Direita e Esquerda. De Norberto Bobbio aos nossos dias, um certo estado da arte

Direita e Esquerda. De Norberto Bobbio aos nossos dias, um certo estado da arte


Revendo alguma literatura política publicada em anos recentes sobre diferenças ideológicas que persistem, e balanços no interior de cada membro do par ideológico esquerda-direita, assim se partilha um conjunto de âmbitos que podem desafiar-nos a repensar identidades políticas.


1. Historicamente, os conceitos "Esquerda" e "Direita" surgem na sequência da Revolução Francesa de 1789, com a reunião dos Estados Gerais a evidenciar uma profunda divisão entre a ala esquerda e a ala direita da Assembleia, quanto ao grau (pretendido) de mudança da ordem social estabelecida e sobre o direito (ou não) de veto do rei sobre a legislação produzida. O sector direito da câmara – com o primeiro e segundo estados, sobretudo clero e nobreza – era a favor da manutenção da ordem estabelecida e, bem assim, do poder de veto do rei; pelo lado oposto, sentados à esquerda do monarca, estavam os defensores de significativas mudanças do status quo, rebelando-se contra o poder de veto real – o terceiro estado, maioritariamente burguês (se, a 5 de Maio de 1789, dia da sessão inaugural dos Estados Gerais franceses, a disposição da assembleia não era ainda consistente com a topografia política e ideológica que veio a adoptar-se posteriormente, todavia, já depois do Terceiro Estado ter desobedecido ao rei, proclamando os Estados Gerais como Assembleia Nacional e prometendo manter-se em reunião até ser elaborada uma nova Constituição, a 25 de Junho, alguns aristocratas e grande parte do baixo clero sentaram-se junto com o terceiro estado à esquerda; o restante clero, sobretudo altos dignitários, sentou-se com a aristocracia à direita do rei, chegando-se, pois, à topografia actualmente associada à divisão direita e esquerda – vide André Freire, “Esquerda e Direita na política Europeia”, ICS, 2006, pp.38-40). Deste modo se compunha este Parlamento, e é a partir desta (casual) localização espacial que, afinal, se cunham os nomes/conceitos (políticos) "esquerda" e "direita". 

2. Situados, assim, historicamente, convém, ainda, dizer, contudo, que, com nomes diversos, poderíamos, segundo alguns autores – ainda que caíssemos em anacronismo; e, portanto, me pareça de delicadeza bastante os usos fáceis de tais vocábulos projectados ex ante -, fazer recuar à antiguidade clássica, grega desde logo, aquele distinguo (ideológico), nela lendo, pois, um conjunto de posições políticas que hoje tenderíamos, porventura, a qualificar, consoante os casos, de "direita" ou de "esquerda". 

Fixando-se, reiterando, a origem histórica dos dois termos, pelo que se vem de observar, na sequência da Revolução Francesa de 1789 -, importa, sim, depois, percebermos – acompanhando, aqui, o filósofo e jurista Norberto Bobbio, em “Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma distinção política” (Presença, 1994) – que o verdadeiramente importante é registar, apesar de todos os desmentidos, a perenidade de duas atitudes políticas diversas, atitudes que são persistentes e resistentes porque "essenciais" (integrando estas, segundo a sua visão, uma "essência"). 

3. Este grande teorizador político italiano, um dos maiores e mais relevantes do séc. XX, ele que se reclamou de “centro-esquerda” (mas não deixou de recordar as ressonâncias que a expressão “esquerda”, “sinistra”, em italiano, contém em outras línguas europeias, bem como, por exemplo, “o estar à direita do Pai” em uma tradição, apesar de tudo, ainda não desconhecida por completo a Ocidente), de entre os vários critérios possíveis para proceder à distinção “esquerda-direita”, situou a problemática da "igualdade" como decisiva para traçar uma linha divisória (entre ideologias).  

À esquerda, Rosseau. Assim, a consideração de que os homens nasceram iguais, mas que a sociedade civil, ou seja, a sociedade que se vai sobrepondo lentamente ao "estado natural", através do desenvolvimento das artes, os tornou desiguais. Á direita, Nietzsche. O pressuposto é o de que os homens são desiguais por natureza – o que, para o autor de “A gaia ciência”, era bom, como a sociedade grega, com as suas profundas desigualdades, mostrara, dado o seu grau de evolução – e foi a sociedade, com a sua "moral do rebanho", que os tornou iguais. Em síntese, onde Rosseau vê desigualdades artificiais que devem, portanto, ser condenadas e abolidas por contrastarem com a igualdade fundamental da Natureza, Nietzsche descortina, inversamente, uma igualdade artificial que deve, portanto, ser execrada por ter tendência para eliminar a desigualdade benéfica que a Natureza quis que reinasse entre os homens.

4. E, no entanto, pese a consideração por esta perspectiva “essencialista”, ao longo dos tempos, ao contrário do que um apressado pensamento monolítico poderia presumir, "Direita" e "Esquerda" visa(ra)m modos diversos de concretizar os pressupostos axiológicos dos quais partiam – por exemplo, aqueles partidos/movimentos/representantes que se reclamaram destas duas alas ideológicas nem sempre olharam para o Estado da forma com que hoje, maioritariamente pelo menos, tendem a projectar (ou tendemos a assumir que projectam). À direita nem sempre se viu o Estado como "monstro" (mau), nem à esquerda este teve o lugar de (absoluto) privilégio. Olhe-se, a título ilustrativo, a história e experiência política norte-americanas (ainda que em tais paragens, desde há pelo menos quatro décadas, creio, se tenham como que solidificando asserções a este respeito – mas não assim durante todo o século que ficara para trás). Daí que, muitas vezes, aos conceitos de "Esquerda" ou "Direita" se aponham novos adjectivos: "liberal", “social”, "conservadora", "nacionalista", "identitária", "populista"…Para muitos deve, portanto, falar-se de "Esquerdas" e "Direitas", colocando, deste modo, a tónica no pluralismo intra-ideológico. 

5. Um exemplo desta procura de destrinça no interior da área ideológica em que se situa, a direita, podemos encontrá-lo, desde logo na extensa “Introdução” que escreveu na republicação (e revisão) de “A direita e as direitas” (Bertrand, 2018), o politólogo Jaime Nogueira Pinto. No rescaldo ideológico da Guerra Fria, no que à(s) direita(s) norte-americana(s) diz respeito, o académico distingue três alas fundamentais ainda presentes nos anos 90 (p.13): a) "os libertários, fanáticos do mercado, discípulos de Friedrich Hayek e Milton Friedman"; b) "os tradicionalistas, inspirados por pensadores como Russell Kirk, Leo Strauss ou Eric Voegelin, preocupados com a escalada do relativismo moral na cultura americana";  c) "os anticomunistas ex-comunistas, da linha de Whittaker Chambers". O que cada uma destas alas defendia tornava também diverso aquilo que prioritariamente combatia: aa) "para os liberais, o inimigo principal era o poder do Estado e da burocracia na economia e na sociedade"; bb) "para os tradicionalistas era o liberalismo progressista, uma filosofia existencial anti-religiosa que criava um vazio ético e abria espaço ao comunismo totalitário"; cc) "para os conservadores anticomunistas, os militantes da Guerra Fria, era a coexistência pacífica com o bloco soviético". 

Uma outra evolução política, dar-se-ia com a emergência da crise financeira de 2007-2008, com "uma considerável direitização do sistema político, com um aumento significativo dos votos nos partidos ditos de extrema-direita, que juntavam ao anticapitalismo da esquerda populista o nativismo e a defesa da identidade" (p.19). A crise de 2008 colocou em causa a confiança cega nos mercados e, também ela, neste núcleo essencial, contribuiu para mudar o panorama da(s) direita(s) (norte-americana): "a crise de 2008 fora a pior desde o crash de 1929 e custara aos americanos mais de 20 triliões de dólares em perdas do PNB – e falências, desemprego, poupança, vidas desfeitas. A culpa, para o grosso da opinião pública e das classes médias e trabalhadoras norte-americanas, fora da desregulação que permitira os comportamentos de alto risco dos responsáveis de Wall Street, pagos por Main Street. Uma das vítimas da crise foi a confiança nos mercados e na bondade da mão invisível de Adam Smith. E, à direita, a grande vítima foi a direita clássica, anglo-saxónica, liberal em economia e moderada nos costumes. A reacção dos eleitorados conservadores do Sul e do Centro-Oeste dos Estados Unidos à descrença no sistema, à insegurança económica e à mudança cultural imposta pela nova ideologia global da political correctness foi a adopção de uma linha nacionalista, proteccionista, populista e socialmente conservadora”. (p.24). 

Nesta última década, em não raros países, a hipótese tecnocrática, quer dizer a ideia de o(s) governo(s) ser(em) confiado(s), sem recurso a eleições se necessário até, a um conjunto de técnicos/peritos/especialistas (em particular, no âmbito da Economia), foi alvitrada – em alguns casos, mesmo, como o italiano, concretizada – como sendo a melhor solução para combater os problemas com que as diferentes sociedades se deparavam. E, ao considerá-la e sopesá-la, talvez surpreenda muitos leitores a filiação, identificada por Jaime Nogueira Pinto, do tecnocratismo em Saint-Simon (o tecnocratismo tende, com efeito, a remeter para uma dimensão apolítica, na medida em que sugere existir uma solução técnica de tipo único, sensivelmente asséptica, “acima do bem e do mal”, de qualquer disputa político-ideológica): “o saint-simonismo foi a primeira ideologia sistemática economicista, ao proclamar que o fim do poder político deve ser não o governo das pessoas, mas a administração das coisas, apresentando uma utopia científico-cooperativa que é o ponto de referência do moderno tecnocratismo” (pp.120-121). 

Quanto à consideração da tecnocracia como solução mirífica para a resolução de grandes problemas societários, Daniel Innerarity, em “A Política em tempos de indignação” (Dom Quixote, 2018, pp.100-105) explica, com grande felicidade (pedagógica), o especificamente político/democrático: 

“como dizia Albert Hirschman (1995, 118), a única virtude essencial à democracia é o amor à incerteza, um hábito adquirido num processo aberto de informação e discussão que questiona as crenças consolidadas. A política deve a sua contingência ao facto de ser uma actividade em que se adoptam decisões que são quase como apostas, porque não são precedidas de razões indiscutíveis, e em que é necessário adiantar-se aos acontecimentos no meio de uma grande complexidade. «A inteligência política consiste mais em compreender do que em saber» (Berlin, 1998, 81), ou seja, mais que um conhecimento profundo exige uma capacidade de tomar conta da situação, de perceber aquilo que está em jogo e um pouco de coragem. É um domínio onde impera o risco e a imprevisibilidade, onde serve de muito pouco seguir as regras, adaptar-se aos critérios dominantes ou continuar como até agora. Daí a sua força criadora, mas também o abismo à beira do qual têm de aprender a desenvencilhar-se aqueles que a ela se dedicam (…). Há muitas questões técnicas e profissionais no mundo da política, como é óbvio, e não se pode tomar decisões correctas se elas não forem precedidas por um trabalho de estudo e de assessoramento técnico. Mas o especificamente político da política vem depois da análise daquilo que foi objectivamente determinado: quando os técnicos e os administrativos já fizeram o seu trabalho e continua a não estar absolutamente claro o que é que deve ser feito. É nesse momento de poucas certezas que aparece a visão política, a aposta e a vertigem que inevitavelmente a acompanham. 

Em política não existe uma objectividade que ponha fim às nossas controvérsias, não existem códigos e protocolos a aplicar, quantidades passíveis de serem medidas, dados comprováveis, valores absolutos. Ou, pelo menos, o especificamente político é tudo aquilo que permanece em aberto depois de os especialistas terem falado e de a burocracia ter feito o seu trabalho, quando o apelo aos valores não determina completamente aquilo que deve ser feito num caso concreto ou quando as decisões têm de ser tomadas antes de dispormos dos dados que seriam necessários e que só chegarão quando for demasiado tarde. Boa parte das críticas aos políticos provêm do facto de o político ser alguém que decide, que opta pelo menos mau, que não pode contentar toda a gente. Trata-se de algo difícil de entender para quem não tenha percebido a lógica da política, o seu carácter inclusivamente trágico (…) A política não escolhe entre o bem e o mal, mas sim entre o mau e o pior ou, formulado de uma maneira menos melodramática, entre duas coisas normais e correntes (…) No espaço humanamente possível (não apenas na política), com escassez de tempo e recursos, escolher o menos mau, ficar de mal com alguém, adiar certos objectivos para se concentrar no prioritário são coisas inevitáveis. Na política, os assuntos não são absolutamente objectivos e evidentes, antes dependem de uma combinação de diversos critérios, por vezes contraditórios. Isto exige uma certa complexidade do juízo político (…) O facto, por exemplo, de na política haver tão pouca objectividade, de na política haver mais persuasão que demonstração é o que explica que no imaginário popular o político seja sinónimo de astuto, manipulador ou enganador. Seja como for, os critérios para julgar a competência dos políticos não podem provir de outros âmbitos a não ser da própria práxis da política, que é uma actividade muito peculiar (…) Em questões políticas, o reconhecimento do especialista ou a autoridade não são incontestáveis (…) É verdade que os actores políticos devem decidir tendo em conta o saber disponível e actuar como se soubessem sempre o que estão a fazer, mas talvez fosse mais realista se renunciassem a uma segurança absoluta e inclusive se comunicassem mais as suas incertezas. Seria importante perceber o que é que prejudica mais a confiança no nosso sistema político, se o reconhecimento da ignorância própria e das limitações na sua capacidade de acção ou permanente decepção dos cidadãos perante promessas não cumpridas e impossíveis de cumprir dos políticos. Os protagonistas políticos deveriam aprender a gerar confiança renunciando às sugestões heróicas de segurança e às expectativas hipertrofiadas. Se estivessem em condições de reconhecer a sua própria contingência e ignorância, provavelmente criariam uma confiança a médio prazo na política que acabaria por lhes conferir o crédito que tanto lhes custa a obter dissimulando a sua insegurança.”

Ainda a este propósito, na última década, duas ideias que se reveza(ra)m enquanto expressões que parece(ra)m concitar maior adesão dos cidadãos, na nossa esfera pública, nos parecem eivadas de um simplismo que convém desconstruir, nos debates participados na polis: a) há modelos económicos (ou econométricos) cuja fiabilidade científica é insusceptível do menor reparo e só políticos ignaros/incompetentes/demagogos não os seguiram e foi esse o radical que conduziu, em diferentes sociedades, à crise por que vimos passando. Assim, deixando as decisões nas mãos de técnicos/tecnocratas, pessoas sem estados de alma nem paixões, neutras e assépticas, que estudam pelos bons manuais e não ligam à política, a situação (económico-social) será debelada; b) se a ideologia mais pura, os bons sentimentos, o amor pela humanidade fossem seguidos sem demais considerações, isto é, sem atentar nas barreiras, para as quais pretensos peritos remetem, então tudo teria corrido bem.

Ora, duas falácias estão aqui em causa: aa) não há uma técnica, uma perícia absolutamente neutra e desprovida de uma pauta axiológica e/ou ideológica; a dimensão técnica, desintegrada dos demais sistemas (social/cultural/político), cria/é susceptível de criar monstros; peritos diferentes propõem soluções diversas, pelo que a mitológica solução única não tem provimento; bb) o puro voluntarismo político, sem conceber constrangimentos de ordem técnica/legal/orçamental à sua acção, não se mostra capaz de adequada resposta às demandas da realidade.

A tensão entre os constrangimentos do real – com o respaldo técnico como muito importante – e a necessidade de criatividade política, entre o sumo especialista e o generalista, entre a tecnicalidade e o olhar complexificado, assume relevo para o bom andamento da coisa pública. E a legitimidade democrática de quem decide, escusado será dizê-lo, determinante. A política tem que instaurar o médio/longo prazo, única hipótese de não ser ultrapassada pela técnica.

Neste contexto, importa, aliás, relevar o papel/importância dos partidos políticos [Daniel Innerarity, “Política em tempos de indignação”, pp.64-66]:

“i) essenciais para clarificar as opções que estão à disposição dos eleitores;

ii) servem para formar o pessoal político, seleccionar os candidatos, gerir a circulação da classe política pelas instituições;

iii) fundamentais no controlo dos eleitos, mantendo-os vinculados às promessas feitas aos eleitores;

iv) graças aos partidos políticos, os cidadãos podem votar num programa político que tende a estar associado a uma linha de ideias identificável;

v) tornam inteligível o mundo, orientam as decisões dos cidadãos, oferece canais de participação política e articula o controlo cívico sobre os seus representantes;

vi) são instâncias de mediação através das quais se forma a vontade política e o antagonismo que servem de base para as decisões colectivas;

vii) sem partidos políticos, o espaço nas democracias seria ocupado por tecnocratas e/ou populistas.”

Na decifração ideológica dos últimos dois séculos, intentada na (referida) obra de Nogueira Pinto, uma associação que outros tantos não teriam por óbvia: "é curioso como as críticas dos pensadores católicos franceses do séc.XIX a um progresso que arrastou a desumanização e a destruição de laços de solidariedade, comunidade e vizinhança, que caracterizavam o Antigo Regime (com a sua contrapartida de servidões e imobilismo) coincidem com as dos socialistas românticos e utópicos. E como a hostilidade à civilização industrial foi comum a reaccionários e revolucionários extremos" (p.103). Menos provável ainda, porventura, para alguns, "as diatribes de Ezra Pound contra a usura" (p.104).

6. As opções ideológicas que formulamos não se encontram à margem da cultura que frequentamos, do conjunto de convicções, crenças, ideias, desejos, representações, concepções, sentimentos que prevalecem em um dado momento; daquilo que conforma, em suma, o “espírito do tempo”.

A associação entre o paradigma cultural (hoje) predominante e a ideologia professada (por uma maioria de cidadãos) conta-se, assim, como o principal contributo que Raffaele Simone, Professor Emérito da Universidade de Roma Tre, com formação em Filosofia, estudos em Matemática em Direito, especialização em Linguística, ensaísta, situando-se à esquerda no panorama político-ideológico – neste contexto, não deixa de ser curioso que o reputado académico prefira Hobbes a Rosseau na conceptualização antropológica que produz -, e afastando-se de Bobbio, traz com “O monstro amável – o mundo está a tornar-se de direita?” (edição em castelhano, na Taurus, 2012). 

Muito radicalmente, nos debates no interior da “esquerda”, a pergunta última que o autor formula é se esta, a “esquerda”, ainda tem lugar, se os seus ideais conseguem alguma validade e legitimação popular, quando o consumo, o individualismo, a competição, o curto-prazo como medida definem o ar que se respira. Mais, ainda: se a pulsão inata do ser humano passa por uma afirmação sobre os demais, por um certo egoísmo, algum exibicionismo, pelo desejo de possuir (como Raffaele Simone tende a concebê-lo), não será como que co-natural ao humano ser de “direita” (que, assim, no entender deste autor, melhor representaria tais impulsos naturais, na valorização que faz da hierarquia, numa certa recusa de uma limitação, via impostos, à propriedade, por exemplo)? E a “esquerda”, com os postulados de “auto-contenção” e “redistribuição” não remeteria para o artificial (auto-limitação da minha propriedade em favor de outrem, será algo natural em mim? p.178 e ss.)? Os problemas de legitimidade, à “esquerda”, nas últimas décadas advieram, desde logo, do conhecimento dos horrores cometidos em países governados por partidos comunistas; em segundo lugar, pela sua omissão de intervenção política – e, se quisermos, de prévia produção intelectual/discussão/debate – em temas tão centrais, para diferentes populações europeias, como a imigração ou o fundamentalismo islâmico; em terceiro lugar, os socialismos que o mundo ainda hoje conhece, como o venezuelano, não entusiasmam os próprios socialistas europeus; quarto problema, e não menos relevante: desde a ideia do “Estado do bem-estar”, nenhuma outra (ideia), relevante, teria surgido, desta banda político-ideológica (p.54). As dificuldades, à “esquerda”, assumem, portanto, um eminente carácter intelectual, que se reflecte em autoridade e prestígio (em perda), pois que sem um projecto para o futuro estes se esvaem. Perda(s) para a “esquerda”, ainda, na última década/década e meia: a) o desaparecimento da “classe trabalhadora” como classe predominante; b) a mudança da composição (social) do “povo de esquerda”; c) o desinteresse da juventude pela política. 

Os capítulos (4º e seguintes) que detalham esta mutação permanecem os mais interessantes e agudos de “O monstro amável”: nenhum operário seria figura para entrar num “Big Brother”, isto é, não seria apetecível para a televisão e, em assim sucedendo em um tempo em que só o visível/visualizável conta, (tal figura/condição) perde o interesse para um partido político; por sua vez, mesmo a “classe trabalhadora”, numa época em que cada um se define pelo patamar de consumo que consegue atingir, aquilo que parece pretender é, sobretudo, alcançar o patamar de consumo acima do seu e, finalmente, nem mesmo esta (classe) se define de modo homogéneo, nem politicamente se revê em uma oferta de (auto) contenção (mesmo que essa recusa, no fundo, resulte em seu desfavor); as causas comuns, o interesse público e geral, o bem comum, quando é esse mesmo consumo que, afinal, nos definirá, não assumem particular relevo, e os mais jovens, a quem a publicidade mais se dirige, naturalmente, afora uma dimensão mais “carreirista”, afastaram-se, de um modo geral, da cena política, quando haviam sido, historicamente,  agentes propulsores de mudança.  Em definitivo, quando o curto-termismo é um factor crucial de uma época, o desejo de transformação não é palpável. 

Então, “O que resta da esquerda?”. Franco Cazzola, Professor de Ciência Política em Florença, escreveu, em um momento de particulares dificuldades eleitorais de partidos social-democratas na Europa (entretanto, mitigadas, no que ao acesso ao poder diz respeito), um livro com um título – pelo menos, na edição portuguesa (Cavalo de Ferro, 2011) – homónimo (a versão original italiana, “Qualcosa di sinistra”, que ecoa um célebre filme de Nani Moretti, “Aprille”, no qual o realizador/actor pede a Massimo D’Alema, que debatia e era oponente de Berlusconi, que dissesse ‘qualquer coisa de esquerda’, como relembra o Professor André Freire, no posfácio à edição portuguesa) e deixa várias pistas para reflexão. De entre estas, há dois elementos que lhe suscitam especial sublinhado: por um lado, a importância da questão semântica – para Cazzola, a “esquerda” deixou de falar em ‘trabalhadores’ e passou a falar em ‘empresa’; abandonou a palavra ‘classe’ ou mesmo ‘pessoa’ e passou a falar de ‘cidadão’; a justiça passou a não estar, imediatamente, associada a ‘social’; em vez de ‘conflito’, ‘competição’. A derrota da “esquerda” seria, assim, também a derrota de uma semântica, de uma gramática que se traduziria numa pragmática muito mais pobre: a derrota seria, pois, em larga medida, cultural; em segundo lugar, e talvez a indicação mais importante: em nosso tempo, o nexo entre produção e consumo obscureceu progressivamente. De tal modo que “os bens de consumo já não surgem como o fruto do trabalho, mas como uma graça da natureza, como um maná e um benefício dos céus. As novas gerações, escreve citando Vianello, apresentam-se no palco do mundo como titulares de um direito natural à abundância e esta última surge como não produzida, arrancada e conquistada no termo de um esforço histórico e social, mas como dispensada por parte de uma instância mitológica e benéfica da qual somos legítimos herdeiros: a técnica, o progresso, o crescimento, etc.”. Dito de outra forma, para Cazzola, se o nível e qualidade de vida de que as actuais gerações podem ser beneficiárias se deveu, em larga medida, a partidos “social-democratas” – e, acrescentamos, “democratas-cristãos” -, quem dele é herdeiro devia ter a noção que tal só foi alcançado por via de um grande esforço e batalhas não individualistas. Por isso, para o Professor de Ciência Política, a “esquerda” falhou nesta demonstração da necessidade de empenho político e da sua vinculação a determinadas ideias políticas, pois que se assiste – ou assistiu, na globalidade das sociedades, nas últimas décadas – ao que chama de “gozo apolítico de um certo bem-estar”. O número de cidadãos que podia votar e voluntariamente não o faz, é, na Europa, na ordem de algumas dezenas de milhões. É necessário, a seu ver, recuperar a paixão política, repolitizar, falar e ir buscar as pessoas que estão nas margens do sistema (político, do mundo do trabalho, social, cultural). Porém, hoje mesmo, esse bem-estar se desmorona, as novas gerações perspectivam-se com um futuro pior do que a situação que coube à geração precedente e são já muitos os que vêem, por toda a Europa, reivindicando um outro estado de coisas – todavia, o optimismo e a crença no progresso, muito típicos à “esquerda”, não florescem, neste contexto. Porque, para Cazzola, é disso que se trata: de uma imaginação capaz de configurar um outro futuro, melhor, que não seja mera gestão técnica, em que o trabalho ganhe centralidade – mesmo já sem a grande fábrica e a sociedade industrial, o que não falta são precários -, e se reflicta como, em muitos casos, e o autor faz uma avaliação das políticas sócio-económicas de 13 estados europeus, nos trinta anos precedentes (isto é, desde o choque petrolífero, na década de 70, que, a seu ver, constituiu um ponto de viragem política e de pensamento político, no sentido liberal na economia), políticas de “esquerda” – na escala de prioridades, e por respectiva ordem, “pleno emprego”, “redistribuição da riqueza”, “crescimento económico”, “estabilidade dos preços”, “equilíbrio da balança de pagamentos” – nem sempre deram resultados de “esquerda”; por vezes, isso foi melhor alcançado com governos e políticas de “direita” – portanto, importa distinguir objectivos/políticas, de resultados: nem sempre são coincidentes. 

