Nostalgia de “O Berro”


Velhos tempos, em que havia esse panfleto e havia o resto, e tenho nostalgia disso, dessa separação de águas, dessa capacidade de distinguir as coisas tratadas a sério das coisas tratadas num modo “berro”.


Nos meus tempos de aluno universitário, já lá vai mais de um quarto de século, existia uma publicação, creio que da Tertúlia da FDUL, que dava pelo nome de O Berro – talvez inspirada (não sei) no homónimo oitocentista de vida breve. Não recordo a periodicidade, se é que a tinha, mas recordo bem o grafismo e o conteúdo, um e outro a puxar à rudeza. Não sei se essa publicação ainda está entre os vivos ou se já é defunta. O que sei é que lá se vertia uma certa forma – aos berros, digamos – de tratar os assuntos, que tinha as suas virtudes (abordar as questões, quaisquer que fossem), mas também os seus defeitos, destacando-se a forma chocante de colocar os temas, amiúde baseada apenas em impressões, em análise superficial, ou até em boatos, meias-verdades e diz-que-disse. Mas não vinha – e não vem, se ainda existir – grande mal ao mundo por causa de O Berro, que não era mais nem menos do que um panfleto a puxar ao chocante e ao engraçado, e assim era lido e interpretado. No mais, a vida académica seguia e tinha os seus fora próprios, os seus checks and balances, e as questões não eram em geral tratadas aos berros nem com uma lógica, digamos, berrante.

Velhos tempos, em que havia esse panfleto e havia o resto, e tenho nostalgia disso, dessa separação de águas, dessa capacidade de distinguir as coisas tratadas a sério das coisas tratadas num modo “berro”. Hoje, grande parte da nossa vida comunitária é tratada como se estivéssemos sempre é só naquele panfleto, num grafismo a preto e branco, mal amanhado, e num tom, no mínimo, despreocupadamente rude, onde quanto pior melhor, quanto mais sonoro mais catita, quanto mais chocante mais sexy, quanto mais tremendo mais gostável. Não há quem não meta prego ou estopa a respeito de tudo e de todos, mesmo que não saiba nada do tema ou não conheça os visados. Há é que ter opinião, e bem marcada, há que dizer coisas, de preferência fortes, e há que verberar e vociferar. Se assim se não faz, é-se fraco, não se é visível, não se ganha espaço ou popularidade. Quase parece que quem não berra não é e não está. Berro, logo existo – numa triste modernização da máxima de Descartes.

É pena, acho eu, que cada vez mais aprecio o silêncio, a ponderação e o tempo. Devo estar rabugento, deve ser da idade, ou os ouvidos já não estão tão calhados para certos sons. Ou então é porque aprendi, logo em pequeno, que berrar é o modo de expressão de alguns quadrúpedes (nada mal para eles, muito mal para nós, por maior que deva ser o amor aos animais). Ou então é porque, já adulto, me habituei a rever, de tempos a tempos, para não esquecer (e é difícil, cada vez mais, por força do ecossistema), estes versos de Emily Dickinson: “Opinion is a flitting thing, / But Truth, outlasts the Sun – / If then we cannot own them both – / Possess the oldest one -.’’. E cito ainda estes, que tento cultivar com empenho e afeto: “I’d rather suit my foot / Than save my Boot -’’.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira