(continuação)
Artigo 1º. dos primeiros Estatutos do Sporting Club de Portugal: “Sporting Club de Portugal é o título d’uma associação composta d’individuos d’ambos os sexos de boa sociedade e conducta irreprehensivel”. Aliás, os novos sócios eram aceites ou recusados sob o secular sistema das pedras brancas e pretas depositadas num saco pelos sócios mais antigos. Com algumas excepções: havia nomes inaceitáveis, mesmo que conseguissem recolher a totalidade das pedras brancas – indivíduos cuja conduta não era irrepreensível.
O símbolo do clube foi José de Alvalade buscá-lo ao brasão de família de seu primo, D. Fernando de Castelo Branco, Conde de Pombeiro: um leão rompante em campo azul. Trocou-se o azul pelo verde, como símbolo de esperança. “O leão rompante assinala a perenidade da força sportinguista que alcançou o clube a um lugar proeminente no desporto português”, escreveria Eduardo Azevedo, historiador do Sporting.
Um leão ainda branco, na altura. Que deixava de peito a arfar de orgulho Mário Pistachini, que viria a ser presidente do clube: “O leão branco, nobre e puro, em campo verde, vibrante de força, de coragem e de justiça, habita na alma de todos os sportinguistas”.
Com menos poesia, mas iguais sonhos de grandeza, os fundadores do Sport Lisboa tinham estabelecido também eles as suas cores e o seu emblema: “Alegria, colorido e vivacidade no vermelho do equipamento, como base de entusiasmo na luta desportiva; a águia como símbolo de elevação de propósitos e objectivos, largo espírito de iniciativa e ânsia de subir o mais alto possível; legenda como apologia da união – e pluribus unum”. A rivalidade tinha palha por onde arder.
Chovia em Carcavelos. Findo o Verão, regressa o futebol e essa competição à inglesa, disputada por pontos, que ganhara o nome de Campeonato de Lisboa. O Sporting estreava-se, reforçado com a nata dos jogadores do Sport Lisboa que, na edição anterior, tinham cometido a proeza de vencer (2-1) os supra-favoritos ingleses do Carcavellos, campeões em título. Na sala da sede da Liga Naval de Lisboa, cedida para o efeito, reuniram-se os delegados dos clubes e grupos concorrentes. Perante a admiração geral, Silvestre José da Silva apresentou-se como delegado do Sport Lisboa, sendo portador da inscrição do clube à II Edição do Campeonato de Lisboa.
Afinal, e a despeito da fuga dos Catataus para o Campo Grande, o Sport Lisboa não morria.
A Edição de 1907-08, a segunda, do Campeonato de Lisboa seria disputada por Carcavellos, Sporting, Sport Lisboa, Lisbon Cricket, CIF e Cruz Negra. Diferentemente do que acontecera na época anterior, esta joga-se a duas voltas. A superioridade do Carcavellos, com a sua equipa de ingleses, na sua maioria funcionários da empresa que instala o famoso cabo submarino, volta a não estar em causa. Se no ano anterior tinham sofrido uma surpreendente derrota face ao Sport Lisboa, desta vez cumprem o percurso sem falhas – 10 jogos, 10 vitórias, 61 golos marcado e 6 sofridos. E os trânsfugas, agora de leão rompante ao peito, não fogem a uma humilhação – Carcavellos, 7 – Sporting, 0.
A vingança. A terceira jornada, marcada para o dia 1 de Dezembro, assinala o reencontro entre o Sport Lisboa e os seus ex-atletas. No Campo da Quinta Nova, em Carcavelos, com arbitragem de Burtenshaw, magnífico jogador inglês do Carcavellos de imenso prestígio entre todos os clubes da capital, as equipas alinham: SPORT LISBOA – João Persónio; Luís Vieira e Leopoldo Mocho; António Alves, Cosme Damião e Marcolino Bragança; Félix Bermudes, António Costa, Eduardo Corga, António Meireles e Carlos França. SPORTING – Emílio de Carvalho; Queirós dos Santos e José Belo; Albano dos Santos, António Couto e Nóbrega de Lima; António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Jacob Eagleson, Cruz Viegas e Henrique Costa.
Cosme Damião e António Rosa Rodrigues capitaneavam e orientavam as suas equipas, como era prática nesse tempo.Recordemos a crónica saída no jornal Os Sports: “O principal factor da vitória do Sporting foi o peso; enquanto ao jogo, há falta de união. Depois de um embate renhidíssimo, o Sporting marcou um golo na primeira parte e esta acabou debaixo de uma chuva torrencial. Couto sobressai pelo seu irrepreensível bom jogo e pela sua resistência extraordinária. Ele e Cândido Rodrigues constituem os sóis que iluminam aquele grupo. O golo feito por Cândido não teve importância se considerarmos o prestígio com que eles vinham aureolados. O Sport Lisboa esteve bem, mas com muita infelicidade e talvez esta motivada pelo estado de enervação do Sport Lisboa, por se encontrar com um grupo formado por antigos irmãos cuja recordação é um fel.
Na primeira parte joga bem, embora o terreno não ajude. Na segunda parte arranca com energia e cinco minutos depois consegue marcar um tento. Obtido este resultado, eles marcham com mais energia, e o Sporting defende-se mal e com dificuldade, praticando novamente outras irregularidades. Quando todas as probabilidades lhe dão a vitória, cai uma grande bátega e o campo alagado não deixa caminhar a bola. Enquanto o Sporting abandona o campo, o Sport Lisboa permanece quedo. Burtenshaw obriga-os a voltar e eles obedecem com visível má vontade; a chuva tendo tornado frios os rapazes do Sport Lisboa, abate um pouco a sua energia e os adversários aproveitam-se e marcam novamente ‘goal’. Ficou feito o resultado”.
Era aqui que eu queria chegar: ao «estado de enervação do Sport Lisboa, por se encontrar com um grupo formado por antigos irmãos cuja recordação é um fel». Oito ex-jogadores do Sport Lisboa encontravam-se, nessa tarde chuvosa de Carcavelos, do outro lado do campo, com a camisola do Sporting. Cândido Rosa Rodrigues, um dos grandes entusiastas do nascimento do Sport Lisboa marcou o único golo dos jogadores do Sporting. O outro foi de Cosme Damião, na própria baliza.
Neste jogo havia um fel. Um fel de irmãos.
Pittigrilli dizia: «Eram piores do que inimigos, eram irmãos».
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