Albert Camus. A monotonia das grandes desgraças

Albert Camus. A monotonia das grandes desgraças


Desaparecido há 62 anos, o escritor franco-argelino tornou-se um dos autores mais citados nos dois anos que levamos já desta difusa calamidade que é a pandemia, a qual, devido à sua duração, começa a tornar-se monótona. E esse poderá ser ainda o seu lado mais perverso: o de nos habituar à nossa própria desgraça.


Entre os autores que dispensariam efemérides para se fazerem merecedores de memória, Albert Camus ocupará decerto lugar primordial. Mesmo a vocação iminentemente política da sua obra não dispensa, de modo bastante mais premente do que em Sartre, uma dimensão helénica, total, que nos remete para uma conceção antropológica privilegiando opções éticas fundamentais e universalistas, não determinadas por quaisquer manifestações de sectarismo partidário, quaisquer contingências.

Camus afirmava que a consciência valia mais do que a sobrevivência. E Claudio Magris lembra-nos como ele “viveu a fundo o niilismo e o absurdo combatendo-os sem qualquer ilusão de alcançar uma verdade e encontrando um inexorável sentido e valor no viver; mesmo se Deus não existisse, nem por isso tudo seria permitido – diz ele contra o seu muito querido Dostoiévski. Esse humanismo radical não é de facto generosamente ingénuo, porque não se ilude com uma possível inocência”.

Durante a primeira vaga da pandemia de covid-19, a alegoria política de Camus – A Peste – foi alvo de inúmeras referências gerando-se um culto em regime de formigueiro à sua volta, tendo sido alvo de um tráfico de citações avulsas como linha para coser apressadamente profecias banalmente sombrias ou esperançosas. E, nesses primeiros meses de euforia pandémica, o livro subiu aos tops dos mais vendidos em alguns países, mas não foram muito penetrantes as leituras feitas à luz deste novo enquadramento crítico que temos vivido.

A certa altura, Camus escreve isto: “Nada é menos espetacular do que uma calamidade e, devido à sua duração, as grandes desgraças são monótonas.”

Agora que a pandemia em que estamos imersos há quase dois anos, com a campanha que uma vez mais nos submerge num ambiente de crise um tanto paranoica e que permite firmar um regime de exceção que se prolonga, o perigo para o qual nos adverte esta passagem é o de nos habituarmos à nossa desgraça, acabando incapazes de questionar ou resistir aos elementos mais degradantes dessas políticas que, de forma difusa, ao longo do tempo, vão conduzindo a uma ditadura da Salvação Pública.

Participe de uma era da suspeita, Camus reconhece uma sobredeterminação quer da subjetividade por sobre a realidade, ou por sobre a verdade (“todo o verdadeiro conhecimento é impossível. Só se podem enumerar as aparências”), quer ainda uma obstrução do próprio eu do indivíduo a si mesmo, não já entendido ao modo cartesiano, mas submerso numa cisão interior que limita o acesso à sua totalidade: “Porque, se tento agarrar este eu de que me apodero, se tento defini-lo e sintetizá-lo, ele não é mais do que uma água que escorre por entre os meus dedos. Até este coração que é o meu continuará sendo sempre, para mim, indefinível. Serei sempre um estranho diante de mim mesmo”.

A consciência da fragilidade do processo de conhecimento do eu na relação consigo mesmo estabelece a valorização de uma relação patológica com o mundo por sobre a vivência racional, do domínio da estética por sobre a ciência que totalizámos como técnica, a que associámos uma ética, tão díspar da que Camus nos propõe, que nos afirma que o indivíduo é tão melhor quanto melhor souber fazer, quão mais útil for nesse último espelho da nossa civilidade: a tabela de remunerações.

Em Camus, pelo contrário, regista-se um apelo à adesão imediata às coisas – “As doces curvas dessas colinas e a mão da tarde sobre este coração agitado ensinam-me muito mais. Compreendo que se posso, com a ciência, apoderar-me dos fenómenos e enumerá-los, não posso da mesma forma apreender o mundo” – face à impossibilidade de unificar o contraditório que mergulha o eu no absurdo. Se “essa nostalgia da unidade, esse apetite de absoluto ilustra o movimento essencial do drama humano”, é porque agudiza a evidência da contingência como condição limitante, despojando o Homem do valor da Verdade, lançando-o num vazio de sentido, bloqueando nele o que é próprio da sua índole finalística, teleológica.

