Gosta Esping-Andersen. Três lições sobre o Estado-Providência

Gosta Esping-Andersen. Três lições sobre o Estado-Providência


Na recentemente apresentada estratégia do Governo de combate à pobreza – tal como, por exemplo, nas palavras de Paulo Rangel em entrevista, há duas semanas, à “Visão” -, cuida-se, finalmente, de principiar um processo de aposta significativa em creches e jardins de infância como motores de combate à pobreza e mobilidade social (ascendente). Desde há…


De acordo com Alfredo Bruto da Costa (“Um olhar sobre a pobreza”, Gradiva, 2008), há um ciclo vicioso associado à pobreza em Portugal: porque as pessoas são pobres, como têm parcos recursos (económicos, mas também educacionais/culturais familiares), tendem, muitas vezes, a adquirir pouca qualificação (académica); pouco qualificadas, terão empregos com baixos salários e serão pobres. Com baixos salários, os descontos mensais resultam diminutos, o que, dadas as regras vigentes no domínio da Segurança Social, se traduzirá por minguadas pensões. Ou seja, como não raramente acontece (no nosso país), uma pessoa pode manter-se pobre da infância à velhice. 

O lugar para cortar esta cadeia é, seguramente, a escola. Bruto da Costa (2008) expõe de modo muito claro como uma visão de combate à pobreza assente, exclusivamente, numa abordagem assistencial – a garantia, a todos, do que a sociedade conceba, a cada tempo, como mínimo(s) de dignidade humana – é extremamente redutora. Enquanto cada pessoa, cada cidadão não se autonomizar e alcançar a independência, mesmo que satisfeitas as necessidades normativamente plasmadas como básicas, continuará a ser pobre. A exigência ao Estado, longe de diminuir, propende a densificar-se: facultar aos cidadãos, nomeadamente através do ensino, a possibilidade de aquisição dos conhecimentos/instrumentos/ferramentas necessárias para que a liberdade de um estádio de não pobreza possa emergir, com o devido acesso ao mercado de trabalho. Citando o estudo acima referido (Bruto da Costa, 2008, 187) “o sistema educativo adquire uma importância decisiva que, para ser correspondida terá de assegurar não só o acesso normal das crianças pobres ao sistema escolar, certamente indispensável, mas também as condições de sucesso (que efectivamente se traduza na aquisição de conhecimentos e aptidões) e, ainda, o apoio à família, que permita «libertar» a criança da sua função de contribuir para o rendimento familiar”.

Uma meritocracia, baseada numa igualdade de oportunidades que seja manto diáfano que esconda uma desigualdade pré-existente, de modo a apenas, ou sobretudo, recompensar os que “possuem contextos familiares afortunados ou dotes genéticos” seria injusta (como diria Crosland, assim descrito por Plant, 2006, em Espada, Plattner e Wolfson, “Esquerda e Direita no século XXI”, Universidade Católica, 2006). É necessário fazer funcionar, para com os mais desfavorecidos também no domínio da capacidade de aprendizagem, o princípio da compensação (John Rawls, “A justiça como equidade”, Martins Fontes, 1993), isto é, como em nenhum mérito concorreram aqueles que a natureza dotou de maiores faculdades (e de um contexto pessoal-social propício a desenvolvê-las), levando-os a maiores proventos, sem que o talento, propriedade individual, mas o rendimento/benefício acrescido resultante de uma desigualdade a priori que moralmente não se qualifica como meritória seja taxado e, ainda, na medida em que a prioridade à liberdade implica que tais capacidades (superiores) possam ser expressas sem que necessariamente sejam comercializáveis (Rawls, 2003), tudo resulte em benefício maior, concentrado na escola, dos menos dotados. Mas aqui importa não incorrer, também, numa falácia igualitária: recompensas desiguais são necessárias “para mobilizar o talento, numa sociedade livre que não controle o trabalho” (Rawls, 2003, 110). Há um conjunto de actividades e/ou profissões, cujo esforço, rigor, treino, disciplina, trabalho, dedicação, estudo só serão apetecíveis para um amplo conjunto de cidadãos, caso exista uma boa recompensa (material). E não há que presumir, desde logo no momento do desenho de uma situação meramente hipotética, uma posição original, espécie de estado natureza onde se definem, através de representantes, as regras (societárias) mais justas, a coberto de um veú da ignorância.
A diferenciação de recompensas é justificada e legítima, mesmo do ponto de vista do princípio da diferença, em que tal desigualdade tem como escopo o benefício dos menos afortunados “os mais bem dotados (…) são estimulados a adquirir benefícios adicionais (…) com a condição de que treinem os seus talentos naturais e os utilizem com o intuito de contribuir para o bem dos menos bem dotados (…) A reciprocidade é uma ideia moral situada entre, por um lado, a imparcialidade, que é altruísta, e a vantagem mútua por outro” (Rawls, 2003, 108).

Quando nos referimos à aquisição de aptidões, ao treino dos talentos – que são, assim, observados, como estando, na pessoa, (apenas) em potência, dependendo da vontade e mobilização de cada um a sua concretização, e daí (a existência de) o mérito individual -, não podemos deixar de perspectivar a escola como centro das atenções.
Por mais que os esforços no sentido de promover importantes reformas no ensino fossem adiante, contudo, excepção feita aos países nórdicos, a repetição social, nos resultados escolares e, consequentemente, no tipo de empregabilidade e massa salarial, mostrou-se demasiado resistente às mudanças. Aqueles a quem a lotaria natural havia proporcionado melhores condições de partida, estando depois em compita num plano aberto de igualdade de oportunidades na escola, viram, nos países europeus, largamente confirmada essa vantagem inicial. É, hoje, claro como os anos iniciais de cada pessoa, na aquisição de capacidades cognitivas e não cognitivas, pode ser tão determinante para um trajecto futuro. O investimento das políticas públicas centradas nas crianças entre o seu nascimento e os 6 anos tem um grau de reprodutividade – digamos, é um investimento tão seguro, multiplicado, aliás, nos casos de crianças oriundas de meios desfavorecidos –, que desde há vários anos, em diferentes estados europeus, o financiamento, por exemplo, de creches é entendido como uma boa despesa. Acontece que tal se verifica, com real apoio público, a partir dos três anos. Quer ao nível da aquisição de competências cognitivas – de estímulos vários, como por exemplo a leitura, mas não só -, como de competências não cognitivas – modos de comportamento, por exemplo – esses anos são, igualmente, fulcrais. Quem se preocupa com as questões da pobreza e atenuação de desigualdades não pode ignorar esta questão. Sendo que podemos pensá-la, ainda, quanto a um efectivo investimento que atenue gastos futuros, que incluem, por exemplo, a criminalidade juvenil. Para um gasto de 0,4% do PIB, com despesa nesta área, há um ganho de 4% na riqueza, avançam diferentes estudos norte-americanos e dinamarqueses, de que fala Gosta Esping-Anderson, um dos maiores especialistas no Estado Providência, em “Três Lições sobre o Estado Providência” (Campo da Comunicação, 2009). No acesso a creches, o rendimento familiar a elas destinado é de 25% em França e 10% na Dinamarca. E em Portugal? Esping-Anderson convida-nos a reflectir na seguinte ideia: se um forte investimento público, neste âmbito, exigiria consenso social e, portanto, demandaria um consentimento consensual, por outro lado, as crianças mais desfavorecidas conseguem, efectivamente, um salto de aprendizagens múltiplas ao lado dos que foram beneficiados com um leque de opções formativas maiores à partida. Mesmo que muitos considerem que a ida, logo no primeiro ano de vida, de uma criança, para uma creche possa ser, para esta, prejudicial – a sua, ainda escassa, imunidade a todo o tipo de, digamos, “viroses”, ou o facto de porventura não se poder fixar tanto num único elemento de absoluta confiança, para lá dos pais, com passagens por diferentes educadores, em vez, por exemplo, da/do tradicional avó/avô -, a verdade é que numa creche de grande qualidade, que permite, nomeadamente, à mãe trabalhar, com os ganhos futuros para toda a família, criança incluída, e para a própria mulher no seio familiar -, essas desvantagens podem ser, claramente, menos evidentes quando comparadas com os benefícios trazidos. Na Dinamarca, por exemplo, onde já há várias décadas estas políticas estão em cima da mesa, a exigência de boas creches é um facto e uma certa homogeneidade educativa – no pólo oposto, os EUA – uma realidade. 