Nos anos mais recentes, e embora centrado na realidade norte-americana, tornou-se muito influente, a nível internacional (como espécie de guião interpretativo para realidades políticas nacionais diversas) o ensaio crítico de Mark Lilla sobre a actual primazia, à “esquerda”, das questões identitárias (primando sobre o eixo económico-social). O problema de um “progressismo identitário”, assinalou, consiste no facto de a identidade (pessoal) remeter para um "eu interior" e, neste sentido, negar o comum. Despolitizar. Favorecer, portanto, o princípio individualista. Que é, tão só, aquele que está na base do “conservadorismo libertário”. Dito de outra forma, o “liberalismo identitário”, o “liberalismo” (“esquerda”, “centro-esquerda”, em acepção norte-americano daquele que é, muito provavelmente, um dos vocábulos mais polissémicos em política) focado/centrado em diferentes minorias (e/ou nichos), deslocado das grandes questões (económico-) sociais, torna-se caucionante do fundamento cultural de última ordem – o individualismo – que subjaz a todas as políticas que negam qualquer obrigação “de fazer” por parte do Estado, em particular com os mais desfavorecidos. A tese de Mark Lilla, em “The Once and Future Liberal. After identity politics” (traduzido, pela Tinta da China, agora, por “De Esquerda, Agora e Sempre: para além das políticas identitárias”) conhecido académico de esquerda, Professor de Humanidades em Columbia é a de que se o movimento “progressista”, consubstanciado no Partido Democrata, nos EUA, quiser, de novo, conformar mentes, corações, sentimentos e substantivar políticas terá que abandonar a sua centralidade na política identitária e focar-se nas questões sociais.

7.Alexandre Franco de Sá, académico e investigador na área da Filosofia Política, docente na Universidade de Coimbra, Presidente da Associação de Professores de Filosofia, um cidadão que situará à direita do espectro político, caracteriza as posições (filosóficas), ab initio, de “Direita” e “Esquerda”, na obra colectiva coordenada por Ricardo Marchi “As direitas na democracia portuguesa” (Texto Editores, 2016) como assentando, como fontes de legitimidade, em “tempos” diferentes (fazendo, pois, deste, o “tempo”, factor crucial na distinção – mas também na complementaridade – deste par ideológico): 

a) "para a direita, a fonte de legitimidade que deve substituir a arbitrariedade do exercício do poder absoluto [quando caem as monarquias absolutas, nas quais o monarca absoluto, reproduzindo a potentia absoluta de Deus, está fora do mundo político, desvinculado das suas leis] é o passado e o legado de experiência histórica dos homens. Tal experiência, procurando partir dos homens concretos tais como são, e assinalando, neste sentido, os limites contidos na própria natureza humana, alimenta uma atitude cética e pessimista em relação às possibilidades de progresso e de transformação do homem" (p.139); b) "a esquerda aparece (…) como a atitude política para a qual é o futuro (…) que se pode constituir como fonte de legitimação política (…) A esquerda encontra a legitimidade da sua posição política não na alusão pessimista àquilo que o homem sempre foi, mas na referência optimista àquilo que o homem pode vir a ser (…) No seu optimismo progressista, ela torna-se assim devedora de uma atitude religiosa" (pp.139-140). Conclusão bastante, neste contexto: "o sentido temporal da diferença entre direita e esquerda torna imediatamente compreensível de que modo, desde a sua origem, estas surgem como o complemento imprescindível uma da outra. Do mesmo modo que o passado só é passado de um futuro e um futuro só o é de um passado, direita e esquerda pertencem-se mutuamente. Absolutizar a esquerda, evocar o futuro como exclusiva fonte de legitimação política, sem qualquer referência ao passado e à experiência da realidade humana, seria colocar no poder absoluto um arbítrio puramente despótico e completamente desvinculado da realidade. Do mesmo modo, absolutizar a direita, tornar o passado como esta fonte exclusiva de legitimação política, sem qualquer referência normativa ao modo como os homens deviam viver, corresponderia a subordinar esses mesmos homens à tirania irracional do preconceito e do costume" (p.141).

O século XIX, porém, irá acrescentar um critério outro (social, desta feita), a esta distinção filosófico-política (face ao tempo), quanto ao binómio “esquerda-direita”:

c) representação igualitária (esquerda) vs representação hierárquica (direita) da sociedade. (p.142). A diferença entre esquerda e direita passa a fazer-se face ao valor da igualdade, corrobora Franco de Sá a perspectiva de Norberto Bobbio. 

A “direita”, a partir de então, passa a definir-se, sobretudo, como antítese da “esquerda”, abrindo-se em duas propostas de tipo diverso:

d) uma direita clássica, que se crê realista, não acredita no progresso nem numa visão linear da história, pouco propensa a grandes mudanças nas instituições sociais, ainda assim buscando compatibilizar a liberdade com um sentido de justiça;

e) uma direita neoliberal, partilhando o mesmo optimismo histórico da esquerda, colocando a liberdade individual, a todo o custo, no lugar da igualdade, sendo, verdadeiramente utópica, ingénua, revolucionária. "Partilhava com essa mesma esquerda a sua legitimação política através da sua alusão a um «mundo novo», a uma «nova era» e a um «futuro porvir». Uma tal direita, embora se identifique a si mesma como «neo-conservadora», afastava-se radicalmente da abordagem antropológica pessimista que caracterizava originalmente o conservadorismo. Do optimismo que a constituía fez parte essencial uma defesa de mercados completamente desregulados, assim como a projeção optimista e esperançosa de um futuro de crescimento indefinido e linear no qual, a longo prazo, independentemente das desigualdades, todos sairiam beneficiados" (p.146).

Para Franco de Sá, as posições de “esquerda” relativamente à emancipação dos diferentes grupos sociais, à necessidade de quebrar todas as barreiras e obstáculos a essa emancipação, a ideia de progresso tornaram-se hegemónicas (no espaço público). Nesse sentido, o autor crê, diferentemente, na possibilidade de uma força crítica presente em alguns dos motivos da direita clássica – pense-se, por exemplo, no que poderia ou poderá ser a recusa, a partir daqueles pressupostos (ditos) “realistas”, de posicionamentos e propostas políticas que neguem o “corpo”, para quem o “biológico” como que inexiste. Ou, ainda, da sua operatividade em uma nova batalha (política), em curso desde há alguns anos, entre transhumanistas (como Jonas Hughes) – que pretendem melhorar, com recurso à engenharia genética, e meios bio-médicos, o humano, hoje em dia despindo as vestes de qualquer eugenia de tipo totalitário, mas reclamando-a em nome do igualitarismo e do liberalismo cultural – e Bioconservadores (como Leon Kass e Francis Fukuyama) que consideram que apenas são aceitáveis as intervenções terapêuticas. Bioeticistas como George Annas e Lori Andrews chegam a afirmar a existência de um “crime contra a humanidade a modificação genética herdada, nos humanos”. Quem é contrário a tais modificações, considera, por princípio, que a busca da melhoria humana destrói a virtude da gratidão pelo dado (pelo dom, pelo gratuito, pelo não merecido); contra-argumentam os que favorecem essas alterações biomédicas: não há razão para se considerar sagrado o que se considera o funcionamento normal (do humano). Como separar o normal do não normal? Um outro argumento contrário a intervenções biomédicas de melhoria humana: quem quer levar a cabo tais experiências, pretende um completo domínio da existência humana; a perfeição. Réplica: o que se quer é melhorar, não é alcançar a perfeição. No fundo, regista um novo argumento contrário a tais intervenções, o que se busca é a imortalidade, uma quimera sensivelmente distópica; Tréplica: o que se quer não é a imortalidade, mas uma melhor qualidade de vida. A melhoria, assumem em definitivo os Bioconservadores, levaria a uma sociedade estratificada, de castas, e não solidária, que desprezaria os que carecem de algumas capacidades (cf. Adela Cortina, “Aporofobia”, Paidós, 2017 e João Carlos Espada, Adam Wolfson e Marc F. Plattner, “Direita e Esquerda? Divisões ideológicas no séc.XXI”, UCP, 2007).

Citando o filósofo contemporâneo, situado ideologicamente à esquerda, Jean-Jacques Ranciére e a sua ideia da política como "poder dos que não têm titulo" (o poder de qualquer um), Franco de Sá faz uma interpretação – bastante extensiva, creio – da expressão para, julgo, nos dizer isto: a dimensão aristocrática é, ainda assim, requerida na sociedade que temos e (re)afirmá-lo, mesmo se não é o mais politicamente correcto, pode ser uma urgência (os alunos que classificam os professores ou que são Mestres de si próprios; a inversão de qualquer hierarquia ou hierarquização; a igualitarização ou rasura de tudo; ou a pura inversão dos valores tradicionais aí estão). A meu ver, Ranciére é claro, e tem razão, quando mostra que para se estar num cargo político não é necessária uma determinada/específica formação; um título académico/profissional; um determinado berço. Que uma visão bem articulada (para a polis) de quem não tem tais títulos pode superar, em muito, quem deles dispõe (e há importantes exemplos históricos, nomeadamente na Europa do pós-guerra, neste contexto). Ninguém pode reclamar para si um direito natural à governação. Dito isto, ou há uma preparação feita, uma visão alcançada, um estudo sistemático e sistematizado, com ou sem títulos, que permita essa articulação, ou pode cair-se na pura demagogia ou na excessiva e insustentável “leveza” da(s) política(s) (de “qualquer um” sem preparação suficiente). 

8. No seu “Esquerda e Direita. Guia histórico para o século XXI” (Tinta da China, 2015), no qual podemos ficar a saber que com a Revolução Francesa até a palavra "revolução" ganhou um novo significado: deixa de ser a reviravolta para se regressar ao normal, à ordem, para se tornar na mudança que não volta atrás e, bem assim,  que o próprio lema revolucionário – o célebre «Liberdade, Igualdade, Fraternidade» – demorou quase um século a impor-se: aparecendo no Clube dos Cordoeiros, num convento franciscano em Paris, em 1791, foi preterido por Napoleão, que escolheu «Liberdade e Ordem Pública», ou pelos tradicionalistas, que preferiram «Rei, Lei e Fé», ou pelos positivistas, que lhe contrapuseram «Ordem e Progresso» (que foi parar à bandeira do Brasil), até finalmente se impor com a Terceira República Francesa, Rui Tavares, historiador e dirigente do “Livre”, para o qual fazer do binómio “casta vs 99%” o sucedâneo da antítese “direita/esquerda”, significa importar para território seu os mais reaccionários ou os mais revolucionários dos cidadãos, como se, afinal, as diferenças de mundividência, ideológicas não contassem (suprimindo-se a escolha, obliterando-se, portanto, a política; em resultado, curiosamente espelhar, ao dos que referem que as soluções são técnicas e não há que discutir o caminho único), lembra que com a vinculação ao par (ideológico) “esquerda” e “direita”, constructos sobreviventes por terem tido capacidade de integrarem em si mutações, deixámos "as divisões tribais e sectárias do passado, as nossas lealdades clientelares a senhores feudais, as guerras mercenárias contra ou a favor de dinastias e impérios" (p.71). Portanto, agora passaríamos a lutar por grandes ideias, valores políticos. 

