Phil Saviano. Morreu o homem que denunciou a pedofilia na arquidiocese de Boston

Phil Saviano. Morreu o homem que denunciou a pedofilia na arquidiocese de Boston


Um dos mais conhecidos ativistas na luta contra os abusos sexuais na Igreja Católica perdeu a vida no domingo. O i falou com Claudia Vercellotti, Cristiana Liguori e Mike McDonnell, amigos de longa data daquele que é descrito como “uma pessoa delicada e tenaz”.


Depois de ter lutado contra um cancro na vesícula biliar, Phillip James Saviano, sobrevivente de abusos sexuais por parte do padre David A. Holley, pelo menos cinco vezes, entre os 11 e os 12 anos, morreu no passado domingo. Decidindo que não ficaria em silêncio, Phil, como era carinhosamente tratado pelos amigos, denunciou décadas de ataques predatórios levados a cabo por padres católicos na arquidiocese de Boston, no estado norte-americano do Massachusetts, sendo a fonte principal dos jornalistas Matt Carroll, Sacha Pfeiffer, Michael Rezendes e Walter V. Robinson, da equipa Spotlight, do jornal Boston Globe, lançando o mote no âmbito da realização e posterior publicação de várias reportagens sobre este escândalo.

O estado de saúde daquele que se tornou ativista e lutou com o objetivo de evitar que mais crianças e jovens fossem violados não era positivo há décadas. Em 1984, havia sido diagnosticado com SIDA e, em 2009, soube que precisava de um transplante renal. Quando entendeu que nenhum familiar podia ajudá-lo, não sendo compatível para ser dador, recorreu à rede de sobreviventes de abusos sexuais na Igreja Católica. Várias pessoas voluntariaram-se e ele acabou por receber um rim de uma mulher do Minnesota que disse ter sido abusada sexualmente, num colégio, por uma antiga freira.

Apesar de ter existido uma tentativa de silenciamento por parte da diocese de Worcester, baseada em subornos financeiros, Phil – que fundara, em 1997, uma seção da Nova Inglaterra da Rede de Sobreviventes de Abusos Sexuais por Padres (SNAP) – não se deixou vergar e continuou a auxiliar os repórteres. “Se eu não estivesse a morrer com SIDA, não teria tido a coragem de falar”, disse Saviano, em declarações ao Boston Globe, em 2009. “Naquele ponto, a minha carreira havia acabado, estava a recuperar-me fisicamente, a minha reputação estava em baixo e não tinha muito a perder. Esta foi uma oportunidade final para mudar algo e resolver aquilo que me aconteceu quando era criança”.

Devido à sua resiliência e crescente reconhecimento, a sua história acabou por ter um grande destaque no filme O Caso Spotlight, de 2015, em que foi interpretado por Neal Huff – vencedor na categoria de melhor filme da 88.ª edição dos Óscares –, baseado na investigação jornalística e que deu a conhecer o modo como muitos membros do clero molestaram crianças e escaparam impunes porque os líderes da Igreja os protegiam.

“Os maiores legados de Phil são as sementes da verdade que nunca parou de semear” “A quantidade de crimes sexuais contra crianças que Phil Saviano ajudou a prevenir é incomensurável. Simplesmente não medimos crimes que foram frustrados, mas é uma parte importante do legado”, começa por explicar Claudia Vercellotti, líder da SNAP em Toledo, no Ohio, esclarecendo que “a coragem inabalável de Phil em falar publicamente sobre o abuso sexual de que foi vítima, nas mãos de um padre da Igreja Católica, iluminou e continuará a iluminar as questões em andamento do abuso sexual infantil”.

Em declarações ao i, a mulher realça que “os maiores legados de Phil são as sementes da verdade que nunca parou de semear e a justiça que procurava para si e para os outros”, frisando que “cabe agora a cada um de nós continuar a partilhar essas verdades” e, “coletivamente, falar sobre essas verdades incómodas”. “Mesmo na morte, a sua verdade sobre a crise contínua de abuso sexual do clero dá voz àqueles que mais precisam. Em algum lugar lá fora, agora em 2021, é outra criança ou outro adulto que sofreu esse tipo de crimes sexuais sozinho. Espero que o legado de Phil os alcance também e que agora saibam que não precisam de sofrer. Eles podem curar-se e obter ajuda”, rematando que “como sobreviventes, todos nós temos o dever de garantir que os crimes cometidos contra nós, em crianças, poupem a próxima geração de um destino semelhante. Phil fez a sua parte, o resto depende de nós”.

Quem concorda com Claudia é Cristiana Liguori, proprietária de uma pousada, em Nápoles, Itália, onde Phil esteve hospedado há alguns anos. “E ele voltou porque comprou as figuras tradicionais do presépio napolitano a um artesão que lhe havia apresentado. Quando me contatou, disse-lhe que tínhamos em Nápoles um escritor chamado Roberto Saviano, famoso em todo o mundo, e ele disse que também era famoso e contou-me a sua incrível história de sobrevivência e ativismo”, sublinha, ao i, realizando um paralelismo entre o apelido de Phil e o do escritor conhecido por obras como “Gomorra” ou “ZeroZeroZero”. “Foi um encontro doce, estive sempre disponível para o Phil, ele foi certamente uma pessoa delicada e tenaz ao mesmo tempo. Vamos sentir falta dele”.

“Estamos com o coração partido pela perda de nosso querido amigo, Phil Saviano, que faleceu no domingo, 28 de novembro de 2021, na casa do seu irmão e cuidador Jim. Um clérigo sobrevivente de abuso sexual e denunciante que desempenhou um papel fundamental na exposição de agressões sexuais contra crianças por padres católicos romanos na arquidiocese de Boston, Phil tinha 69 anos. Não há palavras suficientes para descrever essa perda terrível para o nosso movimento e para o mundo”, declara Mike McDonnell, diretor de comunicação da SNAP, ao i, adiantando que “todos aqueles que conheceram Phil imediatamente reconheceram a sua bondade e humildade”, pois “ele era uma alma gentil que ajudou a fornecer um ouvido atento e um ombro para chorar como fundador da SNAP da Nova Inglaterra. Abraçou os princípios da busca pela verdade e justiça como um meio de trazer a cura a sobreviventes num momento em que o escândalo” ainda estava numa fase embrionária.

“Em muitos aspetos, a vida de Phil foi excecional. Somos muito gratos por ele ter acreditado em si mesmo. ‘Quando éramos crianças, os padres nunca faziam nada de errado. Não os questionávamos, assim como a polícia’, afirmou Jim Saviano à Associated Press. ‘Muitas barreiras foram colocadas no seu caminho intencionalmente e não por instituições e pelo pensamento geracional. Isso não o impediu. É um certo tipo de bravura que era único’”.