Chovia numa Roma em lágrimas. Como disse, um dia, José Luis Borges, basta estar vivo para morrer. E ainda assim, os italianos interrogavam-se: “Mas morreu como?! Como é possível?!” Tinha apenas 67 anos, ainda que os anos tenham crescido com o passar deles próprios, e 67 anos em 1957 não sejam os mesmo anos em 2021, se é que me faço entender. O tenor da garganta de cristal tinha os pulmões esburacados por uma bronco-pneumonia.
Beniamino Gigli nasceu em Recanati, uma pequena cidade da região do Marche, a Terra da Poesia, como lhe chamaram por lá ter nascido, igualmente, o grande poeta italiano Giacomo Leopardi. Era filho de um sapateiro e viu a luz clara do céu que se espalha por sobre o Adriático no dia 20 de março de 1890. O sapateiro adorava ópera mas nunca quis ir além sequer do rabecão. Beniamino, esse, alimentou a ideia fixa de vir a tornar-se um cantor, do mesmo modo que o seu irmão, Lorenzo, se dedicou à pintura e ganhou fama para lá da fronteira do seu quintal onde cresciam maçãs.
Ao 24 anos, Gigli já era um profissional da voz. Estava em Parma, recebera críticas extraordinárias pela sua interpretação de Enzo, em La Gioconda, de Amilcare Ponchielli. O povo gostava dele. Os músicos também. Por toda a parte atuou nos anos que se seguiram, ora em Palermo, no Teatro Massimo, ora no San Carlo, de Nápoles, no Teatro Costanzi, em Roma, finalmente em Milão, no La Scala.
Foi a Nova Iorque, a Buenos Aires, exigiam-lhe encores, ofereciam banquetes em sua honra, era fotografado ao lado das estrelas do cinema. Edgardo (em Lucia de Lammermoor, de Donizetti) e Rodolfo (em La Bohème, de Puccini) foram os papéis que se lhe colaram à pele, aqueles que mais gostou de gravar. Chamaram-lhe Caruso Secondo. E ele, agastado, por querer ser ele mesmo, filho do sapateiro Recanati: “Io sono Gigli, il Primo!”
Mussolini. Em 1932, Beniamino tinha um contrato com o Met de Nova Iorque. No meio da crise económica, a direcção do teatro reduziu o valor dos pagamentos a todos os artistas. A todos, não! Gigli recusou-se a ser tratado como pessoal menor. Rasgou o contrato e regressou a Itália. Instalado no poder, Benito Mussolini, Il Duce, tinha uma profunda admiração por ele.
E Gigli cantou: “Su, compagni in forti schiere/marciam verso l’avvenire/siam falangi audaci e fiere/pronte a osare, pronte a ardire/trionfi alfine l’ideale/per cui tanto combattemmo:/fratellanza nazionale/d’italiana civiltà”. Era La Giovinezza, A Juventude, o hino oficial do Partido Fascista Italiano. Muitos não lhe perdoaram, mas a IIGrande Guerra tomou conta da Europa, Gigli não encontrava teatros para cantar. Quando o conflito chegou ao fim, já os seus compatriotas estavam prontos a desculpar-lhe o momento infeliz de tentação fascizante. Voltou aos palcos, entrou em filmes, era outra vez o Grande Beniamino, o homem da voz cristalina que levava quem o ouvia pelo caminho que conduz às lágrimas.
Em 1955, Gigli resolveu retirar-se. Nunca cuidara da sua saúde e esta vinha agora pedir-lhe contas. A sua fragilidade era visível e ele quis tornar-se invisível, fechado em casa, em Londres, para onde resolveu instalar-se com nova ideia fixa, escrever as suas memórias enquanto se achava capaz disso.
“Lisboa viu-o e ouviu-o algumas vezes, tanto em São Carlos como no Coliseu, ganhando entre nós uma medida de admiração equivalente à da fama que por todo o mundo ele pudera conquistar como grande herdeiro da nobre tradição de Caruso”, escrevia-se num dos nossos pletóricos obituários. “Há cerca de doze anos Lisboa pôde apreciá-lo, integrado num elenco que fez entre nós, no São Carlos, uma Aída como nunca se ouvira e dificilmente voltará a ouvir-se em padrão igual, com Caniglia, Stignani, o barítono Gino Bechi e o baixo Neri”. Também entre nós deixava saudades. Roma soube dizer-lhe adeus. Ou, como preferem dizer os italianos, “arrivederci” – até à vista…