Armanda Passos (1944-2021). A pintora de “sonhos acordados”

Armanda Passos (1944-2021). A pintora de “sonhos acordados”


Natural do Peso da Régua, a pintora viveu e trabalhou sempre no Porto, tendo falecido «na sequência de uma doença que a afetava há meses. «Mais do que histórias, Armanda cria, ‘quadros poéticos’, ou antes como explica Lessing no Laokoon (Berlim, 1766), ‘fantasmas poéticos’ ou ‘sonhos acordados’», escreveu Sylvie Deswarte-Rosa


Certa vez, Eduardo Prado Coelho manifestava o seu fascínio pelo trabalho de Armanda Passos, pelas mulheres que surgem na sua pintura, e interrogava-se: «…De onde vêm estas mulheres? Ninguém sabe. A que tempo pertencem? Ao princípio do mundo, mas declinando ao longo dos séculos e países, num contraponto permanente entre o traço europeu e o traço muçulmano. Por vezes parecem presas de um poder obscuro, alienadas desde os séculos mais longínquos, encarceradas na obtusidade dos saberes cativos.» Ao desdobrar este tipo de questões, ensaiando hipotéticas respostas, Prado Coelho ainda escreveu: Elas também «parecem deter uma sageza insolente e alheia às razões do nosso tempo e à masculinidade que rege o funcionamento do universo.»

Considerada uma das principais pintoras e artistas plásticas portuguesas das últimas décadas, Armanda Passos morreu na madrugada de ontem, aos 77 anos. O óbito foi partilhado na página oficial do Museu do Douro e nas redes sociais, que indicam que a artista faleceu «na sequência de uma doença que a afetava há meses».

Conhecida pela sua arte a cores vivas, o traço muito característico com que desenhava a figura da mulher e a sua relação com a natureza, em particular com as aves, a pintora nascida no Peso da Régua, em 1944, tinha sido condecorada em 2012 com a Ordem de Mérito – Comendadora pela extensa obra, que iniciou já depois de se ter mudado para o Porto e se ter licenciado em Artes Plásticas pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, conhecida atualmente como Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, instituição onde depois lecionou Tecnologia da Gravura. Para além disso e do trabalho inscrito nas telas, foi professora de Tecnologia da Serigrafia no Centro de Reabilitação Vocacional da Granja, monitora de Tecnologia da Gravura na ESBAP (1977-1979) e membro do grupo ‘Série’ Artistas Impressores.

Ao longo de uma carreira de mais de quatro décadas, de acordo com os dados biográficos do Centro Português de Serigrafia, Armanda teve obras suas expostas em mostras individuais e coletivas em países como Espanha, Bélgica, França, Alemanha, Suíça, Inglaterra, Luxemburgo, Itália, Turquia e EUA. E o seu trabalho valeu-lhe importantes distinções, tais como o 2.º Prémio do Ministério da Cultura na Exposição Homenagem dos artistas portugueses a Almada Negreiros, Lisboa, 1984, a Menção Honrosa no VIII Salão de Outono – Paisagem portuguesa, Galeria do Casino de Estoril, 1987, a Menção Honrosa no III Prémio Dibujo Artístico J. Pérez Villaamil, Museu Municipal Bello Piñeiro, Ferrol, Corunha, 1990 e o Prix Octogne, Charleville (Mezières, França), 1997.

Em maio, o Museu do Douro inaugurara o Espaço Armanda Passos, com o objetivo de homenagear a artista, onde se encontram expostas em permanência 83 obras, nomeadamente em óleos, serigrafias e gravuras. As obras em causa foram oferecidas pela pintora ao museu.

«Com este triste desaparecimento, o país perde uma das suas mais notáveis artistas plásticas e, a Universidade do Porto, uma das suas principais referências estéticas», afirmou, em comunicado, o reitor da Universidade do Porto, António de Sousa Pereira. O reitor manifestou «o reconhecimento» da instituição que dirige «pela admirável carreira e extraordinária obra» da artista, a quem prestou «sentida homenagem».

No ano do seu centenário, em 2011, esta universidade homenageou Armanda Passos com duas retrospetivas, Reservas e Obra Gráfica, e a publicação de um livro-catálogo, Armanda Passos Centenário U.P. – Uma Retrospectiva, com textos de José-Augusto França, Manuel Sobrinho Simões e Luís de Moura Sobral. Em 2015, a UP apresentou a exposição Armanda Passos – Blocos de Desenhos ESBAP. E assinalou também o 75.º aniversário da artista, em 2019, com uma nova exposição na sua galeria Casa Comum, Armanda Passos: 75 Anos, 75 Escritas. 

A sua obra suscitou o interesse dos críticos da especialidade, mas também de escritores de várias sensibilidades, artistas e até historiadores. Entre os intelectuais que se debruçaram sobre o seu trabalho incluem-se Fernando Pernes, Mário Cláudio, José Saramago, Vasco Graça Moura, Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Prado Coelho, António Alçada Baptista, David Mourão-Ferreira, Armando Silva Carvalho, José-Augusto Seabra, Lídia Jorge, Luis de Moura Sobral, Raquel Henriques da Silva e José Augusto-França.

«Não há letras que cheguem a poder dizer os milagres que podem as colores e a grande força sua. Esta declaração de Francisco de Holanda no final do seu capítulo sobre as cores poderia aplicar-se à pintura de Armanda, sobretudo na sua arrebatadora última fase, onde o vermelho domina quase exclusivamente», escreveu Sylvie Deswarte-Rosa, diretora de Pesquisa Emérita no CNRS, École Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines, Lyon.

E prossegue: «Como notou José Augusto França, um finíssimo connoisseur da pintura de Armanda, a sua arte é diametralmente oposta à pintura de Paula Rego: ‘Onde Paula Rego conta histórias em sua casa, ela as não conta – e tem o malicioso bom gosto de intitular as suas telas só pelo que fisicamente são, ‘a óleo’. Na pintura de Armanda, as figuras existem pura e simplesmente. Mais do que histórias, Armanda cria, direi eu, ‘quadros poéticos’, ou antes como explica Lessing no Laokoon (Berlim, 1766), ‘fantasmas poéticos’ ou ‘sonhos acordados’. Afinal, qualquer um de nós é provavelmente capaz de ter sonhos acordados, se ficarmos atentos e nos prepararmos para isso. Mas só muito poucos o fazem. Fê-lo Opicinus de Canistris no século XIV nas imagens cartográficas antropomorfas criadas em segredo ao longo da noite em Avinhão durante o Grande Cisma; fê-lo Hieronymus Bosch no século XV nos Países Baixos em vastas visões delirantes como o tríptico das Tentações de Santo Antão do Museu das Janelas Verdes, em Lisboa. Armanda Passos entra nesta genealogia de artistas.»

Numa nota de pesar publicada no site oficial do ministério, a ministra da Cultura, Graça Fonseca diz lamentar profundamente a morte de uma «referência maior das artes plásticas portuguesas, tanto nacional como internacionalmente».

Lembrando que a artista «representou Portugal em diversos eventos internacionais, como na V Biennale Der Europaischen Grafik (1988) ou na Exposition Internationale de la Gravure – Intergrafia 91 (1991-1992)», a ministra da Cultura descreve a artista plástica como uma «criadora de imagens poderosas, que provocam, desconcertam e devolvem o olhar a quem as observa».

A nota lembra ainda não apenas o «talento único» e o seu «contributo inestimável para a cultura portuguesa» mas também «a imensa generosidade de uma artista que doou parte significativa da sua obra para fruição pública».