Maioria absoluta para quê?


Muito doente estaria o PS, muito ingénuos seriam os portugueses e muito mal andaria Portugal, uma nação europeia com quase 48 anos de democracia e um Estado de Direito, se a expressão maioritária de um partido no Parlamento tivesse tradução numa forma de governo absoluto e poder arbitrário.


“Uma maioria absoluta não é poder absoluto.” A frase de António Costa é um dos soundbites da noite eleitoral, só capaz de rivalizar com outra tirada popular do primeiro-ministro, na primeira corrida a São Bento, em 2015. “Palavra dada é palavra honrada.“ 

A definição da maioria absoluta pela negativa, aquilo que não é em vez daquilo que deveria ser, diz muito da relação tempestuosa do Partido Socialista com a nova configuração parlamentar. Mas, em si mesma, a ideia é um truísmo. Muito doente estaria o PS, muito ingénuos seriam os portugueses e muito mal andaria Portugal, uma nação europeia com quase 48 anos de democracia e um Estado de Direito, se a expressão maioritária de um partido no Parlamento tivesse tradução numa forma de governo absoluto e poder arbitrário. 

Uma maioria funcional, um governo com vigor executivo, escrutinados e contrabalançados por poderes democráticos e instituições independentes é o basilar. A normalidade democrática. É o mínimo a que os portugueses têm direito nos próximos quatro anos. Todavia, o tempo extraordinário que estamos a viver exige da próxima legislatura desígnios com uma ambição e audácia muito para além da normalidade. Portugal tem de arrepiar caminho e fazer o que for preciso para crescer, criar riqueza e anular as desigualdades. Menos do que isto serão, para citar de novo o primeiro-ministro, ganhos “poucochinhos”. 

António Costa foi o grande vencedor das legislativas 2022. Tem uma ampla e inquestionada legitimidade política. Tem uma maioria estável no Parlamento, livre da chantagem dos antigos parceiros da frente de esquerda. Tem no Palácio de Belém uma parceria institucional à prova de bala. Tem um ambiente europeu favorável. Nos últimos vinte anos, este é único o Governo para quem as estrelas se alinharam. Cabe a António Costa estar à altura do destino. O próximo Governo tem todas as condições para fazer o que não foi capaz de fazer em seis anos de maioria esquerda; mudar o que cristalizou em seis anos de maioria de esquerda; quebrar o ciclo de mediocridade que nos últimos seis anos de maioria de esquerda atirou Portugal para a cauda da Europa e manteve quase 2.5 milhões de portugueses no limiar da pobreza. 

A pandemia destapou inúmeras disfunções institucionais no nosso país. Incapaz de se reformar por impulso próprio, antes dependendo sempre de empurrões externos, Portugal atingiu um estado de paralisia insustentável. Quando a justiça demora décadas a decidir e SNS tem filas de espera de anos, quando o sistema de ensino compara cada vez pior com os países desenvolvidos e os reguladores são colonizados por gente leal ao(s) partido(s), os portugueses questionam-se: estarão as instituições a cumprir a missão para a qual foram criadas?

Mais do que uma grande vitória no dia 30, os portugueses disseram, alto e bom som, que querem estabilidade e um governo forte que não empurre os problemas com a barriga. Se o PS continuar a fazer o que fez nos últimos seis anos, não passará de um gestor da decadência progressiva da nossa sociedade. 

Inverter o rumo é o mandato do PS. Para que a tal maioria absoluta não corresponda a um poder absoluto, mas sobretudo para que se abra um novo ciclo de crescimento sustentável no país, o PS tem de começar as reformas que deixou na gaveta. Com a descentralização à cabeça. 

Enquanto o PCP e o BE estiveram na esfera do Governo, a descentralização andou sempre manca. Com os comunistas a desaparecer do mapa autárquico, por onde os bloquistas nunca deixaram rasto, e ambos duramente penalizados pelos eleitores na AR, desapareceram as forças de bloqueio à descentralização. António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e a esmagadora maioria dos autarcas do PSD e do PS são favoráveis à descentralização – e até à regionalização. Este é um processo que não pode esperar porque dele depende uma nova organização do Estado para um novo tempo de renovada exigência sobre os serviços públicos.

