28 de dezembro de 1928. Lisboa estava inçada de gentinha malcriada de senha ruim

28 de dezembro de 1928. Lisboa estava inçada de gentinha malcriada de senha ruim


Havia muita gente ofendida com o descaramento alheio. Homens, às vezes ajanotados, que lançavam sobre mulheres e senhoras casadas galanteios deselegantes e, muitas vezes, autênticas obscenidades. Afinal era ou não era um caso de polícia? 


Havia gente incomodada. Que digo eu? Gente incomodadíssima. Por um lado, claro. Pelo outro, Lisboa estava inçada de malta mal educada e essa malta estava-se positivamente nas tintas para os demais. É sempre assim, não é? Tanto faz que seja em 1928 como no final de 2021. Pondo de parte o termo inçado que é coisa que deixou de se usar e é pena porque tem o seu quê de simples e o seu muito de magnífico. “Custe o que custar, faça a polícia o que tem de fazer, é preciso pôr um fim à insolência. Que estranho fenómeno de educação é este que transforma uma cidade num covil de patifes, quase não havendo leis nem sanções capazes de refrear a senha ruim dos malcriados para quem a própria miséria moral chega a ter tida na conta de luxo?”

Dias encantadores, esses, nos quais a simples indelicadeza era encarada com a maior das severidades. Intendente, o dr. João Eloy, personagem responsável por uma notável obra saneadora, homem que criara um novo sistema de investigação criminal, concordava com os queixosos: “Não há polícia suficiente para garantir às pessoas honestas o respeito que se lhes deve. Há por aí muito cidadãozinho que, naturalmente, por passar em casa uma vida repugnante, não hesita em exibir na rua toda a lama de que a sua alma é feita, proferindo e praticando obscenidades que roçam pela infâmia, conduzindo-se, sobretudo para com as senhoras, de maneira a que chega a parecer inacreditável, à força de estúpida e de reles”. 

Ora batatas!, reclamavam os pacatos lisbonenses. E não havia uma Polícia de Pequena Criminalidade? Que andava ela a fazer para pôr um ponto final em tamanhas porcarias que se soltavam impunemente das bocas sujas dessa gentalha porca? Salvo uma ou outra exceção, só era apanhada na rede a arraia miúda e muitos dos prevaricadores apresentavam-se ajanotados nos passeios, atirando xavecos impróprios a mulheres casadas sem revelarem qualquer tino. Como se haveria, então, de os reduzir à sua condição de patifes?

Explicações “Olhe”, dizia o dr. Eloy ao jornalista que lhe ia colocando estas questões, “um dia estava eu preparado para julgar um indivíduo que me chegou detido e acusado de comportamento deselegante perante uma senhora, quando me apareceu uma pessoa de alta condição social a interceder pelo réu. Está a ver? Disse-me o tal senhor que havia lido uma nota de agravo ao corregedor Gomes Loureiro, vinda do Tribunal da Relação, considerando muito mal aplicada a multa de 400$00 por incómodos causados a mulher casada. Fui ler esse acórdão e, francamente, datava de 1907! Isto só para rir, francamente”.

Depois, lançou-se, com convicção, na defesa da polícia que comandava, recusando entrar no negativismo que parecia estar a tomar conta da população lisboeta: “Se fôssemos prender todos os padrinhos dos que na rua se comportam de maneira censurável, não chegariam, só para eles, os calabouços e as cadeias. O desplante chega a ponto de certos fulanos apresentarem a sua sem vergonha como orgulho de civilização refinada… Eles são os modernos, os homens progressivos da época; os outros, os que sabem respeitar e fazer-se respeitados, são os idiotas, os retrógrados, os patetas que se estagnaram nas ronceirices do passado. Que quer você? Estamos perante um problema grave, sim senhor, mas de educação e de civilização, não tanto de polícia”.

E ainda há quem, hoje em dia, se queixe de um ou outro piropo, tenha ele chiste ou não tenha, atirado a uma rapariga que passe no seu sossego. Nesse dezembro de 1928, o desrespeito pelas senhoras quase que abria uma guerra entre cidadãos e forças da ordem. Uma Lisboa inçada de malcriados, era o que era.