São onze andares até chegar ao topo da central, entre máquinas e chão de grelha. Do alto, tem-se a vista completa: as torres de arrefecimento onde a pluma de vapor de água muitas vezes é confundida com fumo. A chaminé de onde efetivamente sai o fumo, em que nos últimos anos se conseguiu reduzir poluentes como enxofre e azoto mas se manteve o CO2, ainda sem tecnologias de captura na prática. Ao fundo, o parque de carvão tem o chão preto mas já sem hulha e os vagões que faziam a viagem do porto de Sines ao Ramal do Pego estão parados há mais de um ano. Há muito que produzir eletricidade com carvão não é sinónimo de caras tingidas e carros de mão a caminho das caldeiras, os procedimentos de segurança são precisos e apresentados a quem chega num vídeo obrigatório sobre circuitos, equipamentos de proteção (calçado, capacete, óculos e fato), regras e sons dos diferentes alarmes. Mas se tudo isto se mantém, são poucos os rostos com que nos cruzamos e oficialmente a infraestrutura está parada. Quase, pelo menos.
Após um pedido à Tejo Energia, dona da central onde se produziu eletricidade a carvão nos últimos 28 anos e que é a última a fazê-lo no país, a visita para registar os últimos dias do Pego foi marcada para a última terça-feira, depois de na sexta-feira 19 de novembro ter acabado o stock de carvão na central, que tinha licença para operar até dia 30. No mesmo dia, em Lisboa, o sindicato reunia com o Governo saindo com garantias para os trabalhadores que vão perder o trabalho, cerca de 150, de que manterão o salário se aceitarem receber formação.
Eram 7h16 da passada sexta-feira quando se queimou pela última vez carvão no Pego, hora que marca o fim em Portugal de um capítulo de produção de eletricidade à base deste combustível fóssil, que começou no final do século XIX com uma primeira central para acender seis candeeiros na Travessa Estêvão Galhardo, em Lisboa, hoje rua Serpa Pinto. Nunca foi maioritária, com as hídricas a terem maior peso e, nos últimos anos, o embalo das renováveis. Mas chegou a representar 10% da produção nacional, explicam-nos, o equivalente a um mês de consumo de energia no país. No início do século XX, Portugal tinha instalada produção para 100 megawatts, hoje rondam os 20 mil, quase metade já de renováveis.
No Pego, os dois grupos de produção à base de carvão fóssil – assim são chamados os setores de produção com turbina, gerador e caldeira – somam 600 megawatts de potência, muito menos do que era a potência instalada em Sines, que fechou primeiro. Para nos situarmos, uma turbina eólica, à potência máxima, tem 4 megawatts, compara Carlos Ribeirinho, diretor do Centro de Produção de Eletricidade do Pego, que nos faz a visita guiada.
A turbina ainda roda, por isso falta esse quase para a central parar de vez. Apesar de terem produzido pela última vez a carvão na sexta-feira, o arrefecimento é lento, explica o responsável, o que ajuda a perceber o que implica a manutenção de uma central que viveu os últimos anos a parar e a arrancar para responder a despachos de abastecimento da REN, nos períodos de indisponibilidade de renováveis e em que o carvão era escolhido como opção.
O engenheiro explica o processo que poderá um dia fazer parte apenas dos museus, numa central que na arquitetura e no meio do silêncio faz em momentos lembrar a velha Central Tejo de Lisboa, mas muito mais limpa e das mais eficientes a nível europeu, nota Carlos Ribeirinho, há 17 anos na Pegop, que gere tanto a central carvão da Tejo Energia como a central a gás que permanece a funcionar no Pego. E que, pelo caminho, não esconde que este momento custa: “Para nós, não vermos vapor de água das torres ou fumo na chaminé é desolador, porque está ali muito trabalho para ter os melhores resultados possíveis”.
O carvão mineral chegava de comboio e ia para silos. É depois pulverizado e queimado nas caldeiras, onde arde a 1600ºC. À volta da grande câmara, circula água, que aquece a elevadas temperaturas, liberta vapor e vai mover as turbinas. O movimento das pás ativa os geradores que produzem eletricidade, que dali entra na rede nacional para ser consumida no imediato. “A energia ainda não se armazena”, insistem todos quantos são do setor. Passam 72 horas e as pás ainda giram. Na sexta-feira a temperatura chegou, como habitualmente, aos 500ºC e tem de reduzir aos poucos, para não danificar a estrutura.
Passamos à sala de comando e João Furtado, trabalhador do Pego há 30 anos, mostra a medição atual no computador: 166ºC. Vai demorar alguns dias a estabilizar à temperatura ambiente mas essa é das poucas coisas previsíveis por ali por estes dias, que descreve como pesados e tristes, as palavras que Carlos Ribeirinho também repete por todo o investimento que foi feito, nomeadamente em 2008, para tornar a central mais eficiente. “Foi um processo muito mau, sobretudo porque não foi planeado. Todos sabíamos que o contrato acabava a 31 de novembro, mas não faz sentido para o país mandar uma instalação destas fora e não haver uma alternativa”, diz João Furtado.
