Rita Vian. “Quero sentir a minha personalidade na música assim como o caminho que trilhei”

Rita Vian. “Quero sentir a minha personalidade na música assim como o caminho que trilhei”


No seu primeiro EP, CAOS’A, Rita Vian prova que é uma das artistas em ascenção em Portugal que tem tudo para triunfar no nosso país. Com uma abordagem refrescante ao fado clássico, a sua voz cristalina e melancólica é banhada por batidas que mais depressa associamos à música eletrónica, hip-hop ou R&B do que a…


Primeiro surge a batida, primal e sem grandes artifícios, ao fundo estão uns ruídos que parecem sereias prontas a desviar-nos do nosso caminho, mas então surge uma voz cristalina que anuncia trazer consigo “uma mala cheia de brilhantes”.

Esta é a voz de Rita Vian, cantora e compositora que assume um lugar no seio do movimento dos “Novos Fados”, onde artistas procuram contextualizar o fado banhando-o com influências mais contemporâneas, e que, no final de junho, lançou o seu primeiro EP, CAOS’A.

CAOS’A é uma mistura orgânica entre o fado que Rita conheceu em casa da sua avó com um conjunto de batidas que vão desde a eletrónica, o hip-hop ao R&B, servindo de pano de fundo para conhecermos melhor a jornada que a artista fez até nos encontrar e presentear com este diamante.

A cantora prepara-se para esta semana regressar à estrada, no Teatro Aveirense (Aveiro) a 21 de outubro e no Teatro Tivoli BBVA (Lisboa) a 26 de outubro, para apresentar este trabalho, que começou a ser construído em casa da avó. 

 

O seu percurso musical começou em casa da sua avó a cantar com a sua família, que memórias guarda desses tempos? A sua formação baseia-se nesses ensinamentos caseiros ou também teve treino formal?

Algumas das minhas primeiras memórias musicais são na casa da minha avó, com a família a cantar à volta do piano enquanto ela tocava. Aprendi muito nesses tempos, mas tentei sempre, ao longo da minha vida, estudar música direcionada para estilos mais concretos, como o jazz, mas nunca foi algo que me cativasse verdadeiramente, especialmente no que toca a treinar a voz. Sou independente e sempre considerei que a voz é algo muito pessoal e que eu precisava de a complementar com um instrumento. Isso levou-me a estudar o piano. Tentei por várias vezes, em várias escolas, como a Metropolitana, mais focado no estudo clássico, a Conservatória, também fiz parte do Hot Jazz, mas nunca estive mais do que um ano em nenhuma destas escolas. No final, nada do que estive a aprender ia de encontro áquilo que imaginava ser estudar música, nem o caminho que pretendia trilhar. Todo esse imaginário de que estive a falar, o dos meus avós, era uma tradição muito portuguesa, muito descomprometida e de momento. Era algo que não se estudava na formação clássica, nem no jazz e que me fez perder o interesse nestas educações.

Então nem teve um professor que lhe ensinasse a cantar o fado?

Não, cantava-se em casa e eu cantava também. Não tenho nenhum tipo de formação nesse sentido. 

Considera que a sua avó foi a sua professora?

Sim, de certa forma ela tinha esta visão que eu também tenho. Lembro-me de ela me dizer: “Não faças como eu que não levei esta vida como profissão”. A minha avó é pianista por gosto, era o que ela mais gostava de fazer na vida, tocar e cantar, mas acabou por não seguir este caminho. Lembro-me dessa frase me marcar muito e de pensar: porque é que eu não haveria de continuar a seguir a música? Mas, honestamente, apesar daquilo que a minha avó disse, acho que ela acabou por seguir a música, ser músico é uma coisa que se é sem se ser. 

Estava a falar do conflito em encontrar um estilo com que se identificasse em particular, sinto que na sua música também existe esse confronto, colocando o fado a conviver com a eletrónica ou com as batidas do hip-hop. Quando estava a começar a sua carreira alguma vez pensou em que teria de escolher apenas um estilo onde se iria focar?

No que toca à parte escrita, sempre tentei encontrar uma fórmula que me permitisse ter todos esses ingredientes dentro, mas assim que consegui fazer a primeira música com todos estes elementos senti que, depois desse momento, o caminho se ia fazer sozinho. Quando se encontra aquilo que se procura, não vale a pena desconfiar mais; é seguir em frente.

Qual foi o momento em que descobriu que era possível juntar estes universos que parecem tão distantes?

