Havia gente incomodada. Que digo eu? Gente incomodadíssima. Por um lado, claro. Pelo outro, Lisboa estava inçada de malta mal educada e essa malta estava-se positivamente nas tintas para os demais. É sempre assim, não é? Tanto faz que seja em 1928 como no final de 2021. Pondo de parte o termo inçado que é coisa que deixou de se usar e é pena porque tem o seu quê de simples e o seu muito de magnífico. “Custe o que custar, faça a polícia o que tem de fazer, é preciso pôr um fim à insolência. Que estranho fenómeno de educação é este que transforma uma cidade num covil de patifes, quase não havendo leis nem sanções capazes de refrear a senha ruim dos malcriados para quem a própria miséria moral chega a ter tida na conta de luxo?”
Dias encantadores, esses, nos quais a simples indelicadeza era encarada com a maior das severidades. Intendente, o dr. João Eloy, personagem responsável por uma notável obra saneadora, homem que criara um novo sistema de investigação criminal, concordava com os queixosos: “Não há polícia suficiente para garantir às pessoas honestas o respeito que se lhes deve. Há por aí muito cidadãozinho que, naturalmente, por passar em casa uma vida repugnante, não hesita em exibir na rua toda a lama de que a sua alma é feita, proferindo e praticando obscenidades que roçam pela infâmia, conduzindo-se, sobretudo para com as senhoras, de maneira a que chega a parecer inacreditável, à força de estúpida e de reles”.
Ora batatas!, reclamavam os pacatos lisbonenses. E não havia uma Polícia de Pequena Criminalidade? Que andava ela a fazer para pôr um ponto final em tamanhas porcarias que se soltavam impunemente das bocas sujas dessa gentalha porca? Salvo uma ou outra exceção, só era apanhada na rede a arraia miúda e muitos dos prevaricadores apresentavam-se ajanotados nos passeios, atirando xavecos impróprios a mulheres casadas sem revelarem qualquer tino. Como se haveria, então, de os reduzir à sua condição de patifes?
Explicações “Olhe”, dizia o dr. Eloy ao jornalista que lhe ia colocando estas questões, “um dia estava eu preparado para julgar um indivíduo que me chegou detido e acusado de comportamento deselegante perante uma senhora, quando me apareceu uma pessoa de alta condição social a interceder pelo réu. Está a ver? Disse-me o tal senhor que havia lido uma nota de agravo ao corregedor Gomes Loureiro, vinda do Tribunal da Relação, considerando muito mal aplicada a multa de 400$00 por incómodos causados a mulher casada. Fui ler esse acórdão e, francamente, datava de 1907! Isto só para rir, francamente”.
Depois, lançou-se, com convicção, na defesa da polícia que comandava, recusando entrar no negativismo que parecia estar a tomar conta da população lisboeta: “Se fôssemos prender todos os padrinhos dos que na rua se comportam de maneira censurável, não chegariam, só para eles, os calabouços e as cadeias. O desplante chega a ponto de certos fulanos apresentarem a sua sem vergonha como orgulho de civilização refinada… Eles são os modernos, os homens progressivos da época; os outros, os que sabem respeitar e fazer-se respeitados, são os idiotas, os retrógrados, os patetas que se estagnaram nas ronceirices do passado. Que quer você? Estamos perante um problema grave, sim senhor, mas de educação e de civilização, não tanto de polícia”.
E ainda há quem, hoje em dia, se queixe de um ou outro piropo, tenha ele chiste ou não tenha, atirado a uma rapariga que passe no seu sossego. Nesse dezembro de 1928, o desrespeito pelas senhoras quase que abria uma guerra entre cidadãos e forças da ordem. Uma Lisboa inçada de malcriados, era o que era.