Por dentro pesado, de fora o futuro parece tão incerto quanto turbulento. A Tejo Energia, concessionária da central nos últimos 28 anos e que a adquiriu em 2008 contesta o concurso aberto pelo Governo para atribuir o ponto de ligação à rede que diz ser seu e já avançou com uma providência cautelar. O Governo sublinha o papel do fecho da central no caminho para a descarbonização e aguarda o desfecho do concurso para um futuro projeto, inicialmente aberto até 18 de outubro e prolongado até 17 de janeiro. É também público o desentendimento entre os acionistas da Tejo Energia, a TrustEnergy, acionista maioritária, e a Endesa, que defendem projetos diferentes para o futuro da central.
“Mais 20 anos de vida útil” Recebe-nos José Grácio, presidente executivo da TrustEnergy, acionista maioritária, que sublinha que esta é uma questão interna e aponta o dedo ao Governo por ter interferido no processo e nunca ter chegado a dar feedback à única proposta da empresa, que lhes foi solicitada formalmente no verão e previa um investimento de 900 milhões de euros na transição para o pós-carvão, nos primeiros dois anos com a conversão das atividades de carvão para biomassa e, a partir de 2024, operação combinada de biomassa com painéis solares, podendo no futuro avançar para o hidrogénio e, partir de 2030 e biometano.
“A central tem mais 20 anos de vida útil”, argumenta José Grácio, afirmando que houve uma “manipulação” da proposta apresentada pela empresa, referida apenas na componente de biomassa quando essa seria a fase inicial de transição. “É um projeto assente em renováveis em que a biomassa é a charneira que faz a ligação entre o atual e o futuro. O que pensa a TrustEnergy e o que pensa a Endesa não é importante, o que vale é a posição da Tejo Energia, que tem órgãos para tomar decisões, conselho de administração e assembleia de acionistas.Houve uma cortina de fumo, não através dos órgãos da empresa mas para o Governo através de um dos acionistas, a dizer que os acionistas não se entendiam, mas isto não é um problema do Governo. A decisão de uma empresa é por um acionista maioritário que aprova uma linha de atuação, que cabe ao minoritário aceitar”, insiste.
Ao i, José Grácio adianta ainda que a empresa está a avaliar se apresenta a sua proposta a concurso até 17 de janeiro, a data limite estendida pelo Governo em três meses depois de inicialmente o concurso ter aberto por apenas um. E lamenta a forma como foi terminada a operação com impacto para os trabalhadores, sublinhando que o projeto de conversão começou a ser pensado internamente há uma década, quando a empresa adquiriu a central e que agora previa já uma unidade de preparação da biomassa na central e torrefação, para conseguir a mesma eficiência de carvão com uma espécie de carvão vegetal mais compacto do que aquele que usamos em casa – a tendência do green coal.
“Há mais de dez anos que começámos a pensar neste momento. Vai acabar o carvão, percebemos perfeitamente que faz sentido acabar, mas temos de nos adaptar. E a adaptação era numa primeira fase passar a ter biomassa, que arde todos os anos aqui. Estamos a falar de madeira que já arde, arderia aqui ou arde na floresta. A ideia era criar uma dinâmica na região para utilizar estes resíduos e depois avançar com outras tecnologias para criar um centro de renováveis”, sublinha, denunciando uma diabolização do projeto. “A história vai dizer-nos se este serviço faz falta ou não. Todos esperamos que as fontes de energia renováveis, o vento e o sol, venham a ter capacidade para abastecer o sistema elétrico, mas vai haver momentos em que não há uma coisa nem outra”, diz.
Este ano, o contributo do Pego para a produção foi de 1,6%, mas no inverno subiu para 2,2%, revela ao i a empresa, calculando outro valor: das emissões de CO2 em 2020, 41,3 milhões de toneladas, o Pego representou 336 200 mil, cerca de 0,81%. “Quando alguém diz que a central representa 4,5% das emissões, que nos últimos anos foi francamente inferior a isso, vamos lá procurar o resto. Estou de acordo e entendo como cidadão que se acabe com a central a carvão. Do lado da empresa nunca se tentou resistir a que a central a carvão feche. Aquilo de que nos queixamos é de não nos deixarem implementar alternativas, que nos levou a este momento de ter de dispensar pessoas. E de porem a concurso um ponto de ligação que é da empresa”, afirma o administrador da TrustEnergy.