Todavia, muito depois de 1789, como no-lo mostra Mark Mazower, em “O continente das trevas” (Edições 70, 2018), as lutas por interesses específicos, os grupos parlamentares em muitos países que defendiam artesãos, ou comerciantes, ou uma confissão religiosa, por exemplo, continuaram bem vivos. Os 'tribalismos', ou pequenos 'feudos', desta sorte, não se eliminam completamente. 

Mazower vê o fascismo como grande repto e competidor da democracia – muito mais do que o comunismo que ficou circunscrito, geograficamente -, no século XX, e opta por este binómio para explicar um tempo, carregando na importância dos valores (políticos/metapolíticos), nas escolhas das pessoas/cidadãos. Neste sentido, não subscreve, como Hobsbwam, a interpretação de que a economia prima sobre tudo o mais (determina tudo o resto;  “entre o marxismo e o neoliberalismo há um elemento comum: a atribuição de um carácter determinante ao factor económico que se esquece da consciência trágica da humanidade e converte o sujeito num ser unidimensional e isolado”, escreve Josep Ramoneda, no Prefácio a “A política em tempos de indignação”, de Innerarity), e de que o fascismo é, apenas, um outro – um dos vários outros – nomes do capitalismo (sendo, portanto, a grande batalha entre este último e o comunismo; não é essa, reitere-se, a interpretação de Mazower). Mark Mazower sublinha como fascismo e nazismo abolem, por completo, a distinção burguesa entre “público” e “privado” (para os ideólogos do fascismo, o cidadão devia ser tanto fascista num comício, como no emprego ou em casa). Se no fascismo, ou em vários dos nacionalismos (nomeadamente católicos que se impõem, em diferentes países, pela década de 30 do séc.XX), o apelo a forças da tradição, como a Igreja, ainda se faz notar, no nazismo estas são completamente abafadas em favor do Führer (mesmo o Estado de direito virá a conhecer a retroactividade de leis, sucumbirá às opções do Führer; a opção pelo colectivo menos do que o enfoque nos direitos individuais será legado de um direito ou jurisprudência conservadores). A obra de Mazower mostra como a crítica extremada do individualismo (ou egoísmo) do liberalismo político – que não entusiasmará ninguém, no entender de muitos intelectuais da época – pode fazer-nos cair numa tentação de sinal contrário (a supremacia absoluta do colectivo, nos totalitarismos). Uma das descobertas como grande lição da II Guerra para homens democrata-cristãos como Jacques Maritain (e note-se como Mounier chegou a colaborar com Vichy) foi, precisamente, a afirmação da consciência individual (que nalguns casos, muito significativos, se havia oposto ao mal hediondo).

8. A politóloga Ana Rita Ferreira, Doutorada em Ciência Política pela Universidade Católica, Professora de Ciência Política na Universidade da Beira Interior (e que viria a ser conselheira na secretaria de estado junto do Primeiro Ministro António Costa), no seu ensaio “A evolução das ideologias políticas do PSD e do CDS-PP: uma análise aos documentos programáticos” (1974-2012), inserto, também, no já aqui citado “As direitas na democracia portuguesa (coordenado por Riccardo Marchi)” propenderá a colocar a diferenciação ideológica no binómio “social democracia vs liberalismo económico” – tónica que, em realidade, considere-se suficientemente rica de motivos ou sem essa qualidade substantiva, atravessou inúmeros debates políticos, no nosso país, ao longo da última década, sendo que tais alternativas ideológicas, no pós-queda do bloco soviético, por um lado, e sem uma adesão popular, em todo o caso e até ver, de dimensões muito elevadas a uma extrema-direita, por outro, se compreende, mesmo que restrita na abordagem a dimensões de natureza económica e de peso do estado na economia/funções atinentes aquele –, investigando todos e cada um dos programas com que, nomeadamente, o Partido Social Democrata se apresentou a eleições, desde 1974. Dado, até aos nossos dias, continuar a ser, internamente (ao partido), controvertida, a “linha justa” onde situar o PSD, como os diferentes momentos eleitorais pelos quais o partido vem passando têm exposto, sendo, em especial, muito disputado o seu passado e o modo como nele se incluiu o partido, de modo predominante pelo menos (em cada um dos momentos históricos), numa destas linhas mais “social-democrata” ou (economicamente) mais “liberal” (passado evocado, evidentemente, como constituindo a referência/autoridade “certa” para o presente, mas nem sempre interpretado, em cada momento e liderança de modo unívoco, pelos diferentes actores com voz pública no seio do PSD), o olhar da politóloga oferece um subsídio mais (para possíveis futuras discussões): de acordo com a cientista política, o grande momento de ruptura ideológica com a social-democracia, no interior do PSD, dá-se em 2002, com (o programa de) Durão Barroso (numa opção por uma via de um liberalismo agressivo: “em 2002, o PSD vive aquela que é provavelmente uma das suas rupturas ideológicas mais claras, ao aproximar-se verdadeiramente das ideias liberais e conservadoras – em grande medida já preconizadas pelo CDS-PP nos anos anteriores – ao nível do papel do Estado Social" (p.117); de então para cá, nenhum dos programas, mesmo tendo líderes tidos por mais próximos de um ideário tipicamente “social-democrata”, como Manuela Ferreira Leite, deixou de ir a eleições com um programa “liberal” (atente-se, diz-nos Ana Rita Ferreira, no seu programa de 2009). Desta sorte, do ponto de vista ideológico, o PSD, em termos históricos, teria passado, até aos nossos dias, por três fases distintas: i) de 1974 a 1980, com um cunho marcadamente “social-democrata” (recuperado em 1983); ii) durante a década de 1990, ou durante o cavaquismo se preferirmos (recuando, ainda, aos finais de 80), o PSD apresenta elementos programáticos onde alguma liberalização na economia, se conjuga com forte aposta “social-democrata” no Estado Social e posições conservadoras em matéria de “costumes”. O PSD transforma-se num híbrido sem definição precisa, mas sem abandonar nem renegar a “social-democracia”; iii) desde 2002, o PSD afasta-se, de forma vincada, da “social-democracia” e opta pelo “assistencialismo” em matéria social e por um liberalismo (económico) acentuado. 

Ana Rita Ferreira apresenta como verdadeira novidade da última passagem do PSD pela liderança da governação do país (2011-2015), em coligação com o CDS-PP, a ideia do Plano Nacional de Emergência, com os beneficiários a receberem bens em vez de dinheiro, algo que não havia sido visto até então em programas do PSD.

Um dos expoentes europeus, ao nível do pensamento, na defesa da “social-democracia”, nas primeiras duas décadas do século XXI, foi o historiador Tony Judt. Que se lhe referiu como sendo ou representando (tal ideologia) a “banalidade do bem”. Se, evidentemente, a expressão “banalidade do bem” surge por referência/contraponto ao arendtiano “banalidade do mal” – que, como no início da charla entre historiadores, Judt e Timothy Snyder, responsáveis por “Pensar o século XX” (Edições 70, 2012), o primeiro recorda, equaciona “termos que reflectem uma percepção weberiana do mundo moderno: um universo de estados governados por burocracias administrativas, por sua vez subdivididas em unidades muito pequenas, onde as decisões e escolhas são exercidas pela, chamemos-lhe assim, não iniciativa individual. A inacção, num tal ambiente institucional, torna-se acção; a falta de escolha activa substitui a própria escolha, e assim por diante” – a devida hermenêutica de “banalidade do bem” pode não recolher imediato consenso. Se, por um lado, “banalidade do bem” pode significar um usufruir de um conjunto de direitos sociais sem consciência/consciencialização dos motivos/porquês destes serem possíveis e das batalhas políticas encetadas em favor destes – e, efectivamente, em “Um tratado acerca dos nossos actuais descontentamentos” (Edições 70, 2010), Judt vai muito nesta linha, naquilo a que Franco Cazzola chama de “gozo apolítico” de um conjunto de bens -, sendo, portanto, que os “banalizamos” (não lhes dando a devida importância, bem como à “social-democracia” que ajudou a erigi-los), por outro, a “banalidade” poderia ser a do lugar, em suma, onde, afinal, sabemos que podemos habitar, com a segurança de um passado que fala/testemunha pelo bem-sucedido caminho, “banalidade”, também, porque se trata de uma ideologia que não tem a excitação de um futuro radioso, das revoluções por vir. Que, contudo, não haja qualquer ilusão de “fim da história” – a “social-democracia”, vistos os totalitarismos do séc. XX e experimentada a corrente mais hard do liberalismo (económico), poderia surgir como inevitável fim da história, naturalmente a par da “democracia-cristã” – é conditio sine qua non para que assome à consciência o conjunto de valores políticos que ela sustenta – e que não são, naturalmente, aceites por outras visões do mundo, da política, da economia. E, de resto, nem o historiador social-democrata, em nome da honestidade intelectual e da complexidade, deixa de ter presentes as críticas que ao sistema de ideias políticas que defende são apontadas e nas quais atenta, devidamente: “aqui entram os argumentos contra a possibilidade da social-democracia, que são de dois tipos. Um, se quiseres, estrutural; o outro contingente. O argumento estrutural é o de que este sentido de legitimidade é difícil, ou mesmo impossível, de encontrar num país grande e diverso como os Estados Unidos. A confiança colectiva através de gerações, ocupações, aptidões e recursos não é fácil numa sociedade enorme e complexa. Não é, portanto, por acaso que a maioria das sociais-democracias de êxito são a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a Áustria, a Holanda até certo ponto, a Nova Zelândia, entre outras: sociedades pequenas e homogéneas.

O argumento de contingência contra a possibilidade da social-democracia afirma que ela foi historicamente possível, mas só em circunstâncias que não podemos reproduzir. A combinação da memória da Grande Depressão, a experiência do fascismo, o medo do comunismo e o crescimento no pós-guerra tornaram possível a social-democracia até em sociedades bastante grandes como a França, a Alemanha Ocidental, a Grã-Bretanha ou o Canadá, que é uma sociedade grande fisicamente, se não socialmente. Não aceito no geral este contra-argumento – a história foi mais complicada e as motivações mais duradouras -, mas respeito-o” (Tony Judt, “Pensar o século XX”, Edições 70, 2012, p.368).

Em uma época, as duas primeiras décadas do século em que nos encontramos, em que o Estado Providência foi muitas vezes colocado em causa, nomeadamente na Europa, como factor que, alegadamente, travaria a capacidade competitiva do Velho Continente na disputa económica internacional (atente-se, por exemplo, no programa e comparações com a realidade norte-americana, seu mercado de trabalho, dias de férias, entre outras inúmeras realidades presentes em “O futuro da Europa – reforma ou declínio”, de Francesco Giavazzi e Alberto Alesina, Edições 70, 2007), Tony Judt procurou refutar esta ideia, argumentando, em particular, com o facto de os Estados Providência terem surgido como tampão, limite ao regresso trágico da guerra, modo preventivo e proactivo de a impedir (bem como à potencial reemergência de regimes políticos não democráticos): “a memória da guerra desempenhava um papel importante, os Estados-providência (…) do século XX construíram-se não como guarda avançada da revolução igualitária, mas para proporcionar uma barreira contra o regresso do passado: contra a depressão económica e o seu resultado político polarizador e violento na política desesperada, tanto do fascismo como do comunismo. Os Estados-providência eram, portanto, Estados profiláticos. Foram concebidos de forma muito consciente para responder ao anseio generalizado de segurança e estabilidade que John Maynard Keynes e outros anteviram muito antes da II Guerra Mundial, e resultaram para lá de todas as expectativas. Graças a meio século de prosperidade e segurança, no Ocidente esquecemos os traumas políticos e sociais da insegurança em massa. E assim esquecemos do porquê de herdarmos esses Estados-providência, e o que os justificou" (“O Século XX esquecido – lugares e memórias”, Edições 70, Lisboa, 2009, pp.21 e ss.). Visto a contrario, a paz (bem como a democracia liberal) poderia(m) perigar, com o desmantelamento dessa malha de protecção.