Foi mesmo depois de ter escrito as minhas duas primeiras músicas, a Diágonas e a Sereia. Quando fiz essas faixas foi como se visse um raio de luz que me indicou: “é por aqui que tens de seguir”. As melodias iam até aos sítios certos e tive que meter a mochila às costas para me ajudarem a montar o resto do disco. Foi uma construção lenta até que encontrei e comecei a trabalhar com o Franklin Beats, produtor, que estava interessado em masterizar a Sereia (single de 2020)… e eu queria fazer música com as suas batidas, tendo resultado na Purga (single de 2020). Nessa altura, senti que já tinha os alicerces que me permitiam criar esta linguagem. Faltava-me apenas concretizá-la musicalmente, mas estive sempre confiante de que ia acabar por acontecer se fosse chegando aos sítios certos.

Falava das sessões de família em que tocava o piano da sua avó, mas muitas vezes você e a sua família também cantavam à cappella. Acha que o facto de cantar sem nenhum tipo de instrumental por trás ajudou a esta transição de encaixar um som tão singular na sua voz?

Acima de tudo ajudou-me a não me prender a um som específico. Quando estava a crescer tinha em mim os sons da musicalidade portuguesa e das melodias do fado, mas, com o meu desenvolvimento em adolescente, acabei por seguir vários caminhos. Na escola tive acesso a muita música eletrónica e hip-hop, contudo, sempre mantive o fado em mim. Tentava juntar estes diferentes elementos na minha cabeça, com uma grande mistura no meu MP3, que me acabou por ajudar a nunca tomar por garantido o que vem por trás de uma voz, e que acarreta sempre um mundo de inspirações. Na minha voz em específico, tentei sempre que tivesse um som mais português ou que o meu timbre permitisse fazer essa associação, mas nunca me quis prender àquilo que ouvia e que já estava gravado. Por isso é que muito do meu trabalho surge através de experiências. 

Essa vontade de experimentar vem muito antes de chegar ao CAOS’A ou à sua carreira a solo. Já tinha colaborado com artistas muito diferentes como Mike el Nite ou os Beautify Junkyards. Como é que essas experiências a ajudaram a moldar enquanto artista?

Quando digo que gosto de experimentar, também posso afirmar o completo oposto. Tanto a experimentação eletrónica como tocar uma guitarra acústica são aspetos em que me sinto completamente feliz. O experimentar é algo que surge da minha curiosidade. Se ouvir algo na minha música que ache interessante, vou querer ouvir-me a mim de phones e sentir que a minha personalidade está lá presente assim como o caminho que trilhei. Todas as experiências de que falavas me ajudaram a moldar esta identidade. O Miguel (Caixeiro, de nome artístico Mike el Nite) é um dos meus melhores amigos e sempre cantei muitos fados à cappella para ele e para o nosso grupo. Quando ele começou a trabalhar no seu último álbum, Inter-Missão, tinha uma música, Carmen, que era inspirada num fado que eu costumava cantar, a Carmencita. Ele perguntou-me se eu não queria fazer umas vozes e acabou por surgir aquele fado inicial da música.

E no caso dos Beautify Junkyard? Sinto que o som deles destoa de tudo aquilo que fez até agora.

Os Beautify foram a primeira e única banda onde estive. É um projeto de onde trago muitos amigos e boas memórias. Eles foram uma parte deste percurso que estou a fazer para formar a minha identidade. Para além de me terem dado muita experiência de estrada, indicaram para onde é que eu poderia prosseguir o meu caminho. Mas sim, a música deles tinha um lado muito diferente do que estou a fazer agora, que acabou por me ensinar mais sobre composição, como usar samples e até sobre as origens da música portuguesa, porque usávamos algumas influências de Fausto ou de Zeca Afonso. Havia uma investigação destas raízes que também me ensinou e me trouxe inspirações muito diferentes.

Uma influência que acaba por estar presente em CAOS’A, especificamente nas percussões.

Sim, foi um universo que achei que também fazia sentido incluir aqui.

Depois de vários singles, CAOS’A é o seu primeiro EP, porquê lançar agora este conjunto de músicas?

Tinha muita vontade de lançar este meu primeiro trabalho. Depois de ter andado tanto tempo à procura das pessoas certas para trabalhar, que foi um processo difícil, porque era necessário juntar vários elementos que coincidissem com os elementos que queria incluir nas minhas canções, mas também porque buscava uma empatia a nível pessoal e com o projeto. Depois de muito procurar, apareceu o Branko, com muita vontade e com todas as caraterísticas que mencionei antes. Foi um processo tão orgânico que nem me estava a aperceber de que estávamos a trabalhar no EP. Eu estava a escrever, ele estava a produzir e, quando demos por ela, o trabalho já estava concluído e já estávamos no meio da estrada. Foi um processo que correu muito bem, encontrei várias pessoas que passaram a fazer parte do meu percurso e o melhor é que, quando nem me dou conta de que isto está a acontecer, entendi que isso é sinal de que está a correr bem.

Não querendo desvalorizar o seu esforço, foi quase uma sorte a entrada do Branko neste projeto; ele foi a escolha perfeita, com o seu reportório. Era alguém que percebia muito bem o que a Rita pretendia fazer.

Sorte é mesmo a palavra certa, ela não é apenas algo que surge do acaso. Sorte é uma mistura de muito trabalho e de circunstâncias certas. O Branko veio falar comigo depois de ter ouvido e gostado muito da Sereia, e convidou-me para ir até ao estúdio dele. Foi a sorte e o trabalho que me conduziram até ele e estou muito grata por esta colaboração.

Deve ter sido muito bom ter alguém como o Branko a elogiar o seu trabalho.

Sim, foi uma sensação incrível, aliás, gosto de pensar que sou muito ponderada, por isso, nas primeiras vezes em que falei com o Branko, fui me mantendo muito terra-a-terra. Ele é uma pessoa muito conceituada, que ouço e tenho nos meus phones há muitos anos. Fui a muitos concertos de Buraka Som Sistema, cheguei a estar no palco com eles no Sudoeste, tenho milhares de memórias com ele. Portanto, quando comecei a trabalhar com o Branko pensei: aconteça o que acontecer, é bom, seja uma participação pequena ou estar apenas em estúdio com ele a aprender, a conversar, tudo isso será enriquecedor. Quando vais, com essa energia para os teus trabalhos as coisas acabam por acontecer sem grande esforço.

Alguma vez lhe falou desta história?

Sim (risos), já lhe contei muitos episódios que aconteceram em concertos de Buraka.

Gostava de conseguir perceber e interpretar o título do EP, CAOS’A. Esta causa é a missão de mostrar o seu som e a sua identidade?

Sim, é a causa e a missão do lugar onde eu estava e para onde eu queria ir, o casulo onde estava e de onde acabei por sair é a causa disto tudo. Houve um dia em que encontrei a junção destas palavras, que me fez todo o sentido: a vontade de sair do caos e encontrar uma finalidade. É um pensamento muito comum para todas as pessoas, quando andamos à procura de quem queremos ser ou quando queremos transmitir uma mensagem, e encontrei nesta palavra todos esses sentimentos.

Tendo em conta as músicas que já lançou e o som com que se identifica, há quem já a coloque no movimento de “Novos Fados”, onde já estão inseridos músicos como Conan Osiris ou Pedro Mafama. Identifica-se com este estilo?

Apesar de gostar muito do trabalho dos dois músicos que citaste, não me consigo comparar com eles ainda. Só quando tivermos um reportório mais alargado é que se vai perceber verdadeiramente se é ou não aquilo que estás a descrever. Mas acredito que, na sua essência, seja isso: uma tradição que nasce com todos nós, mesmo que não sendo na nossa casa. Quando sais à rua em criança, os primeiros estímulos musicais que tens, partem das tradições dos locais onde vives, desde os santos populares, a um passeio por Alfama, das canções infantis, que têm essa musicalidade escondida, as canções que as nossas mães cantarolavam, as frequências de rádio antigas que apanhamos quando estamos na estrada nacional, tudo isso é um imaginário conjunto… e é inevitável. 

Sente que é neste registo que consegue expressar-se da melhor forma?

Às vezes existe a ideia de querer progredir, que me faz alguma confusão; não é uma vontade como se fosse em direção ao progresso. Vejo as coisas de uma forma mais natural, as influências chegam-nos e queremos transmiti-las através da nossa linguagem, com a nossa escrita. Queres que tudo o que ouviste esteja espelhado porque é o que está a acontecer agora e é inevitável que marque a tua existência. Eu adoro e canto muitos fados clássicos, mas se eu lançasse um disco só deste estilo ia sentir que ficaram muitas coisas por dizer. Nem sei se seria capaz de o fazer, seria muito estranho para mim.

Estava a falar de ainda não ter um repertório muito expansivo, quando o tiver, que espaço é que acha que pode ocupar na música portuguesa?

Posso confessar que nunca paro de compor ou escrever. Neste momento encontro-me num sítio onde me identifico muito e de onde vai sair um primeiro disco muito fiel àquilo que eu sempre tive na cabeça. Serão músicas que vêm de um lugar muito seguro. Agora, quanto ao lugar que eu vou ocupar, é uma antevisão que não consigo fazer. Para mim, os “Novos Fados” são novos até certo ponto, é uma questão de habituação, as coisas vão evoluindo e, às tantas, vão se normalizando a um ponto em que vai passar a fazer parte do normal e vai deixar de ser uma coisa estranha de se ouvir. Por essa altura, quando o disco sair, já vai ser algo um pouco mais familiar. Não sei que lugar é que vou ocupar, mas é um lugar que já ocupo neste momento e isso não vai mudar.