Na proposta apresentada em julho ao Governo pela Tejo Energia, previa-se que o encerramento da central tivesse um impacto negativo direto de 11,8 milhões de euros e 197 empregos, crescendo os impactos indiretos a nível nacional para um prejuízo de 129 milhões de 990 postos de trabalho. Já para o projeto apresentado, um investimento de 900 milhões de euros da empresa, a Tejo Energia calculou um valor acrescentando nacional de 73 milhões, a manutenção de 107 empregos e de 847 a nível nacional.
Para já, a garantia do Governo é que no projeto que vier a vencer o concurso, a transição dos trabalhadores irá ser acautelada, não tendo respondido às questões do i sobre que estudos foram feitos pelo Governo na implementação do apoio social anunciado esta semana e estimativa de impacto no primeiro ano.
Também sobre se, face ao período de paragem que irá agora prolongar-se, poderá vir a ser necessário reativar a central a carvão, o Governo não responde diretamente, sublinhando que a “segurança do abastecimento está salvaguarda”. Do lado da Tejo Energia, consideram-nos pouco provável, até porque seria necessário importar carvão, mas admitem que o sistema poderia ser usado por exemplo com fuelóleo numa situação de urgência e se fosse ativado para isso.
José Grácio sublinha como feitos dos últimos anos as melhorias na central em termos de gestão ambiental e resíduos, investimentos que se preparavam agora para a aproveitar e que em 2006/2008 representaram um investimento da parte da empresa de 170 milhões de euros para diminuir poluição. “Quando começámos a operar depois da concessão da EDP em 1993, as cinzas iam para aterro. Arranjámos forma de serem reutilizadas na indústria cimenteira e betoneira. Neste momento não vai nada para aterro. A libertação de enxofre no fumo foi reduzida em 90% e também no azoto foram implementadas medidas de mitigação. CO2 continuamos a emitir, mas o CO2 é um problema global. Aquilo que os chineses estão a emitir tem tanto impacto na nossa vida como aquilo que nós emitimos”.
Acreditando que as metas de descarbonização serão possíveis, notam no entanto que esta é a parte mais fácil da equação. “Os transportes é que vão ser o grande problema. Como político é relativamente impor regras a uma indústria, é mais difícil impor ao consumidor”, diz José Grácio, sublinhando que o é politicamente mas também em termos práticos, porque são muitas casas, muitas decisões. “Por isso aquilo que se arranjou foi responsabilizar as centrais a carvão, responsáveis por todos os males do aquecimento do planeta. Vamos arranjar agora outros”, afirma José Grácio.
“Isto é um fado” No centro do Pego, as notícias sobre o fim anunciado da central vão se sabendo pelas famílias afetadas pelas rescisões e pelo que vai aparecendo nas notícias. No restaurante A Pegacha, Maria Jacinta não esconde a preocupação da casa que tem o tempo de vida da central. “Tenho aqui nove funcionários. Se isto parar muito, como faço?".
Depois do almoço, com o sol de inverno a bater, os mais velhos juntam-se no largo, um grande grupo ainda. Abordados, todos opinam, embora ninguém saiba muito bem ao certo como se chegou aqui. José Fezes, antigo carteiro em Abrantes, assume a preocupação por conta própria: “Não trabalho lá mas sou fiador de um que trabalha e já não durmo descansado. Ainda vai ser a minha reforma. Fecham e decidem tudo, mas indemnização não”, atira. “Primeiro queriam fazer a central noutros lados, ninguém autorizou. O Pego abriu as pernas, encheu-se a barriga e agora é isto. Não sei quem manda mas anda tudo à procura do mesmo, o dinheiro é que manda nisto tudo”.
Ao lado, Manuel Perninhas, fadista da terra e também a chegar aos 80, lembra que nunca ganhou tão bem na vida como nos anos em que trabalhou como soldador na construção da central. “Era noite e dia. Dorme aí um bocado e continua".
Trouxe muita coisa boa para muita gente e aqui para os restaurantes e para as tabernas. O que é que vão fazer daquilo agora? Estão ali milhões e milhões enterrados. Isto é um fado”.
Há boa maneira de expiar o fado, depressa a conversa foge para a brincadeira. “Ainda lá fazem uma plantação de canábis, era melhor ainda”, atira José Arte Nova, coveiro da terra. “Se for a biomassa, onde vão buscar a rama para aquilo trabalhar? Ainda começam é a queimar a gente também”, sorri José Fezes. “Mais ainda?”, pergunta Perninhas.
De alterações climáticas não sabem dizer, mas de uma coisa estão convencidos: enquanto por lá funcionou a central, nunca mais houve trovoadas no Pego. “Iam bater lá na chaminé e abalavam. Desde que aqui estão nunca mais houve nada de grave. Essa é que é uma boa verdade”, remata o coveiro.
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