A balada do espirro


Não podemos é andar nisto, num caleidoscópio de emoções e decisões, avanços e recuos. Abre, fecha, reabre, assim-assim, o que for, qualquer coisa, já passou, vem aí, fecha de novo, reabre, talvez sim, talvez não.


Já sabemos que de um espirro se pode chegar à morte, mais depressa ou mais devagar. Mas, minhas senhoras e meus senhores, também se pode morrer de qualquer outra coisa, lamento informar, embora hoje queiramos viver como se a morte não existisse, ao mesmo tempo que as imagens da mesma (mas “mediata”, como se fora ficção) se banalizam. Estanho paradoxo, morte por todo o lado mas, também, um intenso desejo de ausência de morte. E, morrer por morrer, também se morre do intenso e perpétuo medo do espirro. Morrem Mais de Mágoa, escreveu Saul Bellow em título, hoje melhor escreveria, talvez, que morrem mais de medo. O que não é novidade, porque de medo sempre se morreu, seja de morte morrida (morrer de medo mesmo), seja de morte matada (matar por medo). O que é novidade – ou eterno retorno, na verdade – é a coletivização do medo, e um medo que é tão grande, que aparece e se instala (aproprio o título feliz de Rui Zink) de tal forma que, a respeito do espirro, fica, permanece, entranha-se, mesmo quando se viu já, em quase dois anos, que o espirro mata, mas não assim tanto que justifique morrer de medo e, por isso, tudo ou quase tudo consentir. E de tal forma está que até consente o paradoxo da irresponsabilidade, pois oscilamos entre a paralisia e o excesso, como se tudo fosse ou oito ou oitenta, hoje a branca quietude do nada, amanhã o intenso vermelho do tudo. E o amanhã, o futuro? Isso se verá.

Eu não nego nada, não contesto nada, não desvalorizo nada. Cada espirro conta, e sobretudo cada morte conta. Mas, caramba, há que ter algum sentido de proporção, e há que saber que o medo mata, e fá-lo de muitas e criativas formas, ao ponto de quase se esquecer que viver é perigoso. Muitíssimo perigoso, e em vários sentidos e de diversos modos. Não podemos é andar nisto, num caleidoscópio de emoções e decisões, avanços e recuos. Abre, fecha, reabre, assim-assim, o que for, qualquer coisa, já passou, vem aí, fecha de novo, reabre, talvez sim, talvez não. É certo, é certíssimo, que não sabemos nada, e que só se navega à bolina, mas um pouco de senso, e de aprendizagem, não faz nem faria mal nenhum, e vinha muito a calhar. Individual e coletivamente. O que não pode ser é a histeria do tudo ou do nada, como se nada tivesse consequências, e como se tudo o que é hoje já pudesse ser radicalmente diferente amanhã, e depois voltamos a isto, ou parecido, ou qualquer coisa, como se pudéssemos viver ao sabor do clamor do minuto. Tudo tem consequências, e tem muitas, e não se medem todas ao minuto, nem também se organizam por calendários. Primeiro é o Natal, depois é aquele dia do ano da felicidade com hora marcada, mas depois recua, treme, para, fecha, depois já avança em função de outros calendários, e depois…; depois logo se verá, que mar e vento abundam para bolinar.

Assim não dá, e sobretudo não dá viver sob o ruído do dia, da hora e do minuto. O melhor dia desde a semana passada, o pior desde o último mês, pior ou melhor que ontem, que há dois dias, seis meses, qualquer coisa, ou o assim assim desde sei lá quando, o melhor deste ponto de vista, mas muito mau daquele, e assim por diante. E diz, e mostra, e fala, e opina, e tudo e o seu contrário, uma e outra vez, nas mesmas 24 ou 48 horas. Morrerem dez é bom ou é mau, é conforme. Cinco mil infetados pode ser bom ou mau, depende, pode até ser como se quiser, é quase à vontade do freguês. É como se nada, realmente, tivesse importância e tudo, ao mesmo tempo, tivesse a mesma importância. Mas não pode ser, por muito que saibamos pouco, ele há coisas e coisas, há valores maiores e menores, há hierarquias, há o sentido do tempo. Pare, escute e olhe, como nas passagens de nível – velhinho e bom ensinamento. E uma coisa, pelo menos, sabemos, ou melhor, sabemos duas: uma, que assim não se consegue viver muito mais tempo; outra, tudo isto, além de matar, mói, e mói muito. E o que mói muito, mesmo que não mate o futuro, deixa marcas. É a síndrome do medo longo, e com ele instalam-se focos de erosão de coisas essenciais, que levam séculos a erigir mas que podem cair com um espirro. (E agora vou ali ver como estamos hoje; mal, bem, muito, pouco, nada, ou assim-assim; depende. Tudo depende, não é? Vamos vendo, até um dia.)

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira