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Com esta escassez de matérias-primas, o que podemos esperar das empresas de distribuição em Portugal?
É importante que se diga que a escassez de matérias-primas é um fenómeno à escala global e tem algumas especificidades que é importante também tranquilizar os leitores. Na APED representamos 170 associados em que 60 são do retalho alimentar e os outros 110 são do retalho especializado e que se dividem entre mobiliário, moda, calçado, perfumaria e cosmética, brinquedos… Temos uma diversidade muito interessante e que nos permite falar com uma grande representatividade do setor. Acho que é importante também esclarecer que há duas dimensões: há, de facto, uma escassez e um aumento do custo das matérias-primas do lado do alimentar e que tem consequências neste retalho e há, também, um aumento e uma escassez de algumas matérias-primas que têm impacto no retalho especializado. Comecemos pelo retalho alimentar. Aqui o que temos assistido é uma pressão muito grande nalgumas áreas de produtos alimentares – que é conhecida – e tem sido sobejamente falada como é a questão dos cereais e do aumento do custo das matérias-primas ligadas aos cereais. Isso é evidente que tem impacto em toda a cadeia de valor. Mas é preciso avisar que nós não estamos com uma escassez de alimentos ou com algum problema. Temos é uma enorme pressão sobre alguma produção e que, a par de alguma escassez de matérias-primas, vem também com o aumento do custo dos combustíveis e dos preços da energia e que impactam toda a produção agrícola e a própria distribuição dessa produção. O que estamos a assistir, do ponto de vista do alimentar, é um aumento generalizado dos custos de produção e que provoca uma certa tensão entre produção, indústria e distribuição que tarde ou cedo terá impacto no preço de alguns produtos que, aliás, acho que já notaram uma pressão também influenciada pelo crescimento da inflação.
Está em causa o Natal?
Não está em causa o Natal, não está em causa a mesa de Natal e a ceia de Natal. O que está em causa é um aumento generalizado dos custos de produção que tem impacto na própria indústria, na transformação dos produtos alimentares e que depois terá também consequências, eventualmente, no preço de venda que a distribuição vai apresentar aos consumidores.
Estamos a falar de que produtos?
Tem sido conhecido o aumento dos preços no trigo e, portanto, consequentemente, é muito natural – e já foi referido várias vezes até pela associação do setor – que o preço do pão vá aumentar. Naturalmente nos hortifrutícolas, devido ao custo de energia e dos combustíveis também. A distribuição alimentar é um negócio de volume. É um negócio em que as margens alimentares estão na ordem dos 2%, 3%, há vários estudos que o dizem. Onde o negócio é rentável é quando há muito volume de vendas e há uma enorme eficiência na logística, em comprar bem, no transporte… é aí que o negócio da distribuição alimentar se ganha ou se perde. É evidente que o aumento dos custos dos combustíveis, como temos vindo a assistir nos últimos tempos, colocam uma enorme pressão e uma alteração que, por muito esforço que a distribuição faça na eficiência, na procura de soluções mais baratas… Ainda não estamos em níveis preocupantes mas há uma enorme pressão na cadeia de valor que começa na produção, passa pela indústria e acaba na distribuição. Por outro lado, uma outra dimensão em que provavelmente a escassez de matérias-primas se sente com mais notoriedade é no retalho especializado. E aqui falo de outra matéria que é a escassez de chips a nível mundial e que tem impacto em certas categorias de produtos como a eletrónica de consumo. Estamos a falar de questões que vão desde telemóveis até computadores, passando por varinhas mágicas, até. Tudo o que tem uma componente eletrónica está, neste momento, sob uma pressão enorme e há uma escassez muito grande a nível mundial. No caso concreto do mercado especializado ainda concorre outro fator – que é perturbador – que é o facto de muitos componentes ligados à eletrónica, ao desporto, ao mobiliário e aos brinquedos serem importados a outras geografias, em concreto a Ásia e, mais especificamente, a China. Ora, o que estamos a assistir nos últimos tempos – e não nos esqueçamos que também houve covid na Ásia – é a essa perturbação da produção de algumas fábricas. Os cortes de energia que temos assistido nos últimos tempos também levam a uma perda de produtividade e se associarmos isso ao aumento exponencial dos custos de transporte marítimo e à chamada crise dos contentores, compreende-se que, neste momento, os custos mudaram. Há um ano e meio importar um contentor estava na ordem dos 1500 dólares, agora está entre os 10000 e 15000 dólares.
Uma grande diferença.
É um valor absolutamente astronómico, 10 vezes mais do que era há um ano e meio. Isto, mais uma vez, provoca alguma tensão e o retalho nacional o que tem feito é que atempadamente fez as suas compras e as suas aquisições para enfrentar os meses de outubro, novembro e dezembro que tipicamente para o retalho especializado são os melhores meses do ano, são os meses em que as nossas empresas recuperam de um ano que não foi brilhante do ponto de vista das vendas, do tráfego. Houve uma preocupação de atempadamente fazer aquisições para que não falte nada no Natal. Agora aqui a questão é diferente. Enquanto nós dizemos que, de facto, a ceia de Natal não está em risco, temos que dizer que não é um problema do retalho nacional, não são as empresas que estão a falhar. O que acontece é que há, de facto, uma perturbação global e que vai ter consequências.
Prateleiras vazias?
Não digo que vamos ter prateleiras vazias porque isso não vai acontecer. É escusado estarmos com grandes alarmismos porque isso não vai acontecer. O que vai acontecer, com certeza, é termos problemas com a reposição de produtos de alguns segmentos como computadores, telemóveis, alguns produtos de eletrónica e alguns brinquedos. Não vamos ter prateleiras vazias mas vamos ter uma maior dificuldade de reposição assim que um produto que seja muito apetecível para o consumidor acabe. Se houver uma grande corrida a um determinado telemóvel é natural que o stock não seja reposto com a mesma facilidade com que seria reposto noutras alturas. Não é motivo de alarme, não estamos a falar de bens essenciais à nossa vida, ninguém vai ter problemas de saúde. Já estamos a assistir em atrasos em algumas áreas, como nos automóveis. Hoje, ao encomendar um automóvel, o prazo de entrega pode ir até seis meses. O mesmo pode acontecer a algum tipo de bicicletas. As bicicletas são feitas em Portugal mas há muitos componentes que vêm de outras geografias. E se esses componentes não chegam a horas é evidente que toda a cadeia de produção está em risco. Repito: não há motivo para as crianças ficarem a chorar porque não vão ter os seus brinquedos. Vão ter os seus brinquedos, naturalmente. O que corremos é o risco de alguns brinquedos que são chamados estrelas vão ter alguma procura e essa procura vai ter um impacto na oferta na medida em que os contentores chegam com bastante delay e a cadeia de produção está numa grande pressão. Não escondo que há áreas, produtos e categorias de produtos que corremos o risco de falharem mas não vamos ter prateleiras vazias, isso posso garantir.
Para já está tudo controlado. E depois?
Acho que é sensato dizer que vamos ter, a médio prazo, alguns constrangimentos e que podem alertar a população para um fenómeno que se está a passar a nível global. Mas também deixo uma mensagem de esperança: o que é que um país como Portugal pode fazer relativamente às questões dos aumentos dos preços da energia a nível mundial? Pode muito pouco. Isto requer – do ponto de vista da energia e dos recursos energéticos – claramente uma resposta europeia. Isto é a consequência de anos e anos de políticas industriais que deslocalizaram muitas empresas e muita produção para outras geografias e em concreto para a Ásia. Não foi só a Europa que fez isto. Dou um exemplo: a Nike, que é um gigante mundial e que tem produtos em todo mundo e que é uma empresa norte-americana, tem cinco fábricas nos EUA. 90% da produção da Nike é feita no Vietname e noutras paragens.
E o lockdown fez estragos…
Com este lockdown recente estão com um problema enorme que não conseguem abastecer e não conseguem produzir para o mundo e para a procura que têm. Isto é um pequeno exemplo mas deve fazer-nos pensar. Era aqui que queria chegar. Acho que há uma oportunidade – diria a última – para a Europa repensar toda a sua política industrial. Se pensarmos também, a pandemia veio evidenciar uma dependência enorme da produção noutras geografias. Toda a gente ficou espantada por se perceber que 95% das máscaras cirúrgicas do mundo inteiro são feitas na China. É extraordinário. Se há um problema na China, há um problema para todo o mundo. É uma oportunidade para a Europa pensar em recentrar a sua política empresarial. Seja em matérias mais complexas e tecnológicas, seja noutras que são supostamente um bocadinho mais simples de perceber para o consumidor. Fábricas de brinquedos, fábricas de móveis, de confeção, têxtil… tudo isso são áreas de negócio de produção e valorização industrial que devem ser repensadas e que, por ventura, deveriam ser sinal de maior atenção até pelos próprios PRR dos Estados-membros. O retalho nacional é do melhor que se faz no mundo. Nos últimos 19 meses, com a pandemia, demos provas quer no retalho alimentar – que aliás nunca fechou – quer no retalho de especialidade de uma capacidade de nos reinventarmos para nada falhar e para continuarmos com uma oferta consistente aos clientes. Não vamos assistir em Portugal com nada parecido com o que se está a assistir no Reino Unido, por exemplo. É um fenómeno muito específico e uma questão muito específica que é uma mistura entre Brexit e pandemia e teimosia, se quiser. Mas não vamos ter as prateleiras vazias como estamos a ver nas fotografias do Reino Unido. Até porque, no caso do retalho alimentar, Portugal não sendo completamente autossuficiente, em matéria de produtos agrícolas, quer seja em hortofrutícolas, quer seja em laticínios, carne ou peixe, tem cadeias de abastecimento muito mais curtas e que não têm nada a ver com os problemas causados pela Ásia ou mesmo pelo aumento crescente dos custos energéticos. Não vai faltar comida. É aliás uma oportunidade para a agricultura nacional. E é também uma oportunidade para os consumidores portugueses valorizarem o que é nosso.
Que preocupações lhe chegam dos associados da APED?
Neste momento a nossa grande preocupação tem sido manter a cadeia de abastecimento a funcionar. E isso implica não só uma relação de proximidade muito grande com a produção nacional e uma relação de confiança. No caso do retalho especializado implicou uma gestão muito rigorosa e atempada das centrais de compra e de abastecimento, e somos respeitados pelos grandes transportadores que não têm hesitado em colocar os produtos em Portugal. Há uma preocupação muito grande que é o elevado crescimento de custos associados à produção e ao transporte de mercadorias que tem, de facto, levantado muita pressão na cadeia de valor e que preocupa.