2022 está ao virar da esquina. E, com o novo ano, Portugal assinala uma data simbólica: os 48 anos do 25 de Abril. Para os menos atentos, pela primeira vez na nossa história o período de Liberdade e Democracia vai igualar os 48 anos que vivemos sob o jugo do regime salazarista.
Quando a democracia portuguesa apagar as suas 48 velas teremos motivos para celebrar muitas conquistas e, certamente, não menos motivos para refletir sobre o país que ainda não fomos capazes de ser.
O regime da liberdade chega a 2022 numa condição que não é propriamente de grande saúde e vitalidade.
Em Portugal e no mundo, estamos a assistir a uma rápida deterioração dos pilares democráticos. Uma tendência que já se verificava há alguns anos, mas que se tem vindo a agravar de forma alarmante. Desde logo por via da pandemia, fenómeno que suspendeu demasiados direitos e escancarou as portas das liberdades individuais à discricionariedade de poderes centralizadores que não têm poupado esforços para aprofundar a relação de dependência dos cidadãos perante o Estado. Depois com as redes sociais e os seus modelos de negócio que privilegiam a massificação do ódio, da ignorância, do espírito de fação e do rebaixamento de valores como a cortesia ou a empatia que escasseiam cada vez mais na arena pública. Por fim a emergência dos fanatismos políticos, de direita e de esquerda, que ganham terreno na incapacidade dos moderados apresentarem os resultados a que se propõem e nos níveis de desigualdade sociais crescentes.
É bem verdade que os problemas da democracia não se resolvem com um estalar de dedos. Mas essa dificuldade objetiva não pode servir de justificação para a inação da maioria.
É justamente a dimensão do desafio que convoca todos os democratas, ou todos os que beneficiam utilitariamente do regime da liberdade, a arregaçar as mangas neste combate pela dignidade, pelo pluralismo, pela igualdade de direitos e de deveres.
As autarquias e os cidadãos da polis têm a sua quota parte de responsabilidade, que não é pequena, na defesa da liberdade e na reinvenção da democracia.
Para além da participação eleitoral, que se exige a todos os cidadãos maiores de idade, as pessoas podem participar civicamente nas associações e nos clubes, nos movimentos, grupos de sensibilização e fóruns de reflexão. Todos eles dão uma diversidade indispensável às cidades. Estas formas de intervenção configuram aliás duas variantes democráticas que, na minha modesta opinião, estão a proteger a democracia representativa de agruras maiores. Refiro-me às variantes da Democracia Participativa e da Democracia Colaborativa, entendendo-se a primeira como o empoderamento dos cidadãos por canais de decisão e representação diretos, e a segunda como o resultado da interação de associações, coletividades, teatros, unidades de saúde, grupos de voluntariado e outros, tendo a comunidade como principio e fim de toda iniciativa.
Tenho tido a felicidade e o orgulho de, em Cascais, liderar uma comunidade que muito rapidamente tomou posse destes princípios da democracia participativa e colaborativa.
É essa experiência adquirida, é essa cultura democrática ancorada em cada cidadão e organização da sociedade civil que nos permite funcionar em rede, confiar nos outros, saber que enquanto eu cuido da comunidade há alguém do outro lado do concelho a fazer exatamente o mesmo, para que nenhum esforço seja vão.
Uma das mais extraordinárias expressões da democracia participativa em Portugal, e até no mundo, é o Orçamento Participativo de Cascais.
À passagem da sua décima edição, o OP Cascais representa hoje qualquer coisa como 45 milhões de euros de investimento, 200 obras executadas e em projeto e mais de 600 mil votos recebidos.
A expressão tangível do OP é espantosa e há uma diferença positiva feita pelos projetos em todos os bairros de todas as freguesas. Mas também não é menos espantosa a sua expressão intangível. Percebemos, pela natureza dos projetos apresentados, que cada vez mais questões de princípios e valores norteiam os projetos. Preocupações sociais e ambientais, combate a problemas como as demências ou as alterações climáticas, economia circular e educação. Há todo um programa político a emergir do Orçamento Participativo. Quando estamos à beira de umas eleições legislativas e tanto se fala de programas eleitorais que ninguém lê, precisamente porque são escritos de cima para baixo, impostos pelas cúpulas partidárias e gabinetes dos partidos aos cidadãos, aqui temos um exemplo inverso em que os cidadãos oferecem aos políticos todo um programa político construído da base para o topo.
Isto é um ativo político e democrático valiosíssimo. E tem um nome: participação cidadã motivada, interessada e mobilizada.
A democracia participativa e colaborativa vale, como vimos, pelos seus tangíveis e intangíveis. Vale pelos seus efeitos intencionais e não intencionais.
Cascais tem sido um exemplo nacional no combate à pandemia. Eu não tenho dúvidas que tal acontece, também, porque as redes formadas pela democracia colaborativa permitiram dar uma resposta com capilaridade e proximidade. Ao mesmo tempo, também não tenho dúvidas de que mobilização para a ação promovida pela dinâmica do OP, o sentido de missão para o bem comum, foi decisivo para que uma geração inteira de jovens e menos jovens se voluntariassem para estar na primeira linha de apoio aos mais fragilizados.
A cidadania que se ensina nas nossas famílias e nas nossas escolas, mas que se exerce nas nossas ruas, faz de Cascais um concelho mais responsável e mais coeso. Uma unidade política que sabe para onde vai e que tem dado algumas lições de maturidade importantes. Como por exemplo no último mês de Agosto, apupado em algumas ruas do país o Almirante Gouveia e Melo é aplaudido espontaneamente em Cascais, concelho que apresenta uma das taxas de vacinação mais altas do pais – com valores acima de 90%.
O empoderamento das populações tem este resultado positivo para a Democracia. As pessoas fazem as escolhas, são responsáveis por elas, pensam pela sua própria cabeça e tomam posse da coisa pública.
Esse é, talvez, o legado mais importante da Democracia Participativa e da Democracia Colaborativa. E aquele que, em última análise, vai salvar a Democracia Representativa dos seus males.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira