimir Putin num longo texto seu, publicado em inglês pela Presidência russa em 12 de julho último. O título é revelador: “On the Historical Unity of Russians and Ukranians”.

Numa recente edição (28.12.2021) dos Munk Debates, Dov S. Zakheim defendia a moção: “Seja resolvido, o Ocidente deve intervir militarmente para defender a Ucrânia da Rússia.” Anatol Lieven, um dos mais esclarecidos comentadores desta atualidade e que fazia o contraditório, opondo-se à moção, afirmou a dado momento (11m:30s): “Se alguém tivesse sugerido há trinta e cinco anos que a América deveria comprometer-se em disputas territoriais com a Ucrânia contra a Rússia incluindo, por implicação, a expulsão da frota russa de Sebastopol ter-nos-iam internado ambos em asilos de alienados.” Zakheim retorquiria, minutos mais tarde (20m:03s): “Bem, sabe, trinta anos é muito tempo.” E a verdade é que ambos têm razão.

Por um lado, deveria dar-nos vertigem constatar como uma superpotência nuclear, a Federação Russa, se sente de tal modo acossada, ao ver-se em risco de ser expulsa de um território que considera visceralmente pertencer ao seu espaço civilizacional. Quem poderia imaginar tal situação há trinta e cinco anos? Lieven tem razão.

Mas, por outro lado, há que reconhecer também que as três décadas passadas desde os fatídicos dias de dezembro de 1991 cobrem já uma nova geração de ucranianos, que poderão não ter as mesmas afinidades e lealdades dos seus familiares mais velhos. Neste particular, há que dar razão a Zakheim.

Por estes dias, aguardam-se as decisões de Vladimir Putin face à resposta escrita entregue em Moscovo pelo embaixador dos EUA (26.1.2022). Esta resposta, anonimamente facultada ao jornal El País (2.2.2022), vem pontuar semanas de intensa atividade diplomática e deixar clara a recusa norte-americana às principais exigências formuladas pela Rússia no projeto de acordo de segurança entregue por escrito aos EUA em 17 de dezembro passado.

Note-se que, na opinião do Kremlin, os EUA são o verdadeiro interlocutor da Rússia neste grave assunto. Utilizando figurativamente personagens retiradas do Livro da Selva de Kipling, Putin comprazeu-se (21.4.2021) a comparar os EUA ao tigre Shere Khan, acolitado pelo chacal Tabaqui, figurando este último pelos aliados europeus dos EUA, entenda-se. “Eles uivam para agradar ao seu senhor”, na opinião de Putin.

Interrogado sobre quais seriam as decisões de Putin, o Presidente Joseph Biden confessou-se limitado à ignorância daquele que tenta ler o futuro na disposição de folhas de chá no fundo de uma taça. Ora, o melhor sucedâneo para as folhas de chá evocadas por Biden será a interpretação das palavras pronunciadas ou escritas pelo próprio Putin desde a primavera do ano passado. E estas desenham um padrão claro, sobretudo quando enquadradas nas grandes manobras militares junto à fronteira russo-ucraniana, iniciadas em abril de 2021 e reeditadas em passo acelerado nos últimos meses. Fundamentalmente, as linhas vermelhas anunciadas por Putin em abril último, então indiscerníveis, ficaram agora bem delineadas. Surpreendentemente, dando-lhes quase um tom de ultimato, as reivindicações russas foram tornadas públicas. E não são menores: fecho definitivo do acesso à NATO para a Ucrânia, para a Geórgia e para outras repúblicas ex-soviéticas, à exceção das três bálticas, já incorporadas naquela organização em 2004; retorno, no que diz respeito às infraestruturas militares, ao status quo vigente em 1997, data do primeiro alargamento da NATO, ressalvadas aquelas que resultaram em 1990 da reunificação alemã.