A perceção angustiada da convivência no eu, a um tempo, do “seu desejo [que Camus afirma alucinado] de durar e do seu destino de morte”, conduz a uma espécie de não coincidência do Homem consigo mesmo. Assim, o indivíduo não pode evitar o estremecimento perante o silêncio dos espaços infinitos a que se referia Pascal, projetado como está pela “estúpida inverosimilhança” da nadificação do eu, para usar uma expressão de um autor português que tem muito de camusiano, Vergílio Ferreira.

Desprovido de um sentido dado a priori, o homem desamparado vê-se lançado no espaço amorfo de um mundo por esculpir. Num tempo em que a morte se existencialista, se faz interior à vida como observou Simmel, povoando o horizonte quotidiano do ser humano que se vê forçado a fazer um contínuo balanço desta, a existência é finalmente referida diretamente ao sentido, a um para quê que nos intervalos da vida (essa vida que tem um cheiro a bafio, de repetida, ou que se vê dominada pela doença, pela peste) nos angustia.

Num universo sem finalidade, em que a morte coincide absolutamente com um limite, a tentação do suicídio, que deu o tom para o século XX, alastra na ilusão de uma afirmação do domínio humano sobre os seus próprios limites. E no entanto o suicídio é recusado pelo autor franco-argelino. Contra ele, Camus reivindica “a única dignidade do homem: a rebelião tenaz contra a sua condição, a perseverança de um esforço tido por estéril”.

Procurando justificar a vida mediante a elaboração de um projeto ético, surge a necessidade de encontrar um valor, aquela verdade pela qual possa viver e morrer que Kierkegaard se exigia, para adequar a vida à morte. O valor que Camus elege é o da própria vida, do presente (“a verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente”) e da sua vivência em intensidade, pois “se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta”.

É ainda o valor do Homem, no âmbito do desafio ético que um Derrida propõe (“não há ética sem a presença do outro”), que em Camus encontra na revolta de pendor comunitário a sua derradeira frente. Porque “a revolta arranca o indivíduo à sua suposta solidão e fornece-lhe uma razão de agir”, o sofrimento que o absurdo suscitara no indivíduo toma então “consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. O mal que experimentava um só homem tornou-se peste coletiva”, transforma-se numa comunidade de condição que grita (mas quem escuta hoje esse grito?) com Karamazov: “se não forem salvos todos, de que serve a salvação de um só?”.

Não crente já em nenhuma espécie de salvação concreta, Camus articula ainda assim um discurso resistivo, na procura de descobrir no Homem “qualquer coisa com sentido, que devemos conquistar à insensatez”. Num apelo ao orgulho, e porque “o espetáculo do orgulho humano é inigualável”, porque é necessário “morrer irreconciliadoe não de inteira vontade”, a solução camusiana consiste na persistência de uma “desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível”, na revolta.

Recusando assim a negação moderna do humanismo, na totalização da experiência do lucro, pelo contrário se assume o Homem como o valor axiomático central. Teremos nós, passados já mais de seis décadas desde “O Homem Revoltado”, outro?

Imaginar Sísifo feliz é reconhecer ainda que “não há destino que não se ultrapasse pelo desprezo”, que a dignidade não morre, que ela se conquista na teimosia de ser-se tudo o que se quer ser, no suportar este fardo (de existir aqui, agora) do modo mais íntegro que soubermos. É onde a clarividência do fim do eu, “que devia fazer o seu tormento, consuma ao mesmo tempo a sua vitória”. Recordando Camus, talvez reaprendamos o caminho do apelo de um Sénancour: a ser o nada que nos está reservado, é preciso ainda assim fazer com que tal seja uma injustiça.

“A grandeza de Camus”, vinca Magris, “consiste em ter unido uma ética inflexível a uma inexaurível capacidade de felicidade, de viver a fundo a vida, como um baile popular ou um dia de sol à beira-mar, até na sua tragicidade enfrentada sem rebuço, recusando qualquer moral que reprima a alegria e o desejo. Camus tem um sagrado, religioso respeito pela existência, o qual o impede de qualquer transcendência, metafísica ou política, que pretenda sacrificá-la a fins superiores. Nenhum fim justifica meios delituosos, que pervertem os fins mais nobres, como acontece nas rebeliões – O Homem Revoltado – sempre traídas pelas revoluções; nenhum amor pelas vítimas – sempre defendidas por Camus contra os carrascos – as autoriza (nem autoriza os seus defensores) a tornarem-se por sua vez carrascos.”