Esta homogeneidade educativa é um elemento normalmente negligenciado na abordagem desta problemática: as transferências (prestações sociais) ou redistribuição são, não raramente, aceites por certo consenso político, mas não se atende, depois, à questão cultural. Podemos ter pais que são profissionais executivos com um grande rendimento (mensal) que não gastam nem tanto tempo nem de tão boa qualidade como aquele adstrito aos seus descendentes por outros progenitores (que auferem piores remunerações, mas que lêem para e com os filhos-crianças). E, em realidade, para lá das questões da pobreza e rendimento familiar, este factor cultural é determinante (p.ex., o número de livros em casa). De resto, gostaria aqui de citar um estudo de Mark Taylor, da Universidade de Oxford, que ouviu 17200 pessoas, chegando á conclusão de que o factor que de modo mais consistente esteve associado á ascensão social foi a leitura. Nenhuma outra actividade – cinema, desporto, visitas a museus ou galerias – teve um impacto relevante (vide https://www.unimed.coop.br/viver-bem/pais-e-filhos/o-sucesso-da-leitura ). O conhecimento de maior vocabulário e de conceitos abstractos a revelar-se decisivo.

Em síntese, igualdade efectiva de oportunidades, passaria, para Gosping-Andersen, por uma grande aposta nas creches e jardins de infância. O investimento seria grande, mas ganho: nos primeiros anos de vida, multiplicado de sobremaneira, principalmente entre os mais desfavorecidos. Antes mesmo de qualquer descriminação positiva para estes, o princípio da universalidade garantir-lhes ias consenso social e qualidade de estruturas (de estímulos e afectos). Diminuiria a delinquência juvenil, jovens mais capazes fariam parte de uma sociedade do conhecimento assente em grandes capacidades cognitivas e não cognitivas. Estes jovens seriam determinantes para assegurar a continuidade do Estado-Providência – que longe da ineficiência, daria, assim, lugar a jovens com grande formação, saudáveis, produtivos e com uma rede de segurança que, precisamente, os tornaria mais aptos á mudança, todo o contrário do conservadorismo triunfante, com aquilo que é, para usar um termo de Zygmunt Bauman, o medo na cidade. O retorno deste investimento seria, pois, tanto individual como colectivo. Num tempo em que as declarações nacionalistas e xenófobas voltam á luz do dia, Gosta Esping-Andersen deixa-nos, ainda, esta ideia a guardar: a ideia de superioridade genética de uma nação sobre outra é indefensável. É preciso atribuir a factores institucionais as enormes diferenças entre países em matéria de abandono escolar e de dispersão de capacidades cognitivas. Esta dispersão tem que ver com a ausência de uma homogeneidade mínima cultural, em favor de ilhas de conhecimento, na grande maioria de países. 

Se hoje pensarmos que o fenómeno da homogamia, quer dizer, da junção, em casal, de pessoas pertencentes a estratos sociais e de rendimentos semelhantes – e nos tipos de educação tão diferenciados dali advenientes – estaremos a ver como isso contribui, também, para o não encurtamento das distâncias (sem, com a forte aposta nos jardins de infância e creches de qualidade, uma intervenção pública, onde antes se julgava que ela não poderia entrar). Também ao nível da imigração estas questões se colocam, nomeadamente nos seus descendentes. Um dado muito positivo, a fechar: dados de vários países mostram como, desde a década de 60, o tempo consagrado pelos pais aos filhos aumentou, e muito. O que isso não pode fazer esquecer é que enquanto uns pais dedicam-nos a actividades – nomeadamente – de desenvolvimento (das diferentes capacidades/talentos dos filhos), outros não o podem fazer – também porque muitas vezes não sabem. Se pensarmos que quem nasce pobre, em Portugal, com a reprodução social existente, com a falta de recursos económicos e culturais, tende a adquirir uma escolaridade mais baixa e a ir para um mercado de trabalho em más condições, ganhando baixos salários, descontando pouco, e, logo, tendo parca reforma, vemos como essa ratoeira tem que ser quebrada (em algum ponto, que pode ser também, é certo, ao nível da segurança social). Quanto ao campo da educação, as arrojadas teses de Esping não podem ser ignoradas.