Somos contemporâneos do absurdo. Sei que não é a primeira vez que começo um texto com esta imagem, mas os acontecimentos teimam em atirar-me para a mesma conclusão.
Da última vez, o artigo espantava-se com a existência de “gente” na internet que anunciava e garantia que o verdadeiro autor das declarações anti-racistas de Ricardo Quaresma era o deputado do Bloco de Esquerda Moisés Ferreira. Antes disso, muitos asseguraram que o Swatch de plástico da Catarina Martins era na verdade um luxuoso relógio no valor de 20,9 milhões de euros. Depois disso, mentiras circularam sobre deputadas e dirigentes do Bloco de Esquerda, entre elas – e a mais absurda de todas – a de que Mariana Mortágua teria recebido dinheiro do BES (Banco Espírito Santo de Ricardo Espírito Santo Salgado) a troco de quaisquer favores.
As calúnias são mais que muitas e a tentação – também não lhe escapo – é responder-lhes com sarcasmo, esperando que o sentido de humor revele o ridículo de tais afirmações. É um caminho possível mas não é suficiente para lidar com a epidemia civilizacional das fake news. Porque a ironia pressupõe uma certa ingenuidade, tanto quanto às intenções e premeditação do fenómeno, como quanto à sua capacidade destruidora.
É bom relembrar que as fake news são crime e fazem vítimas. No Brasil, o ex-deputado Jean Wyllys viu o seu nome envolvido na tentativa de assassinato do então candidato Jair Bolsonaro pela simples multiplicação de um hashtag no twitter. Essas e outras notícias falsas acabaram por criar um clima tão violento que obrigou Jean Wyllys a procurar exílio para garantir a sua segurança. Talvez graças a isso a esquerda mundial não tenha perdido um grande dirigente, mas a extrema-direita conseguiu expulsá-lo do Brasil.
As fake news não são uma brincadeira de gente parva, são uma produção de laboratório criada a partir da mistura de tecnologias digitais e extrema-direita. O método não é repetir a mentira até que se torne verdadeira (até porque geralmente referem-se a factos desmentiveis), mas construir um ambiente de desconfiança geral que a torne credível para uma maioria da população. Isso consegue-se com profissionalismo.
No caso da partilha da imagem do relógio de Catarina Martins, o Diário de Notícias publicou uma investigação sobre uma rede de imagens falsas a funcionar em Portugal a partir de sites portugueses – como o Direita Política, a Voz da Razão, Não Queremos um Governo de Esquerda em Portugal, Vídeo Divertido e Aceleras. Esses sites estavam todos registados no Canadá e partilhavam o mesmo IP, que tinha como epicentro uma empresa em Santo Tirso detida por um admirador de Bolsonaro e Trump chamado João Fernandes.
No caso do absurdo Mariana Mortágua/BES, a origem foi um conjunto de tweets de Cristina Seguí, uma militante da extrema-direita espanhola que a revista Visão descreveu como “antifeminista, anticomunista (posições que a espanhola assume na sua biografia), “amplificadora de teses conspirativas e fake news e antiga coqueluche do partido espanhol de extrema-direita ‘Vox’”. O mesmo perfil alertava que “Cristina Seguí começou agora a atacar também figuras portuguesas”.
Quando republicou o tweet mentiroso, afirmando que se tratava da “investigação” de uma “jornalista”, André Ventura sabia que estava a chafurdar no lixo. E a nós não nos incomoda que o aldrabão se suje. A questão – e isto não é um pormenor – é que mexer naquele lixo é ilegal e, por isso, André Ventura deve ser criminalmente responsabilizado pela divulgação de informação que sabe ser falsa.
O facto de estar consciente de que é uma notícia fabricada em laboratório por uma comentadora alinhada com as suas intenções políticas, assim como a sua exposição pública, não só não o protegem como são agravantes que devem ser tidos em conta. Das declarações de interesses e de transparência dos deputados não deve ficar claro apenas o património e a coerência, há espaço para o julgamento da honestidade no combate político, sobretudo quando a arma é ilegal.
Não basta culpar as redes sociais pela produção de lixo e pela fertilidade da ignorância. As fake news são um crime que ameaça a democracia e é com essa urgência que devem ser combatidas por todos os meios.