O que a experiência da descentralização de competências para as autarquias nos mostra até agora, sobretudo nas áreas da Saúde e da Educação, é que o processo funciona, produz melhores resultados para os cidadãos e poupa recursos financeiros aos cofres do Estado. A pandemia reconfirmou o papel dos municípios como prestadores de serviços públicos de qualidade, como estado de confiança e como poder de proximidade. 

Em todo este processo, foram derrotadas as vozes do centralismo e os megafones das corporações, sempre prontos a bramir preconceitos contra os autarcas. A morte desse preconceito é visível, por exemplo, na atitude dos profissionais estratégicos do setor público – médicos, enfermeiros, professores – que nos últimos dois anos compreenderam que têm mais a ganhar vinculados ao estado local do que ao estado central, sem perderem prestigio ou regalias. E isto, também, porque as câmaras municipais são cada vez mais pequenos estados sociais locais, capazes de dar respostas de políticas públicas verdadeiramente transversais – para além de pagarem salários e darem condições de trabalho muito superiores, autarquias como Cascais ainda oferecem transporte público e estão a trabalhar em programas de habitação exclusivos, destinados a estes quadros do setor público, que vêm assim as suas carreiras valorizadas. Precisamos dos melhores a servir os portugueses na função pública. Isso implica uma nova mentalidade na gestão e na organização do trabalho, nas carreiras e nas componentes de qualidade de vida. Mudanças que as autarquias estão mais aptas a fazer do que o mastodôntico e inamovível Estado Central. 

Se queremos travar a degradação dos serviços públicos, como foi amplamente discutido em campanha, e se queremos relançar Portugal na senda do crescimento, podemos começar pelo princípio. E o princípio é o Governo olhar para a organização do Estado e reforma-la em todos os seus níveis, colocando as autarquias no centro do processo e as políticas descentralizadoras como filosofia dominante. 

António Costa não quererá ficar na história como o primeiro-ministro que geriu poder durante uma década. Poderá deixar uma marca impactante, positiva e duradoura na vida dos portugueses. Espero que assim seja. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira

Maioria absoluta para quê?


Muito doente estaria o PS, muito ingénuos seriam os portugueses e muito mal andaria Portugal, uma nação europeia com quase 48 anos de democracia e um Estado de Direito, se a expressão maioritária de um partido no Parlamento tivesse tradução numa forma de governo absoluto e poder arbitrário.


“Uma maioria absoluta não é poder absoluto.” A frase de António Costa é um dos soundbites da noite eleitoral, só capaz de rivalizar com outra tirada popular do primeiro-ministro, na primeira corrida a São Bento, em 2015. “Palavra dada é palavra honrada.“ 

A definição da maioria absoluta pela negativa, aquilo que não é em vez daquilo que deveria ser, diz muito da relação tempestuosa do Partido Socialista com a nova configuração parlamentar. Mas, em si mesma, a ideia é um truísmo. Muito doente estaria o PS, muito ingénuos seriam os portugueses e muito mal andaria Portugal, uma nação europeia com quase 48 anos de democracia e um Estado de Direito, se a expressão maioritária de um partido no Parlamento tivesse tradução numa forma de governo absoluto e poder arbitrário. 

Uma maioria funcional, um governo com vigor executivo, escrutinados e contrabalançados por poderes democráticos e instituições independentes é o basilar. A normalidade democrática. É o mínimo a que os portugueses têm direito nos próximos quatro anos. Todavia, o tempo extraordinário que estamos a viver exige da próxima legislatura desígnios com uma ambição e audácia muito para além da normalidade. Portugal tem de arrepiar caminho e fazer o que for preciso para crescer, criar riqueza e anular as desigualdades. Menos do que isto serão, para citar de novo o primeiro-ministro, ganhos “poucochinhos”. 

António Costa foi o grande vencedor das legislativas 2022. Tem uma ampla e inquestionada legitimidade política. Tem uma maioria estável no Parlamento, livre da chantagem dos antigos parceiros da frente de esquerda. Tem no Palácio de Belém uma parceria institucional à prova de bala. Tem um ambiente europeu favorável. Nos últimos vinte anos, este é único o Governo para quem as estrelas se alinharam. Cabe a António Costa estar à altura do destino. O próximo Governo tem todas as condições para fazer o que não foi capaz de fazer em seis anos de maioria esquerda; mudar o que cristalizou em seis anos de maioria de esquerda; quebrar o ciclo de mediocridade que nos últimos seis anos de maioria de esquerda atirou Portugal para a cauda da Europa e manteve quase 2.5 milhões de portugueses no limiar da pobreza. 

A pandemia destapou inúmeras disfunções institucionais no nosso país. Incapaz de se reformar por impulso próprio, antes dependendo sempre de empurrões externos, Portugal atingiu um estado de paralisia insustentável. Quando a justiça demora décadas a decidir e SNS tem filas de espera de anos, quando o sistema de ensino compara cada vez pior com os países desenvolvidos e os reguladores são colonizados por gente leal ao(s) partido(s), os portugueses questionam-se: estarão as instituições a cumprir a missão para a qual foram criadas?

Mais do que uma grande vitória no dia 30, os portugueses disseram, alto e bom som, que querem estabilidade e um governo forte que não empurre os problemas com a barriga. Se o PS continuar a fazer o que fez nos últimos seis anos, não passará de um gestor da decadência progressiva da nossa sociedade. 

Inverter o rumo é o mandato do PS. Para que a tal maioria absoluta não corresponda a um poder absoluto, mas sobretudo para que se abra um novo ciclo de crescimento sustentável no país, o PS tem de começar as reformas que deixou na gaveta. Com a descentralização à cabeça. 

Enquanto o PCP e o BE estiveram na esfera do Governo, a descentralização andou sempre manca. Com os comunistas a desaparecer do mapa autárquico, por onde os bloquistas nunca deixaram rasto, e ambos duramente penalizados pelos eleitores na AR, desapareceram as forças de bloqueio à descentralização. António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e a esmagadora maioria dos autarcas do PSD e do PS são favoráveis à descentralização – e até à regionalização. Este é um processo que não pode esperar porque dele depende uma nova organização do Estado para um novo tempo de renovada exigência sobre os serviços públicos.

O que a experiência da descentralização de competências para as autarquias nos mostra até agora, sobretudo nas áreas da Saúde e da Educação, é que o processo funciona, produz melhores resultados para os cidadãos e poupa recursos financeiros aos cofres do Estado. A pandemia reconfirmou o papel dos municípios como prestadores de serviços públicos de qualidade, como estado de confiança e como poder de proximidade. 

Em todo este processo, foram derrotadas as vozes do centralismo e os megafones das corporações, sempre prontos a bramir preconceitos contra os autarcas. A morte desse preconceito é visível, por exemplo, na atitude dos profissionais estratégicos do setor público – médicos, enfermeiros, professores – que nos últimos dois anos compreenderam que têm mais a ganhar vinculados ao estado local do que ao estado central, sem perderem prestigio ou regalias. E isto, também, porque as câmaras municipais são cada vez mais pequenos estados sociais locais, capazes de dar respostas de políticas públicas verdadeiramente transversais – para além de pagarem salários e darem condições de trabalho muito superiores, autarquias como Cascais ainda oferecem transporte público e estão a trabalhar em programas de habitação exclusivos, destinados a estes quadros do setor público, que vêm assim as suas carreiras valorizadas. Precisamos dos melhores a servir os portugueses na função pública. Isso implica uma nova mentalidade na gestão e na organização do trabalho, nas carreiras e nas componentes de qualidade de vida. Mudanças que as autarquias estão mais aptas a fazer do que o mastodôntico e inamovível Estado Central. 

Se queremos travar a degradação dos serviços públicos, como foi amplamente discutido em campanha, e se queremos relançar Portugal na senda do crescimento, podemos começar pelo princípio. E o princípio é o Governo olhar para a organização do Estado e reforma-la em todos os seus níveis, colocando as autarquias no centro do processo e as políticas descentralizadoras como filosofia dominante. 

António Costa não quererá ficar na história como o primeiro-ministro que geriu poder durante uma década. Poderá deixar uma marca impactante, positiva e duradoura na vida dos portugueses. Espero que assim seja. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira