Lauro António. O homem que nasceu com o cinema no ADN

Lauro António. O homem que nasceu com o cinema no ADN


Durante 62 anos, Lauro António viajou pelo cinema, pela crítica, pela programação, organização de festivais, ensino, argumentos e realização, tendo também encenado para teatro. Morreu esta quinta-feira, aos 79 anos, vítima de um um ataque cardíaco fulminante.


Texto de Sara Porto e Fotografia de Nelson D'Aires/KameraPhoto

Dizia que lhe era muito difícil perceber de onde vinha a sua grande paixão pelo cinema. Se há pessoas que conseguem identificar filmes que tenham acendido essa “chama”, ou lembrar o momento exato onde “a luz se acendeu”, Lauro António, dizia que talvez a paixão tivesse nascido com ele e fizesse parte do seu ADN. A verdade é que pouco importa. Agora, dos ecrãs da sétima arte, o cineasta fará do céu tela, para continuar a manter vivo o seu legado de filmes que marcaram a geração dos anos 90.

O realizador das longas-metragens Manhã Submersa, de 1980 – filme estreado no Festival de Cannes – O Vestido Cor de Fogo, de 1986 ou Mãe Genoveva, de 1983, morreu ontem, aos 79 anos, na sua casa em Lisboa, indicou a Casa do Artista. “É com profunda tristeza que comunicamos o falecimento do nosso Presidente da Mesa da Assembleia Geral, Lauro António de Carvalho Torres Corado. Um nome e um percurso indissociáveis da História do Cinema em Portugal, a quem a Casa do Artista agradece a dedicação, a frescura de pensamento e o legado que deixa a esta Causa bem como a toda a comunidade artística”, lê-se no Instragram da Casa que tem como objetivo apoiar e dignificar aqueles que exercem ou tenham exercido funções relacionadas com a atividade do espetáculo.

A notícia foi depois confirmada nas redes sociais pelo filho, o realizador, produtor e encenador Frederico Corado, que adiantou à Lusa que o cineasta foi vítima de “um ataque cardíaco fulminante” de manhã em casa. O pai encontrava-se a preparar um novo ciclo de programação no espaço cultural Casa das Imagens, em Setúbal – que abriu o ano passado, do qual Lauro António era dirigente e que possui boa parte do acervo do cineasta, num total de cerca de 50 mil objetos, entre livros, filmes, fotografias, cartazes, documentos e objetos relacionados com cinema e imagem – dedicado ao antigo cinema Apolo 70, de Lisboa.

O precoce deslumbre pela arte Nascido em Lisboa, a 18 de agosto de 1942, Lauro António de Carvalho Torres Corado viveu a sua infância e boa parte da sua juventude em Portalegre, local que o aproximou da escrita e da cultura, particularmente do teatro e do cinema. Os seus pais sempre foram amantes da sétima arte, por isso, desde pequeno que ouvia falar do universo cinematográfico. O pai, pintor e professor, possuía uma grande coleção de livros sobre pintura, escultura e arquitetura. Numa entrevista, em 2008, ao canal de Youtube, Palavras sem Sentido, revelava que passava grande parte das suas tardes a folhear os livros e a ver as imagens. 

De regresso a Lisboa, em 1958, decidiu formar-se em História e ainda nos tempos da Faculdade de Letras, na década de 1960, estreou-se como crítico de cinema nos jornais República e Diário de Lisboa, na revista Plateia, que estenderia depois à revista Opção, ao Diário de Notícias, a A Capital e ao semanário Se7e, entre outras publicações.

Pouco tempo depois, tornou-se membro do Cine-Clube Universitário de Lisboa e conseguiu a posição de diretor de programação de salas de cinema (Estúdio Apolo 70 e Caleidoscópio, em Lisboa, ou Foco no Porto) e ainda de festivais de cinema por todo o país, como foi o caso do Festival Internacional de Lisboa ao Festroia, do Fórum Açoriano de Cinema ao Festival O Castelo em Imagens, passando pelo Festival internacional de Portalegre, FestiViana de Viana do Castelo e ainda FamaFest de Famalicão.

A ascensão no cinema Após ter experienciado a realização durante o seu serviço militar, em 1975 realizou o primeiro filme profissional Vamos ao Nimas, sobre os cinemas de Lisboa. Seguiu-se então a adaptação do romance Manhã Submersa, em 1980, de Virgílio Ferreira, a sua produção mais conhecida que acabou por transformá-lo num “nome seguro da geração dos anos 70”, considerou Jorge Leitão Ramos no Dicionário de Cinema Português. Além desta, entre a mais de uma dezena de filmes de Lauro António, destaca-se O Vestido Cor de Fogo, de José Régio, lançado cinco anos depois.

Um homem polivante Em televisão, dirigiu nove produções e acabou por colaborar com a RTP e a RDP, publicando ensaios, dirigindo festivais de cinema e lecionando em cursos sobre a arte. Nos anos 90, tornou-se também encenador na peça Encenação, no Teatro de Animação de Setúbal e o seu rosto tornou-se mais conhecido pelo programa televisivo da TVI, Lauro António apresenta – título que recuperou para um blogue onde fazia críticas sobre cinema. A mais recente publicação, data de 14 de janeiro e fala sobre o filme O poder do Cão, filme de Jane Campion baseado no romance homónimo do norte-americano Thomas Savage. O cineasta inspirou depois Herman José a criar a rábula Lauro Dérmio apresenta, no programa Herman Enciclopédia, no final dos anos 90. O artista criou a personagem Lauro Dérmio, inspirada em Lauro António e gravou um sketch que ficou conhecido como Não pirilamparás a mulher do próximo e que é lembrado pela incapacidade do humorista em terminar o vídeo sem se rir.
Deixa ainda um conjunto de 50 livros relacionados com a sétima arte, os mais conhecidos o Cinema e Censura em Portugal e O Cinema entre Nós.

Há quatro anos o cineasta recebeu o Prémio Carreira do Fantasporto, foi distinguido pela Academia Portuguesa de Cinema com um prémio Sophia de carreira e ainda condecorado pelo Presidente da República com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique. 

A Lembrança Marcelo Rebelo de Sousa, apresentou as condolências à família de Lauro António num comunicado em que destacou o contributo do realizador e crítico para a literacia cinematográfica. “Crítico, programador, divulgador, cineasta, Lauro António conta-se entre os poucos nomes que o grande público identificava com o cinema e a cinefilia”, disse.

Nas redes sociais, a atriz Sofia Alves lamentou a morte de Lauro António lembrando a importância no seu percurso: “Mais um grande amigo que partiu! Lauro António deixou-nos hoje. Obrigada por teres feito parte dos amigos especiais que tanto contribuíram para a minha formação profissional e pessoal. Até sempre meu amigo! Um beijo enorme a toda a família e amigos”, escreveu na sua página de Instagram.

Por sua vez, Herman José partilhou uma imagem dos dois, acompanhada com a descrição: “ Lauro António (1942-2022). Um amigo, um homem de bem, um apaixonado pelo cinema e pela vida. ‘Let’s look at a treila…’”. 

Em 2008, numa entrevista à RTP1, interrogado se se considerava mais cinéfilo ou bibliófilo, afirmava que o cinema e a literatura eram duas “fortíssimas paixões”, ao mesmo tempo que admitia ter pena de ter deixado de fumar. Rodeado de livros, revelou também que estes eram a única coisa em que gastava muito dinheiro. “O problema é o espaço e o tempo! Porque eu nem tenho tempo nem tenho espaço para guardar os livros. Acho que estou a entrar na loucura”, disse.