Ademais, prosseguiria Judt, rotular tais Estados-Providência de “socialistas” era ignorar que em grande parte da Europa eles foram concebidos e estabelecidos por democracias-cristãs: 

“mas «socialista»? O epíteto mais uma vez revela uma curiosa ignorância do passado recente. Fora da Escandinávia – na Áustria, Alemanha, França, Itália, Holanda e outros países – não foram socialistas, mas democratas-cristãos os principais responsáveis pelo estabelecimento e administração das instituições fulcrais do Estado-Providência activista. Até na Grã-Bretanha, onde no pós-II Guerra Mundial o governo trabalhista de Clement Attlee inaugurou de facto o Estado-Providência como então o conhecemos, foi o governo de tempo de guerra de Winston Churchill que encomendou e aprovou o Relatório de William Beveridge (ele próprio um liberal), que estabeleceu os princípios do fornecimento da providência pública: princípios – e práticas – reafirmados e garantidos por todos os governos conservadores que se seguiram até 1979. O Estado-providência, em suma, nasceu de um consenso transpartidário do século XX. Foi implementado, na maioria dos casos, por liberais ou conservadores que haviam entrado na política muito antes de 1914, e para quem o fornecimento público de serviços médicos universais, pensões de velhice, subsídios de desemprego e doença, educação gratuita, transportes públicos subsidiados, e os outros pré-requisitos de uma ordem civil estável, representavam não o primeiro estádio do socialismo do século XX, mas o culminar do liberalismo reformista do fim do século XIX. Uma perspectiva muito similar animava o pensamento de muitos apoiantes do New Deal nos Estados Unidos". 

Em “Um tratado acerca dos nossos descontentamentos” (Edições 70, 2010), Tony Judt falava na necessidade de uma nova narrativa moral nas nossas sociedades. No mesmo sentido, se pronunciava Michael Sandel, em “O que o dinheiro não compra” (Presença, 2015): estamos sedentos de um debate sobre o certo e o errado, os objectivos, finalidades, o sentido que queremos imprimir às nossas sociedades. Num texto inserto em “Quando os factos mudam. Ensaios 1995-2010” (Edições 70, 2015), uma obra com selecção e introdução de Jennifer Homans (historiadora e viúva de Tony Judt), sob o título “O que está morto e o que está vivo na social-democracia?” (texto resultante de uma conferência em Nova Iorque, em 2009, do historiador e Professor em Oxford), podemos procurar concretizar o entendimento de Tony Judt acerca dessa narrativa. De um modo muito imediato, essa narrativa impõe colocarmo-nos/colocar-se uma pergunta como central no debate político: quanto custa a humilhação? Colocada de modo paradoxal, porque parece subentender uma dimensão económica quando o autor rejeita o primado do económico na discussão na polis e a sua substituição pelo debate sobre o certo e o errado como caminho indispensável para, depois sim, buscarmos os meios de o traduzir (esse certo e o errado) sempre aproximados, nunca perfeitos – pois cada vez que se procurou a tradução cientificamente perfeita se caminhou para o desastre ("os melhoramentos imperfeitos em circunstâncias insatisfatórias são o melhor que podemos esperar e provavelmente não deveremos querer ir mais além", p.356) -, ela remete, uma vez mais, para a lógica dos direitos de cidadania, da prestação de serviços pelo Estado, de este poder representar uma argamassa de união interpessoal quando se vive um tempo e uma sociedade líquidos – em vez da lógica caritativa, o direito em lugar do favor – como fundamental em lógica social-democrata.

A pergunta “quanto custa a humilhação?”, surge, ainda, no contexto de outras demandas quanto a uma “economia da felicidade” em que instrumentos como o PIB são reequacionados como no célebre relatório, para o Governo francês, em que participaram Joseph Stiglitz e Amartya Sen (Judt elogia os esforços, mas diz que, ainda assim, em tal relatório nunca se saiu do económico; p.357, nota de rodapé 6). Judt argumenta por uma “social-democracia do medo”, assumindo, pois, o carácter “conservador” do que foi conquistado, exibindo como, por múltiplas formas, está a tentar ser destruído (nomeadamente, em privatizações que colocarão, dos caminhos de ferro aos correios, populações remotas fora de jogo). "Uma social-democracia do medo é algo pelo qual vale a pena lutar. Desistir do trabalho de um século é trair aqueles que viveram antes de nós e as gerações vindouras", p.356). Tal como Thomas Piketty, em “O capital no século XXI” (Temas e Debates, 2015), Judt não assume, nunca, neste texto, o desejo de novas conquistas ou desejos (refere, aliás, que a social-democracia foi vítima do seu próprio sucesso. Recorde-se, aliás, que Picketty sustenta que "novas conquistas" ou "direitos" (sociais) implicariam, nomeadamente, mais impostos e que na Europa Ocidental a tributação, com as suas diferenças e nuances, é considerável e as populações não estarão disponíveis para um aumento na fiscalidade. Nas palavras de Judt, "em vez de procurarmos restaurar a linguagem do progresso optimista, devíamos começar por reanalisar o passado recente (…) [recordando] ao público as conquistas do século XX e as consequências prováveis do nosso desmantelamento apressado das mesmas"(p.354). 

É interessante, adicionalmente, perceber de que mundividência, de que mundo da vida, de que vocabulário – e a tradição a que pertence – usado pela social-democracia, em termos históricos: "no passado, a social-democracia preocupou-se inquestionavelmente com o certo e o errado, sobretudo porque herdou um vocabulário ético pré-marxista imbuído de antipatia cristã aos extremos de riqueza e à idolatria ao materialismo" (p.354) Muito próximo de Sandel, Judt formula as questões que julga que temos, hoje, que colocar: "o que consideramos instintivamente errado nos nossos esquemas actuais e o que podemos fazer em relação a eles? O que consideramos injusto? O que ofende o nosso sentido de correcção quando somos confrontados com a prática irrestrita do lóbi pelos ricos a expensas dos demais? O que perdemos? As respostas a estas perguntas deviam assumir a forma de uma crítica moral às inadequações do mercado irrestrito ou do Estado tíbio. Temos de compreender porque é que ofendem o nosso sentido de justiça e equidade. Em suma, temos de regressar ao quadro dos fins". O inicio do ensaio “O que está morto e o que está vivo na social-democracia?”, Tony Judt faz-nos recordar as excelentes páginas resultantes do seu diálogo com o (também) historiador Timothy Snyder, “Pensar o século XX”, consagradas à Europa central – muito em particular, ao mundo austríaco e seus influentíssimos pensadores no século XX -, para nos recordar a presente crise e seu modo de abordar como "ecos" do debate, com 70 anos, entre Hayek e Keynes.

O historiador social-democrata escreve que não se compreende o momento pelo qual passamos nestes anos e o debate intelectual que se seguiu se não recuarmos ao momento genesíaco da Viena com um governo socialista, com planeamento central, que seria derrubado com a ascensão dos nazis. Hayek lerá – mal, segundo Judt – aquele sucesso histórico como o falhanço de um modelo de planeamento, "dirigido pelo Estado, os serviços públicos municipais e a actividade económica colectivizada" (p.342) que tinha permitido, pelo seu fracasso, que o totalitarismo assomasse à sua cidade e a toda a Áustria, levando-o ao exílio. A conclusão era clara: 

"a melhor maneira de defender o liberalismo [democracia], a melhor defesa de uma sociedade aberta e das suas liberdades, era manter o governo longe da vida económica. Se o Estado fosse mantido à distância, se os políticos – por muito bem-intencionados que fossem – fossem impedidos de planear, manipular ou dirigir os assuntos dos seus concidadãos, os extremistas da esquerda e da direita não teriam hipóteses" (p.342). Eis a origem, no que ao século XX diz respeito, de uma resposta político nos termos do liberalismo económico. Por sua vez, John Maynard Keynes colocou o acento na incerteza, na ausência de proteção como chaves hermenêuticas para a compreensão da grande crise que levou a Europa à Guerra: "a essência do seu contributo para a teoria económica foi a sua insistência na incerteza: em contraste com as receitas confiantes da economia clássica e da economia neoclássica, Keynes sublinhou a imprevisibilidade essencial dos assuntos humanos. Se havia uma lição a tirar da depressão, do fascismo e da guerra, era a seguinte: a incerteza – elevada ao nível da insegurança e do medo colectivo – era a força corrosiva que tinha ameaçado e poderia ameaçar de novo o mundo liberal [democrático]" (p.342). Eis a origem de uma resposta política nos termos da social-democracia. Assim sendo, temos que Keynes "procurou um papel acrescido para o Estado da segurança social, incluindo mas não limitado à intervenção económica em contraciclo. Hayek propôs o contrário. No clássico “O caminho para a servidão”, publicado em 1944, ele escreveu: ‘Nenhuma descrição em termos gerais pode dar uma ideia adequada da semelhança entre uma grande parte da literatura política inglesa actual e as obras que destruíram a crença na civilização ocidental na Alemanha e criaram o estado de espírito no qual o nazismo pôde prosperar.’

Por outras palavras, Hayek projectou explicitamente um desfecho fascista caso os trabalhistas chegassem ao poder em Inglaterra. E chegaram. Mas acontece que implementaram muitas políticas directamente identificadas com Keynes. Nas três décadas seguintes, a Grã-Bretanha (e grande parte do mundo ocidental) foi governada à luz das preocupações de Keynes" (p.343).

Para Judt, a social-democracia, a formação de um Estado social robusto depende de uma sociedade com certo grau de homogeneidade – "a disponibilidade para pagar serviços e benefícios para terceiros assenta no entendimento de que eles farão o mesmo por nós e pelos nossos filhos – porque são como nós e vêm o mundo como nós" (p.340). Eis uma explicação possível para que o socialismo (democrático) nunca tenha colhido nos EUA, eis dificuldades hodiernas com a questão da integração de migrantes – com outra mundividência – nas sociedades ocidentais, eis, ainda, perigos que a pouca confiança interpessoal na sociedade portuguesa pode acarretar. Marcando sempre o ponto quanto à necessidade de o debate ir bem mais além da discussão económica, recorre, et pour cause, à Teoria dos Sentimentos Morais. É com Adam Smith que concluímos este ponto: a "predisposição para admirar e quase idolatrar os ricos e os poderosos e para desprezar ou, pelo menos, negligenciar as pessoas pobres e de baixa condição (…) é (…) a causa maior e mais universal da corrupção dos nossos sentimentos morais" (p.346). Anota Judt: "Pois assim estamos agora".

9. Uma das infinitas discussões em política é acerca da (in)existência do Centro. Diogo Freitas do Amaral, cientista político de boa memória, um homem de Estado que se reclamou centrista e equidistante da “direita” e da “esquerda” acreditava, efectivamente, que o Centro existe, possui conteúdo(s) concretos, deixando-nos um interessante contributo sobre a matéria. Se o Centro existe, então o que é?

"O Centro, em política, é a atitude e o espaço político daqueles que se situam à esquerda da Direita e à direita da Esquerda. São, em regra, pessoas moderadas e dialogantes; no plano das ideias políticas, aceitam a economia de mercado defendida pela Direita democrática, mas advogam uma forte intervenção do Estado para alcançar a Justiça Social, tal como defende a Esquerda democrática; distinguem-se desta por verem grandes inconvenientes numa economia demasiado estatizada; e são diferentes dos conservadores e liberais, porque não acreditam numa economia de laissez-faire e com fraca protecção social, antes preconizam um sólido welfare State, dentro de limites financeiros razoáveis.

Há duas ou três definições conhecidas, e que reputamos interessantes, do que é o Centro, em política: «o Centro é a posição em que alguém se senta para, com os votos da Direita, fazer uma política de centro-esquerda» (Georges Bidault) – ou, podemos nós acrescentar, para o contrário disso: com os votos da Esquerda, fazer uma política de centro-direita (atitude da chamada «terceira via»).

O padre Henri Lacordaire, democrata-cristão (1802-1861), escreveu muito acertadamente, contra o capitalismo liberal, e em nome dos valores evangélicos de protecção à pobreza: «Entre o rico e o pobre, é a liberdade que oprime e a lei que liberta». Entenda-se: a opressão dos trabalhadores vem da liberdade total dos capitalistas, pelo que a justiça devida aos primeiros depende do intervencionismo do Estado com base na lei.

Para nós, o Centro é a posição intermédia entre os individualistas e os colectivistas, que procura harmonizar os direitos da pessoa com as exigências do bem comum, e baseia a sua intervenção política no pressuposto (tornado bastante evidente no século XX) de que o Estado não pode dispensar o mercado, nem o mercado pode dispensar o Estado.

Governar ao centro é a ambição normal da Direita e da Esquerda democráticas, para alargarem o mais possível a sua base social de apoio; só em tempos de crise é que a Direita governa inteiramente à direita, e a Esquerda inteiramente à esquerda.

Quanto aos partidos centristas – com larga tradição em França, Itália, Alemanha, Benelux e países nórdicos -, podem optar por uma de várias políticas de alianças: ou sempre com a Direita moderada (como nos países nórdicos); ou sempre com a Esquerda moderada (como na França da III e IV Repúblicas); ou umas vezes com a Direita, outras com a Esquerda, conforme as circunstâncias políticas e os resultados da aritmética eleitoral (como habitualmente sucede com o Partido Liberal alemão, com o Partido Liberal Reformista de Inglaterra, e como também sucedeu em Portugal, com o CDS na sua fase centrista – quando, após dois anos na Oposição moderada (1976-1977), fez uma aliança de Governo com o PS (1978) e, logo a seguir, com o PSD e o PPM (1980-1983).

Os partidos centristas, por terem programas de natureza mista (ideias de Direita e de Esquerda) e uma política de alianças aberta, por igual, a entendimentos quer com a Direita, quer com a Esquerda – o que muitos eleitores não percebem ou não gostam -, raramente são maioritários. Exceptua-se o caso do Zentrum Partei, criado na Alemanha em 1899 («Congresso de Mainz»), que se tornou no maior partido do país logo em 1901 e se situava à esquerda dos Conservadores, herdeiros de Bismarck, mas à direita dos Socialistas (Sociais-Democratas – SPD, partido criado no «Congresso de Gotha», em 1875); e também o caso da Unión del Centro Democrático (UCD), liderada por Adolfo Suárez na Espanha, em 1977-1981, que conduziu – com brilho e com êxito – um processo exemplar de transição pacífica da Ditadura para a Democracia". (Diogo Freitas do Amaral, “Uma introdução à política”, pp.395-397.

10. Na esteira de um artigo de Mark Lilla, em uma edição da New York Review of Books em 2018, Paulo Pena destacava, nos anos mais recentes, um movimento político, em torno da revista “Limite”, em França, que “parece juntar partes inconciliáveis do puzzle político que nos habituámos a conhecer. É conservadora em termos sociais (antieutanásia, assumidamente católica). Mas mostra orgulhosamente um discurso económico que parece tirado do movimento Occupy Wall Street. É (…) anti-Bolsonaro. Defende o conservadorismo indo buscar o Camus ideal.” (“Há uma nova direita a nascer em França pós-coletes amarelos”, DN, 16-12-2018, p.30).

Ora, só quem assumiu como inevitável uma configuração “liberal-conservadora” (liberalismo na economia e conservadorismo nos valores) como polarizadora de um eixo-político, observará como “partes inconciliáveis” a conjugação vinda de descrever. Desde logo, impor-se-ia, até, começar por problematizar a coerência do par político aparentemente tido como “óbvio” (“liberal-conservador”): “num curioso paradoxo, o ilimitado capitalismo de mercado livre que ameaça com a dissolução as velhas comunidades culturais e religiosas da América protestante é constantemente vangloriado pelos representantes políticos dessas mesmas comunidades. (…) O choque entre lealdades culturais e sociais e os imperativos da mudança económica constitui um velho dilema para aqueles conservadores sociais e culturais que são ao mesmo tempo adeptos dedicados das doutrinas económicas liberais. Tal como notou um dos mais distintos filósofos políticos e éticos norte-americanos, Gary Wills, “não há nada menos conservador do que o capitalismo, sempre tão impaciente pela novidade” (Anatol Lieven, “América a bem ou a mal”, Tinta da China, 2007, pp.34-35).

Como explica, de modo sagaz, Jean-Claude Micheá, citado por Alain de Benoist, o liberalismo económico da direita e o liberalismo societal da esquerda reclamam-se mutuamente, porque partem dos mesmos pressupostos (maxime, o humano como ilha): 

“Jean-Claude Michéa, seguido por Charles Robin, demonstrou perfeitamente que o liberalismo económico «de direita» e o liberalismo societal «de esquerda» estão destinados a juntarem-se porque partem dos mesmos postulados fundadores. 

‘O liberalismo económico integral (oficialmente defendido pela direita) traz, pois, consigo a revolução permanente dos costumes (oficialmente defendida pela esquerda), assim como esta última exige, por sua vez, a liberalização total do mercado’ (Jean-Claude Michéa) 

(…) Slogans de Maio de 68 como «gozar sem entraves» e «é proibido proibir» eram slogans tipicamente liberais. A esquerda, hoje, dá-se bem no liberalismo societal na medida em que se converteu completamente ao liberalismo económico mundializado.” (Alain de Benoist, “Liberalismo: despolitização, politização e liberdade”, in António Bento e José Manuel Santos (org.), “Neoliberalismo Liberdade Governo”, Documenta, 2019, pp.72-73).

A antropologia de que partem os defensores de um liberalismo económico a outrance favorece o império de uma suposta “autonomia da vontade” erigida a critério absoluto em qualquer âmbito – o caminho está terraplanado pela ideia do homo economicus egoísta, centrado nos seus interesses, híper racional (de uma racionalidade instrumental), cuja única motivação seria a maximização do lucro, sem nenhuma obrigação para com os demais senão as advindas de contrato…descrição pobre do humano -, mas em nada difere das bases em que assenta, por exemplo, o argumento pedestre e demagógico, servido em doses ultra (muito particularmente, nas redes sociais; e aqui, na apreciação do argumento, até independentemente das concepções de cada um), acerca de um debate tão sério como o da eutanásia, nos seguintes termos: “se esta for aprovada, quem a não quer realizar em nada fica prejudicado; que a não realize. Mas deixe quem quer realizá-la” – como se a aprovação da mesma não tivesse um manifesto e imediato impacto social e não afectasse, por consequência, todos; como se cada cidadão e pessoa não tivesse nada a ver com os demais. Enquanto uns clamam contra os neoliberais na economia, outros fazem-no relativamente aos libertários no âmbito dos costumes…alimentando-se, porém, reciprocamente (“a filosofia libertária não está bem delimitada no espectro político. Os conservadores que defendem políticas económicas de laissez-faire muitas das vezes afastam-se dos libertários em questões culturais como as orações na escola, o aborto e as restrições à pornografia. E muitos defensores do Estado-providência têm opiniões libertárias sobre questões como os direitos dos homossexuais, os direitos reprodutivos, a liberdade de expressão e a separação entre o Estado e a Igreja”. Michael Sandel, “Justiça – fazemos o que devemos?, Presença, 2011, p.70).

Não é a Doutrina Social da Igreja tantas vezes descrita, não sem razões (e várias encíclicas papais para o sustentar, da “Rerum Novarum” à “Laudato Si”, passando pela “Laborem Exercens”, para dar apenas três exemplos), como “progressista” na economia e “conservadora” nos valores? Assim, muito mais do que estranho, o “ecumenismo” (conservadorismo nos valores, progressismo económico, a que se junta um ecologismo defendido acerrimamente) de que dava nota Lilla na New York Review of Books, de que lançavam mão os jovens intelectuais (nomeadamente, católicos) na “Limite”, em anos recentes, era perfeitamente congruente: “as visões destes jovens conservadores sobre a família e a sexualidade são católicas tradicionalistas. Mas a forma como as defendem é estritamente secular: "querem regressar a um ideal de "família forte" para combater o "individualismo radical". A novidade, aponta Lilla, é que "pensemos o que pensemos sobre estas ideias conservadoras sobre a economia e a sociedade, elas formam uma leitura coerente". E isso contrasta com a crise actual das ideias dominantes” (Paulo Pena). 

No Daily Telegraph de 19 de dezembro de 2019, Phillip Blond, filósofo político, diretor do think tank ResPublica, considerava que se a vitória dos tories nas legislativas britânicas tinha sucedido, era porque tinham adoptado a estratégia de subscrever um programa de “conservadorismo vermelho”: “A estratégia do "conservadorismo vermelho" (política de esquerda para a economia e política de direita para as questões socioculturais), que eu defendo há muito tempo, foi aplicada para as eleições de 12 de dezembro.  O resultado confirmou que era necessário arregimentar o eleitorado da classe trabalhadora, fiel aos trabalhistas, para além dos bastiões endinheirados que os conservadores costumam cortejar; que era necessário ouvir os trabalhadores de "colarinho-azul", uma estratégia inicialmente lançada, e a justo título, por assessores da ex-primeira-ministra Theresa May.  Adeus ao método de David Cameron, primeiro-ministro de 2010 a 2016, que visava apenas os eleitores liberais da classe média.” (Phillip Blond, “Conservadores, o novo Partido Trabalhista”, in “The Daily Telegraph”, 19-12-2019, traduzido por Aida Macedo para o “Courrier Internacional”, nº288, fevereiro 2020, p.41.). Chame-se-lhe “conservadorismo vermelho” ou, visto pela inversa, “progressismo conservador” pouco importa: também no Reino Unido a perspectiva de atender, claramente, a uma economia com fortes e densas preocupações sociais e, bem assim, em temas de costumes/culturais, da mesma forma, não partir, de pressupostos libertários (o homem como ilha, que nada tem que ver com os demais; o indivíduo isolado e não a pessoa relacional) foi considerada (sendo, é certo, que no passo vindo de citar, porventura, dados os termos utilizados, uma perspectiva tática também relevasse). 

No seu monumental “Pós-Guerra – História da Europa desde 1945” (Edições 70, 2006), Tony Judt explica o devir da democracia-cristã no pós-II Guerra Mundial: 

“na Europa de 1945, isso ainda era muito importante: os votos católicos mantinham-se fortemente conservadores, sobretudo quanto às questões sociais e nas regiões onde havia uma forte prática católica. Os eleitores católicos tradicionais em França, na Bélgica, na Holanda e no Sul e Oeste da Alemanha raramente votariam nos socialistas e quase nunca nos comunistas. No entanto, e esta era a peculiaridade da época do pós-guerra, os católicos conservadores de muitos países não tinham muitas vezes alternativa a votar nos democratas-cristãos, apesar da tendência reformista dos políticos e das políticas desta orientação, porque os partidos convencionais de direita, ou estavam sob suspeita, ou tinham sido completamente banidos. Até os conservadores não católicos se viravam cada vez mais para os democratas-cristãos como barreira contra a esquerda «marxista». (…) uma grande parte da atracção das mulheres pelos partidos democratas-cristãos resultava do seu programa. Em contraste com o tom cronicamente insurreccional da retórica usada até pelos partidos socialistas e comunistas mais moderados, os democratas-cristãos proeminentes, como Maurice Schumann e Georges Bidault em França, Alcide De Gasperi em Itália e Konrad Adenauer na República Federal da Alemanha, sempre puseram a ênfase na reconciliação e na estabilidade.

A democracia-cristã evitou os apelos baseados em classes sociais e enfatizou, em vez disso, as reformas sociais e morais. Insistiu sobretudo na importância da família, um tema propriamente cristão e com implicações políticas importantes numa época em que as necessidades das famílias monoparentais, dos sem-abrigo e das famílias na pobreza nunca tinham sido tão grandes. Assim, os partidos democratas-cristãos estavam em posição ideal para obter vantagens a partir de quase todos os aspectos das condições de vida do pós-guerra: o desejo de estabilidade e de segurança, a expectativa de renovação, a ausência de alternativas tradicionais de direita e as expectativas investidas no Estado, porque, ao contrário dos políticos católicos convencionais da geração anterior, os líderes dos partidos democratas-cristãos e os seus jovens seguidores mais radicais não se coibiam de envolver o poder deste último na realização dos seus objectivos. Quando muito, os democratas-cristãos dos primeiros anos do pós-guerra consideravam que os seus principais opositores eram os liberais adeptos do mercado livre, e não a esquerda colectivista, e desejavam demonstrar que o Estado moderno podia ser adaptado a formas não socialistas de intervenção benéfica (…)”. 

No derradeiro auto-retrato político que nos deixou, com a publicação do seu terceiro volume de memórias (políticas), Diogo Freitas do Amaral escrevia com clareza: 

“As palavras do Evangelho são claríssimas sobre os deveres dos cristãos para com a pobreza. Pena é que a maioria dos governantes ocidentais, desde a era Reagan-Thatcher, pensem mais nos bancos, nas empresas e no dinheiro do que nas pessoas, nos doentes e na pobreza. Quando digo isto, chamam-me «Freitas revolucionário», mas não o sou. Sou, sim, um social-cristão. Nunca quis acabar com os ricos, mas sempre quis fazer tudo o que fosse possível para diminuir a pobreza. (…) Entretanto, veio a era «Reagan-Thatcher», que pôs em prática as ideias neoliberais de Friedrich Hayek e Milton Friedman. Em resumo, o que eles vieram dizer de novo foi o seguinte: é preciso restaurar o capitalismo liberal do século XIX para que as economias cresçam e os países progridam; o Welfare State (Estado Social) já foi longe de mais e ameaça as liberdades individuais e a propriedade privada; as ideologias socialista, social-democrata e democrata-cristã pecam todas por sobrecarregar de impostos as empresas e os empresários, que por isso não podem investir o suficiente para criar riqueza e emprego, e por serem demasiado generosas para com os trabalhadores, os desempregados, os reformados e os mais desfavorecidos em geral, que perdem a noção do dever de trabalhar, e vivem à custa do Orçamento. Por isso, os Estados e as empresas estão endividados e não investem, a economia não cresce ou entra em recessão, e o desemprego atinge números alarmantes. Em resumo, os ultraconservadores e os neoliberais pensam que é preciso reagir com grande firmeza contra as políticas sociais pós-1945. E proclamam com a maior desfaçatez: «ou o capitalismo consegue acabar com o Estado Social, ou o Estado Social acabará com o capitalismo». (…)

A meu ver, eles só têm razão numa coisa: se o Estado Social custar mais do que os impostos e as outras receitas ordinárias do Tesouro puderem pagar, o défice orçamental terá de ser financiado pelo recurso à dívida pública, e esta pode a certa altura tornar-se insustentável. O grande erro dos neoliberais está, porém, em quererem levar o indispensável rigor no controlo da despesa pública para além do necessário: em vez de conterem a despesa pública dentro dos limites fixados pelo Orçamento, o que eles querem é ir além disso, reduzir a despesa social, eliminando ou diminuindo fortemente as funções sociais do Estado, por razões ideológicas, e não apenas por razões financeiras. Subjacente a esta ideia está, obviamente, o interesse económico dos mais favorecidos – pagar menos impostos – e a insensibilidade dos mesmos para com a situação dos mais pobres – privando-os de apoios sociais, ainda que situados em níveis baixos”. E, amargamente, questionava-se, em palavras que repetiria nesse volume: “Porque não falam os católicos esta linguagem? Porque não tem êxito em Portugal a Democracia Cristã?” 

(Diogo Freitas do Amaral, “Mais 35 anos de democracia. Um percurso singular. Memórias políticas III” (1982-2017), Bertrand, 2019, pp.213-222). 

Esta sua última interrogação, aliás, remete-nos para a ausência de qualquer partido, no contexto português, que assuma o duplo predicado enunciado neste ponto (10) do presente excurso e, de aí, o repto a ou o avançar para um movimento politico desta natureza (entre nós), ou um especial cuidado no discernimento da leitura da proposta programática, e o que cada tempo mais reclamará, de entre a oferta partidária existente.

Um dos capítulos da “História do Pensamento Político Ocidental” (Almedina, 2011), de Freitas do Amaral, é sobre o Papa Leão XIII. E, detido sobre a encíclica “Rerum Novarum”, explica o Professor de Direito Administrativo que o Direito do Trabalho nasce por sua influência "expressa" (com a identificação de uma parte mais frágil na relação laboral) e que também o Estado Social ou Estado Providência vai directamente beber a uma das expressões da dita encíclica que diz que o "Estado providencia" a defesa da parte mais fraca. Freitas do Amaral cita Ruetten, no qual se apoia. Na “Rerum Novarum”, assistimos a uma 

“dupla condenação do socialismo radical e do capitalismo liberal. Os católicos conservadores esperavam do Papa que se limitasse a condenar o socialismo; e os socialistas não acreditavam que qualquer Papa condenasse o capitalismo, tal como então existia. Mas Leão XIII não se deixou impressionar nem por uns nem por outros e abriu caminho a uma posição intermédia, que primeiro se chamou acção popular cristã e, depois, democracia cristã, a qual pode resumir-se assim. Por um lado, o socialismo radical é condenável, não só por ser materialista e ateu, mas também porque apregoa a violência e, preconizando a abolição completa da propriedade privada, contraria o Direito Natural, priva o homem dos frutos do seu trabalho (ou do trabalho dos seus pais e avós) e, querendo transferir os meios de produção para o Estado, levará à supressão da liberdade individual e, portanto, à tirania. Por outro lado, é também condenável o capitalismo liberal da época, porque os "ricos" e os "patrões" não devem tratar o operário como escravo", nem, "usar os homens como vis instrumentos de lucro", ou "estimá-los na proporção do vigor dos seus braços". O Papa afirma que o Cristianismo "proíbe também os patrões que imponham aos subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo”. E Leão XIII faz uma solene chamada de atenção aos ricos e poderosos, que permanece hoje tão acutilante como há 120 anos:

"Não importa nada para a bem-aventurança eterna que abundeis em riquezas ou outros bens (…): o uso que deles fizerdes é que interessa. (…) Os afortunados deste mundo são advertidos de que as riquezas (…) não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstáculo: que eles devem temer diante das ameaças severas de Jesus Cristo profere em relação aos ricos"; e "que, enfim, virá um dia em que deverão prestar a Deus, seu juiz, contas muito rigorosas do uso que hajam feito da sua fortuna". Para além destas posições de principio – e ao contrário do que os socialistas radicais logo lhe criticaram -, Leão XIII não se ficou pelos deveres de justiça, caridade e esmola dos ricos relativamente aos pobres. Foi muito mais longe e, a par do seu dever de acção politica e social dos católicos no mundo das coisas terrenas, o Papa proclamou a necessidade de intervenção do Estado na economia e preconizou a criação de sindicatos cristãos. (…) Leão XIII não se limitou tão-pouco a enunciar um princípio geral: foi mais longe e, ousadamente para a época, apresentou um programa de medidas concretas orientadas para a justiça social, sem pôr nunca em causa – ao contrário do socialismo colectivista – a legitimidade da propriedade individual e da empresa privada. De entre as medidas preconizadas, destacaremos as mais importantes que à época eram novidade absoluta ou só tinham sido adoptadas em muitos poucos países: necessidade da intervenção do Estado na "questão social" em nome do bem comum; estabelecimento da "justiça distributiva" e, em especial, criação do imposto progressivo; afirmação de que compete ao Estado fazer tudo quanto estiver ao seu alcance para evitar as greves e, nomeadamente, "impedir a explosão da violência, removendo a tempo as causas de que se prevê venham a nascer os conflitos entre operários e patrões"; defesa da necessidade de garantir o descanso dominical, limitar o horário de trabalho, proibir o trabalho infantil, regulamentar o trabalho das mulheres, e encurtar o tempo de trabalho em situações particularmente penosas (v.g., o das minas, pedreiras e de outras tarefas nocivas à saúde); enfim, dignificando o trabalho como inerente à condição humana, o Papa defende a estrita necessidade do "salário justo" – que (como diz) não é sempre resultante dos contratos acordados, pois acima da vontade das partes "está uma lei de justiça natural", que impõe que a cada trabalhador seja pago um salário adequado e "suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família", incluindo uma parcela que possa ser destinada à poupança (…) Se ainda hoje, em muitos países e em vários sectores da economia, certas directivas parecem revolucionárias, ou demasiado reivindicativas, imagine-se o efeito que tiveram em finais do século 19, quando entre os defensores do capitalismo liberal e os arautos da revolução proletária, designadamente os marxistas, ainda não tinha surgido qualquer tentativa de "3ºa. via". A doutrina Social da Igreja foi a primeira – e, por algum tempo, a mais influente "corrente intermédia" a aparecer no panorama do pensamento político e económico após a Revolução Industrial. Mas, de início, não agradou muito, ou não agradou mesmo nada, aos católicos conservadores e aos neocorporativistas. Conta-se que o marquês de La Tour du pin – católico reformista, mas menos avançado – terá dito a Leão XIII sobre a encíclica Rerum Novarum: "Mas, Vossa Santidade, o que vós defendeis é o socialismo!". Ao que o Papa terá respondido: "Não sei se, para ti, meu filho, será socialismo. Para mim, é puro cristianismo!" (…). Neste contexto, a Rerum Novarum explodia como uma bomba: era o próprio Papa – sempre considerado, por amigos e inimigos, como pilar fundamental da ordem social estabelecida – que vinha dar razão, em boa parte, aos trabalhadores; incentivava-os a associarem-se, inclusive através de sindicatos, para melhor defenderem os seus direitos frente a patrões injustos; e proclamava a legitimidade e a urgência de um vasto conjunto de reformas sociais. Entre o abstencionismo do Estado liberal, conservador do "status quo", e o colectivismo total da sociedade socialista preconizada por alguns, mas nunca ensaiada por ninguém até à época, foi pela mão do intervencionismo (católico na Europa continental, protestante na Inglaterra e na América), que se passou do Estado liberal para o Estado social. Estas ideias, e a evolução das leis e dos factos sociais, não foram bem acolhidas por muitos cristãos, designadamente os mais conservadores e, sobretudo, os que eram, eles próprios, capitalistas. É certo que a Rerum Novarum, por si só, não dizia tudo o que o futuro veio a revelar necessário: mas disse o essencial para mudar de vez os termos em que a "questão social" estava colocada até ali e, assim, abriu caminho ao modelo contemporâneo do Estado Social europeu. Na base desta nova concepção, encontrava-se um valor fundamental até aí agora ignorado ou muitas vezes esquecido – a dignidade do Homem, "A ninguém é lícito – proclamou Leão XIII, na mesma encíclica – violar impunemente a dignidade do Homem"”. 

11. Desde meados dos anos 70 que os melhores estudos mostram o declínio do voto classista. O eleitorado torna-se, pois, mais volátil, faz demandas mais complexas e fragmentadas. Mais difícil, assim, a resposta dos partidos, formatados como partidos-contentores, no pós-modelo fordista, em que tu está em su sítio. Decai, ainda, o voto ideológico, programático e a personalização é a pedra de toque (a ideologia é um conceito que terá sido usado, pela primeira vez, por Antoine Destutt de Tracy, entre 1796 e 1798, numa colecção de fascículos apresentados ao Instituto Nacional de Paris sob o título Mémoire sur la faculte de penser; com o termo, o autor pretenderia lançar as bases para uma ciência das ideias; cf. André Freire, “Esquerda e Direita na política europeia”, p.37; ora, a ideologia assume papel/função decisivos: 

“estamos a transbordar de informações de todo o tipo que superam francamente as nossas possibilidades de assimilação e comprovação directa. Não está ao alcance da nossa capacidade individual fazer uma ideia cabal do funcionamento dos mercados financeiros, das complexidades da geopolítica ou dos pormenores orçamentais. Estamos debaixo de uma pressão que nos obriga a opinar sobre os assuntos mais diversos, sem interrupção, com escassez de tempo e desprovidos de capacidade para os comprovarmos pessoalmente ou para os medirmos com o critério da nossa experiência segura. Uma das primeiras funções das ideologias, dos partidos políticos e dos sindicatos é simplificarem e esquematizarem o mundo social. Dito por outras palavras, ao estilo kantiano: a própria opinião é formada pelas ideologias a partir da confusão das informações mediante o a priori dos interesses de grupo. Reduzem a contradição que existe entre a obrigação de opinar e a capacidade de opinar que sente qualquer pessoa que é bombardeada diariamente com assuntos sobre os quais não tem experiência directa nenhuma (…). Há um mínimo de integração ideológica que é necessário para pré-configurar uma vontade política coerente e uma acção política que tenha um mínimo de constância. Graças às ideologias traçam-se objectivos políticos e estabelecem-se solidariedades entre os diversos agentes; trata-se de categorias que nos permitem saber quem somos e o que devemos saber, que estabelecem distinções fundamentais em virtude das quais nos podemos permitir fazer uma primeira tentativa para nos orientarmos no espaço público. Que os principais conceitos fornecidos pelas ideologias – direita e esquerda, economia social de mercado, Estado-Providência, intervenção humanitária, liberalização, pluralismo, solidariedade – sejam pouco precisos não é uma carência, mas antes uma condição de possibilidade da sua eficácia política (…) É justamente devido à sua inexatidão que elas nos proporcionam um mínimo de orientação sem a qual a acção política seria impossível: fixam a opinião, tornam possível o sentido de pertença, estabelecem algumas cumplicidades, mobilizam-nos ou dissuadem-nos.” Daniel Innerarity, “A política em tempos de indignação”, pp.125-126). 

Com o plus de esta, a personalização (para Manuel Maria Carrilho, as ideologias “dissolveram-se, acabaram. Diz-se que a social-democracia está em crise. Então, e o liberalismo, a democracia-cristã, o comunismo, não estão? Por outro lado, o tempo só existe como presente, o passado e o futuro desapareceram. E sem dimensões de médio/longo prazo não pode haver convicções nem estruturar projectos. O presentismo bloqueia tudo”, sendo que o Catedrático de Filosofia observa o ecologismo e o feminismo como candidatos ao papel de ideologias, mas sem capacidade de mobilização colectiva. Para Carrilho, ainda, foi o Estado, ao desobrigar o indivíduo de pensar em coisas como poupar para a educação dos filhos, para cuidar da sua saúde ou para sustentar a sua reforma quem criou o individualismo contemporâneo, do mesmo modo que criou o mercado – vide Manuel Maria Carrilho, “Sem retorno”, Grácio, 2021, pp.130-133), não recair em representantes conhecidos, mas em produtos fabricados pelo marketing, gente longínqua que nos chega pelos ecrãs. E, no entanto, os que acreditavam nas promessas miríficas de uma sociedade totalmente horizontalizada, e uma democracia direta na internet, certamente perceberam que partidos não organizados – aparentemente mais fashion e sedutores, sem a carga pesada de outrora – potenciam, por paradoxal que pareça, a liderança autoritária e despótica (a ausência de regulamentos, a ausência de baias, corpo doutrinário a que obedecer, que se intrometam entre a vontade de poder de quem quer exercê-lo totalmente e os direitos e interesses dos representados: "a organização é a arma dos fracos contra o poder dos fortes"). Da esquerda digital à direita que pretende enfraquecer os mecanismos de exigências sociais, o espaço político vem sendo desregulado. Por vezes, partidos monotemáticos, sem ideologia, irrompem em cena. A diferença (necessidade de reconhecimento) como o tópico que parece suplantar, no espaço político, a desigualdade (necessidade de redistribuição) como factor determinante das lutas hodiernas (não é só a economia…). Como que só assentindo na diferença se encontrasse maior igualdade. Como se a diferença entre direitos individuais e colectivos tivesse deixado de fazer sentido (não podendo ser olhados de modo cindido: "os culturalmente excluídos costumam ser economicamente excluídos (…) não existem zonas puramente económicas nem espaços exclusivamente culturais", p.70). No equilibro precário entre o comunitarismo e a privatização das identidades. Exigindo lideranças sensíveis, em que o psicológico/as emoções (essa capacidade de vínculo com o outro) contam, em que a articulação do pluralismo é o grande desafio (Innerarity, “A política em tempos de indignação”).

Há um desfasamento muito grande entre as enormes expectativas do cidadão sobre a política e aquilo que ela pode (fazer, dar). E esta é um fonte de grande decepção. Para criticar a política, ou os políticos, importa, por isso, circunscrever aquilo a que esta se pode ater. Atentemos em constrangimentos hodiernos muito relevantes que se colocam à política e que convém ter presente (a partir de Josep Ramoneda, no Prólogo de “A política em tempos de indignação”): 

“a) o governante já não tem poder absoluto sobre um território, a interdependência cresce e as suas decisões dependem de outros;

b) procura de protecção na autoridade dos especialistas (desresponsabilização);

c) incapacidade de controlar os excessos do dinheiro (ou vários poderes fácticos);

d) instituições não legitimadas democraticamente dão ordens a poderes democraticamente constituídos;

e) a aceleração do mundo (novas tecnologias) contrasta com a lentidão da tomada de decisões da política (procedimento político);

f) nada garante o êxito da opção que se toma (dimensão estrutural na debilidade da política; faz parte da sua condição);

g) escrutínio dos políticos exacerbado em contexto de uma proliferação comunicacional (diferentes media, redes sociais)”

E, paradoxalmente, à medida que ela pode menos, à medida que os Estados estão mais expostos e a soberania sofreu grandes transformações, mais se pede à política. Ela não pode garantir a felicidade. E o regime democrático, por sua natureza, gera desilusão, na medida em que tem em si inscrito o inacabado, o inacabável, é um caminho aberto, por concretizar. Para Innerarity, a dicotomia “tecnocracia vs populismo” será um melhor descritor ideológico, hoje, do que o “direita vs esquerda”. Para os tecnocratas, as limitações, o nada a fazer, o "realismo cínico", os constrangimentos apenas, sem estados de alma, nem necessidade de legitimação das decisões; aos populistas, a ausência de limites, a possibilidade de tudo, o irrefreável, a venda de ilusões como se obstáculos não existissem. Como, no mesmo texto, Innerarity associa a direita a um pragmatismo que mede tudo pela lógica do custo-benefício, sem se importar com grandes expectativas ou transformação da realidade (e, logo, menos propensa a grandes desilusões com o balanço que faz), e a esquerda a viver com dificuldades os entraves que hoje se colocam ao agir dos governos nesta era, tecnocracia e populismo não serão, afinal e radicalmente, dois pseudónimos para o par mais perene, em termos ideológicos, desde 1789? Ganhar-se-á, assim muito, em termos de descrição da realidade (política), em substituir os pólos de dicotomia em questão? Claro, dir-se-á, há populismos de direita, mas o articulado do filósofo político, não vai muito por aí. Por outro lado, entender, como o autor faz, que um dos (três) possíveis pomos de (hipotética) repolitização da sociedade pode passar pela discussão das características pessoais dos candidatos, se perspectivado como um desejo (se, aqui, "pode" significar "deve"), não tem, a meu ver, ganhos claros para o debate político, para uma sociedade com uma discussão (deliberação) qualitativamente mais densa. As ideologias, as narrativas grandiloquentes, geraram, com efeito, justa desconfiança; a política é feita por pessoas, não só de ideias, e seria errado desprezar a dimensão pessoal; o escrutínio dos curricula, das posições de cada aspirante a representante é necessário, mas retomar um maior interesse (societário) pela política, assente, em um dos (três) pilares, por aqui, não me parece que vá produzir os melhores resultados (porque a captura do acessório, do voyeurismo, da pequena intriga teriam pasto de sobeja, em esse contexto). 

13. a) Reconhece o pensador de esquerda (autor de “Pós-capitalismo) Paul Mason (em entrevista ao Ípsilon, Público, 27-09-2019): se são políticos muito à direita, como Trump ou Bolsonaro, que mais têm usado e popularizado as fake news, foi uma certa esquerda pós-moderna que, procurando impugnar a possibilidade de (acedermos à) verdade e adoptou o relativismo como credo, ironia da história, abriu um caminho que acaba por desaguar na pós-verdade, nas narrativas (que cada um escolhe, ou a que cada um adere), no menosprezo dos factos.

b) Contrapõe o outro lado da moeda Innerarity (em “Política para perplexos”, Porto Editora, 2019): se, tradicionalmente, a realidade era de direita, ficando a esquerda acantonada à utopia, à imaginação e criatividade, os tempos agora são bem diversos. Justamente, os factos, a realidade, para políticos de direita como Trump ou Bolsonaro, pouco ou nada conta, irrompendo antes a narrativa como, de longe, o mais importante (e factor de atractividade). Hoje em dia, aliás, conquanto não se veja concorrentes desta via de uma direita extrema manipular os factos com tanta frequência/eficácia, sentencia de modo corrosivo o filósofo político, parece que "os reaccionários são proprietários da criatividade".

14. Depois de duas guerras mundiais de consequências trágicas, na primeira metade do século XX, o mundo entrou, durante décadas, em modo de “guerra fria”, com a divisão em dois blocos ideológicos muito marcados (o “Ocidente” e o “Leste”). Com a queda do muro de Berlim, ter-se-ia chegado ao “fim da história” (Fukuyama), traduzido por uma democracia liberal e uma economia liberal de mercado. Ao “fim das ideologias” – e uma “terceira via” (Giddens) nos anos 90 a aproximar o centro-esquerda dos ideais liberais de mercado – suceder-se-ia, segundo Huntington, um “choque de civilizações”, um embate entre culturas (constelações de valores diferenciados, em países situados geográfica e culturalmente em áreas que se distinguiriam entre si e que batalhariam), perspectiva que os atentados do 11 de Setembro de 2001 tornaria bastante popularizada – ainda que contrariada por outros tantos, como Amartya Sem (cf. “Identidade e Violência. A ilusão do destino”, Tinta da China, 2007), que colocariam o foco no choque intra-civilizacional, nomeadamente, no seio do Islão como determinante, sublinhado o pluralismo de que se compõe cada identidade pessoal, insusceptível de ser apreendida e descrita, meramente, pelo “cultural” assimilado a uma dada religião (o António pode estar mais perto das filiações e visão do mundo de um iraniano do que do vizinho do terceiro esquerdo). A contraposição de valores entre Ocidente e um Islão fundamentalista fez sentir-se, tal como as fortes fracturas no seio desse mesmo Islão, nas últimas duas décadas. 

O início dos anos 2000 marca a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) e, a partir dela, a sua reafirmação e centralidade no quadro internacional, com perdas relevantes para os trabalhadores ocidentais nas deslocalizações para a agora chamada “fábrica do mundo”. O desempenho económico de algumas autocracias prenunciava o “regresso da história” (Robert Kagan), se não considerássemos, já, teocracias e regimes islâmicos alternativas ideológicas ao modelo para o qual, supostamente, a história caminhara e conhecera o seu apogeu (fim como termo/limite melhor, e como teleologia).  

Com a grande recessão de 2007-2008, na sequência da queda do Lehman Brothers, assiste-se, em pleno, à emergência de “populismos” e das chamadas “democracias iliberais” (Fareed Zakaria), colocando, aliás, o tema democrático (erosão democrática) no centro de uma extensa produção de literatura política. Muitos nacionalismos étnicos e/ou religiosos afirmar-se-iam (“só numa era de irreligiosidade massificada podem surgir fenómenos como o Estado islâmico no Iraque e na Síria ou como os rádio e tele-evangelistas nos Estados Unidos ou no Brasil, isto é, fenómenos em que a evocação da religião, obsessiva e fanática, perde qualquer laço com o divino e o religioso propriamente dito”, nota Alexandre Franco de Sá, em “Um, dois, três. Reprodução, cisão e desdivinação como sentidos da secularização, in António Bento, José Maria Silva Rosa e José António Domingues (org.), “Secularização e Teologia Política”, Documenta, 2019, p.166. A observação, a meu ver, seria igualmente válida para o modo como, em Portugal, o líder do Chega passou a brandir esta mesma bandeira).

Com a pandemia da covid19, reapreciou-se o globalismo, a nossa relação com as tecnologias, o resultado avassalador das alterações climáticas.  

Do optimismo ao cepticismo antropológico, da relação com o passado e a tradição, da disputa sobre o estatuto da razão, do papel da autoridade, da concepção privatista ou pública da família, da natureza e papel da religião, da natureza e funções do Estado, da relevância/prioridade do combate ao aumento dos preços e da busca do pleno emprego, da manutenção da ordem num país, do modo de lidar com o estrangeiro/o diferente/o diverso, da forma de regular as plataformas digitais, da postura face à pobreza e/ou desigualdades, do olhar sobre as minorias, do posicionamento face à dicotomia liberdade/segurança, da democracia formal e/ou material, do aprofundamento da democracia representativa ou do avanço da democracia directa, do elitismo, dos fundamentos do Direito, e, logo, dos nossos direitos, do olhar sobre as relações internacionais, inteligência artificial, definição sobre o que é o Homem, humanismo e transhumanismo, alterações climáticas, do lugar da Comunidade, da relevância/centralidade dos direitos e/ou dos deveres dos cidadãos, todo um conjunto de tópicos para se pensar e repensar a identidade político-ideológica (e, nesse repensar, importaria incluir como de há muito exorta Adriano Moreira, para o caso português, o próprio reequacionar das denominações partidárias, tantas vezes afastadas do conteúdo programático e do posicionamento ideológico que (os respectivos partidos) vão sustentando; entre algumas das formulações (de distinções) clássicas, a de Raymond Aron: “De um lado invoca-se a família, a autoridade, a religião; do outro, a igualdade, a razão, a liberdade. Aqui respeita-se a ordem, lentamente elaborada pelos séculos; ali faz-se profissão de fé na capacidade do homem de reconstituir a sociedade segundo os dados da ciência. A direita, partindo da tradição e dos privilégios, contra a esquerda, partindo do futuro e da inteligência” (em “O ópio dos intelectuais”).