11 de janeiro de 1956. A pedra no sapato do regime que fez de pandita um insulto

11 de janeiro de 1956. A pedra no sapato do regime que fez de pandita um insulto


A grande receção popular dos indianos aos dirigentes da URSS que os visitavam, deixava a diplomacia portuguesa muito espinafrada. Única potência colonial que não entregara os seus territórios à União Indiana após a independência de 1947, Portugal sabia que o Império chegara ao fim.


Jawaharlal Nehru: eis um dos grandes pedregulhos que saltava de sapato para sapato das maiores figuras do regime da Outra Senhora. Recordo-me, já bem mais tarde do que os acontecimentos que aqui me trazem, já mesmo depois da anexação do Estado Português da Índia na União Indiana, em dezembro de 1961, como os nossos professores, nas aulas de Geografia da Escola Primária, continuarem a ensinar-nos os pormenores dos territórios de Goa, Damão e Diu, da Ilha de Anjediva e dos enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli como se ainda nos pertencessem.

Nehru surgia como a face do mal, de todo o mal. A tal ponto que pandita (uma expressão que significa sabedor ou professor) passou a ser um termo utilizado por nós, a torto e a direito, como um insulto em qualquer refrega de recreio. “És um estúpido!”, gritava um. E o outro, arrasando-o com sabedoria e chegando ao ponto mais baixo antes do palavrão: “E tu és um pandita!” Do pior.

Em janeiro de 1956, o governo português estava profundamente espinafrado pelo facto de a União Indiana – que, recorde-se, só obteve a independência do Império Britânico em 1947 – ter recebido um grupo de dirigentes da União Soviética. “Um atentado à neutralidade!”, exclamou-se. Como se ainda quiséssemos riscar alguma coisa no quadro a lousa onde as grandes potências traçavam as suas zonas de influência.

“Embora oficialmente neutra”, escrevia uma pena mais enfunada que vela de galeão, como a do nosso Raposão da malfadada Titi, inventado pelo divino Eça, “a Índia esquece essa neutralidade sempre que está em causa a ideologia anti-ocidental. Compreende-se, assim. que quisessem fazer ao russos uma receção calorosa, embora as manifestações populares excedessem o permitido pelas autoridades”. Ou seja, havia quem aqui, neste cantinho mal semeado, se preocupasse com o excesso de gente nas ruas de Nova Delhi e Calcutá. No mínimo, extraordinário!

Krutchev. O discurso de Krutchev provocou borborigmos no estômago do governo de António Oliveira Salazar. Então o indivíduo que mandava na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tinha o descaramento de falar ao povo indiano sabendo que uma parte (muito, muito pouquinha, por acaso) desse povo era formada por cidadãos portugueses? “Sabemos que as multidões são propensas ao calor das apoteoses”, continuava a salivar o nosso pandita, “sobretudo quando se trata de visitantes estrangeiros. Não ignoramos que o governo de Nova Delhi viu com apreensão as manifestações de euforia popular provocadas pelas palavras do próprio Krutchev cujas indiscrições e referências anti-ocidentais embaraçaram seriamente os dirigentes indianos. Esta reação coletiva indica que estamos perante um estado de espírito muito pouco tranquilizador. Nehru e os seus colaboradores não são comunistas. Sabem que uma revolução comunista arruinaria, irremediavelmente, as classes conservadoras nas quais se apoia o seu regime. Mas os atuais dirigentes indianos, depois da proclamação da independência, deixaram-se dominar por uma mística mais asiática do que indiana que os opõe ao Ocidente ao mesmo tempo que os leva a escutar as diatribes soviéticas contra a civilização ocidental com evidente e complacente aprazimento”.

Orava para ninguém, o irritado escritor desta prosa. Desde a meia-noite de 15 de Agosto de 1947 que tanto o Reino Unido como a França tinham entregue todos os territórios em seu poder no espaço da União Indiana nas mãos do novo país independente. Teimosamente, Portugal não aceitava largar a joia do Império, Goa sobretudo, teimando nos seus direitos sobre os lugares que ocupava. O cerco apertava-se. Com URSS ou sem ela.