Estas propostas, ou, talvez mais propriamente, estas exigências russas, devem ser analisadas sobre um longo historial de declarações de Putin feitas desde pelo menos 2007. Ficaram registados os semblantes atónitos de vários líderes ocidentais presentes em fevereiro desse ano na Conferência de Segurança em Munique ao ouvirem da boca de Putin a erupção súbita e ríspida do ressentimento russo, acumulado ao longo de quase duas décadas. Fundamental, também, para apreender o fundo do pensamento de Putin, leia-se o seu discurso, pronunciado em condições solenes e de reverberação histórica, quando da reunificação da Crimeia com a Federação Russa (18.3.2014). Note-se que este discurso rematava três semanas de ação política, mas também militar, na península da Crimeia. Já alguns anos antes, em agosto de 2008, uma ação militar efetiva tinha sido desencadeada por Putin (e por Medvedev, no cargo de Presidente havia então poucos meses) contra a Geórgia. E há que conceder a Vladimir Putin espírito sistemático na reconstituição do poderio do Estado Russo, tarefa a que se dedicou diligentemente ao longo de mais de duas décadas de atividade política, não descurando a correspondente capacidade militar. Recorde-se a ênfase colocada pelo Presidente russo na panóplia de novas armas estratégicas – algumas com cunho futurístico – apresentadas publicamente e de forma espetacular em ecrãs gigantes perante os seus deputados e senadores (1.3.2018). Significativamente, na ocasião Putin lançou de imediato uma queixa e uma interpelação acerada ao Ocidente: “Ninguém nos ouviu, ouçam-nos agora.”

Em perspetiva, as suas ameaças não devem ser consideradas vãs. Fundamentalmente, reconheçam-se os laivos de enfado, entrelaçado com o profundo ressentimento de sempre, nas palavras bem recentes (21.12.2021) de Putin perante os órgãos superiores do Ministério da Defesa Russo. Ali ficou explicitada a ameaça da aplicação de “medidas técnico-militares” caso as propostas escritas apresentadas aos EUA quatro dias antes não venham a ser aceites.
As negociações diplomáticas das últimas semanas têm sido inconclusivas, mas, como acima referido, deixaram já passada a escrito a recusa norte-americana às principais exigências russas. Este facto foi explicitamente reconhecido por Putin a 1 de fevereiro, abrindo assim a via para a aplicação das enigmáticas “medidas técnico-militares”, aludidas pelo mesmo Putin em 21 de dezembro último frente aos seus militares de topo. A essência e o alcance destas medidas permanecem uma incógnita, podendo ir desde a colocação de armas estratégicas russas a um tempo de impacto sobre o solo norte-americano inferior a dez minutos até à ocupação integral do território ucraniano, dando assim utilização às dezenas de brigadas motorizadas russas recentemente colocadas próximo das fronteiras ucranianas.

Há um quarto de século (5.2.1997), George Kennan, já então nonagenário e retirado de uma longa e influente carreira na diplomacia norte-americana, escreveu um artigo de opinião intitulado “A Fateful Error”. Este mesmo Kennan, endereçara em 1946 ao então secretário de Estado norte-americano James Byrnes o “Long Telegram”, memorando que entraria nos anais da Guerra Fria como tendo delineado a política do “containment” da União Soviética. Contudo, o teor do seu artigo de 1997 soava bem diferente: “Mas algo da maior importância está aqui em jogo. E talvez não seja demasiado tarde para avançar uma opinião que, segundo creio, não é unicamente minha mas é partilhada por outros com extensa e em muitos casos mais atualizada experiência em assuntos russos. A opinião, claramente expressa, é que o alargamento da NATO seria o erro mais fatídico da política americana em toda a era do Pós-Guerra Fria. É expectável que tal decisão inflame as tendências nacionalistas, anti-ocidentais e militaristas na opinião russa; que tenha um efeito adverso no desenvolvimento da democracia russa; que traga de volta a atmosfera de Guerra Fria às relações Leste-Oeste, e que propulse a política exterior russa em direções que não são decididamente do nosso agrado. […] Por que razão, com todas as auspiciosas possibilidades geradas pelo fim da Guerra Fria, deverão as relações Leste-Oeste centrar-se na questão de quem deverá ser o aliado de quem e, por implicação, contra quem num fantasioso, totalmente imprevisível e muito improvável conflito militar futuro?” E quem pode negar que o quarto de século entretanto decorrido confirmou o tom de Cassandra do alerta de Kennan? Cruelmente, só a alusão ao caráter fantasioso de um conflito militar futuro perdeu hoje validade.

Emmanuel Macron, no discurso pronunciado em Estrasburgo (22.1.2022) frente aos eurodeputados, referiu: “Face [ao] retorno do trágico na História, a Europa deve armar-se não por desafio às outras potências, não, mas para assegurar a sua independência neste mundo de violência, para não se sujeitar à escolha dos outros, para ser livre.”
Não será tarefa fácil. Mas, parafraseando Fernando Pessoa, citado precisamente por Macron nesse mesmo discurso como uma glória europeia: “tudo vale a pena…”. En passant, há que não merecer o epíteto do chacal Tabaqui de Kipling.